Primeira Infância: Investindo num futuro melhor

Em 12/05/2023 - 09:05
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André Zahar

SONHO – “Quero me formar para ser juíza”, diz Carolina*. Foto: Nando Chiappetta

Aos 11 anos, Carolina* é uma sobrevivente. A menina de olhar distante ao brincar com a lousa mágica é uma das crianças abrigadas no Lar Paulo de Tarso, que teve a sede no bairro do Ipsep, no Recife, parcialmente destruída por um incêndio no dia 14 de abril. Ela passou 10 dias internada com problemas respiratórios e possui uma irmã de 8 anos que segue hospitalizada. O acidente, provocado por um curto-circuito, causou a morte de quatro crianças e uma cuidadora. 

“Eu estudava, brincava, ajudava as tias quando as outras crianças estavam chorando ou precisando de alguma coisa”, relatou Carolina no momento em que representantes da Alepe entregaram, uma semana após a tragédia, os donativos arrecadados pela Casa em solidariedade às vítimas. “Perdi tudo: minhas roupas preferidas, minha maquiagem, meu brinquedo. Foi difícil, mas agora está mais fácil”, consola-se.

Vítima de abandono de incapaz, a menina que desde pequena sonha em se tornar juíza, integra um grupo considerado de risco social de alta complexidade. Maus tratos, negligências ou abuso sexual fazem parte do histórico de algumas das crianças, geralmente entre 2 e 10 anos, atendidas pela instituição. “Umas vêm de famílias com problemas de insegurança alimentar, algumas com um histórico de mendicância ou de dependência química”, explica Valéria Campello, psicóloga do Lar Paulo de Tarso.

Conheça o Projeto Alepe Acolhe, que capacita jovens que aguardam adoção em casas de abrigo

Campello explica que o acolhimento mútuo tem sido fundamental para fortalecer as crianças abrigadas diante das perdas sofridas. “A primeira coisa que toda criança precisa é se sentir acolhida. Esses afetos que vão sendo constituídos dão suporte para que elas se estruturem emocionalmente e tenham um bom desenvolvimento como um todo”, diz.

Primeira infância

Para além das marcas individuais, esses problemas trazem impactos sociais duradouros especialmente adversos quando atingem indivíduos de até 6 anos. Trata-se do período da Primeira Infância, iniciado na concepção, em que se formam as principais estruturas da personalidade humana: a inteligência, a afetividade, o relacionamento social, a segurança e a capacidade de aprendizagem. 

Estima-se que 18,6 milhões
de brasileiros têm até seis
anos de idade

Fonte: IBGE

Nesta fase, em que o cérebro se desenvolve numa velocidade única na vida, é fundamental para as crianças um ambiente estimulante e acolhedor. Esse desenvolvimento cognitivo e socioemocional dos sujeitos amplia sua escolaridade, sua futura inserção profissional e sua renda. Por outro lado, a falta de atenção integral – que inclui acesso a saúde, nutrição adequada e proteção contra a violência – pode ter consequências até a vida adulta, e impactar a sociedade como um todo. 

Entre os estudos que apontam a vantagem de reforçar atenção aos indivíduos nessa fase inicial, em vez de tentar reverter problemas que venham a se manifestar mais tarde, destaca-se o do prêmio Nobel de Economia James Heckman. Ele comprovou que o investimento em educação infantil tem um retorno mais alto do que qualquer outra aplicação financeira: entre 7% e 10% ao ano.

Em seu dia a dia na pediatria do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), no Recife, a médica Juliana Amorim vivencia situações muito distantes do ideal. São casos até de bebês com doenças sexualmente transmissíveis e crianças com fraturas causadas por violência doméstica. Todos os casos suspeitos de maus tratos são notificados para os órgãos competentes (Conselho Tutelar, Polícia e Ministério Público), conforme estabelece a Lei Estadual nº. 16.632/2019, aprovada pela Alepe.

Há mães que também são violentadas e criam situações para manter as crianças internadas e evitar que voltem para casa“.

CIÊNCIA – James Heckman comprovou a efetividade dos investimentos na primeira infância. Foto: Universidade de Chicago

Na avaliação da pediatra, nem todos profissionais estão aptos a lidar com essas situações. “O contato inicial com essas crianças é difícil, geralmente estão acuadas. Quando vão percebendo o carinho da equipe, o convívio vai se tornando mais fácil”, agrega.

Para Valéria Nepomuceno, professora do departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) , a capacitação de agentes públicos para identificar e encaminhar situações de maus-tratos contra crianças é crucial. Além disso, são necessárias campanhas educativas permanentes.

“É importante que a sociedade, como um todo, compreenda o que significam essas situações e as consequências para o desenvolvimento da criança ou do adolescente. E passe a exigir do poder público as condições necessárias para a prevenção dessa violência, canais de denúncias e serviços públicos de atendimento às vítimas”, reforça Valéria, que também é coordenadora do Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensões no Campo da Política da Criança e do Adolescente (Gecria).

Outro aspecto importante, na avaliação da professora, é que as instituições adotem a metodologia do trabalho em rede: “Se uma instituição da educação não atua de forma articulada com a assistência social e a saúde, está desperdiçando recursos e equipes técnicas. E a proteção para a Primeira Infância fica fragilizada”.

Legislativo

Na lógica de considerar a criança em sua integralidade, foi aprovado, em 2016, o Marco Legal da Primeira Infância. A Lei estabelece princípios e diretrizes para políticas públicas voltadas para essa faixa etária. Também reconhece que o pleno atendimento dos direitos da criança na Primeira Infância é um objetivo comum de todos os entes da Federação, só podendo ser alcançado em regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.

60%das escolas e creches municipais em Pernambuco têm problemas de infraestrutura

Naquele mesmo ano, a Alepe instalou pela primeira vez a Frente Parlamentar da Primeira Infância, que vem sendo renovada desde então. Após produzir um diagnóstico da realidade estadual, em parceria com a Consultoria Legislativa (Consuleg) da Casa, o colegiado acompanha, entre outras linhas de ação, a implantação dos planos estadual e municipais do segmento. Em Pernambuco, o Governo editou um decreto para regulamentar as disposições do Marco Legal no âmbito estadual, mas ainda não elaborou o seu Plano. Até 31 de março, 96 prefeituras pernambucanas haviam cadastrado esse documento na plataforma da Unicef. 

Outros desafios foram apontados em um levantamento do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE), que, entre outras informações, constatou que 60% das escolas e creches municipais em Pernambuco têm problemas de infraestrutura. Além disso, estudos indicam que o período da pandemia trouxe retrocessos nos indicadores de mortalidade materna, cobertura vacinal, matrículas na Educação Infantil, insegurança alimentar e violência.

RECURSOS – “Não se reduz desigualdades sem investir na primeira infância”, diz Simone Santana. Foto: Giovanni Costa

Numa Audiência Pública em abril, o secretário estadual de Planejamento, Fabrício Marques, comprometeu-se a incorporar no Plano Plurianual (PPA) 2024-2027 a proposta do Orçamento da Criança, prevista numa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da deputada Simone Santana (PSB), coordenadora da frente parlamentar. A iniciativa busca identificar ações e programas orçamentários voltados para o atendimento à primeira infância.

O gestor ainda expôs que, para atingir as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) de universalizar até 2016 a educação infantil na pré-escola para crianças de quatro a cinco anos, ainda é necessário criar 56 mil vagas em Pernambuco. E para alcançar a meta de atender em creches, no mínimo, 50% das crianças de até três anos em 2024, ainda faltam 156 mil vagas.

“Não existe redução real das desigualdades sociais sem investimento na Primeira Infância. Crianças que crescem com seus direitos garantidos e com estímulos adequados têm muito mais recursos para desenvolver as habilidades que vão influenciar sua mobilidade social no futuro”, sustenta Simone Santana.

A Alepe ainda aprovou recentemente uma norma estadual nos moldes do Marco da Primeira Infância, além de Leis estabelecendo a notificação compulsória, por parte de serviços de saúde e instituições de ensino, de casos de violência contra crianças. Outra área prioritária para as políticas voltadas à Primeira Infância passou a ter uma atenção específica da Casa por meio da Comissão Especial de Promoção e Atenção à Assistência Materno Infantil, instalada em abril deste ano.

ASSISTÊNCIA – Socorro Pimentel reforça importância do acolhimento à gestante e ao bebê. Foto: Paulo André

A presidente do colegiado, deputada Socorro Pimentel (União), explica que a finalidade é organizar as ações governamentais durante os momentos da gestação, parto e puerpério e de acompanhamento das crianças, em especial no primeiro ano de vida. Para isso, atualizar os critérios de risco das gestantes, qualificar a atenção ao pré-natal e disseminar a importância da amamentação estão entre as prioridades da comissão especial.

“É dever dos agentes políticos viabilizar o amparo à Primeira Infância, incluindo o acolhimento à gestante e seu bebê”, defende Socorro. “São igualmente necessárias, para que as políticas públicas sejam efetivas, o envolvimento de todos entes federados e medidas de transparência e de gestão fiscal responsável”, prossegue.

* nome fictício

Projetos para a infância em tramitação na Alepe

PEC 3/2023, de Simone Santana (PSB): Institui o Orçamento da Criança

PL 83/2023, de Delegada Gleide Ângelo (PSB): Campanhas de enfrentamento ao abuso e exploração sexual em eventos culturais

PL 165/2023, de Delegada Gleide Ângelo: Política de Proteção às Crianças e aos Adolescentes Órfãos de Vítimas da Covid-19

PL 239/2023, de Delegada Gleide Ângelo: Comunicação de casos de abuso e violência pelos estabelecimentos comerciais

PL 258/2023, de Socorro Pimentel (União): Política Estadual de Prevenção das Mortes Violentas de Crianças e Adolescentes

PL 288/2023, de Álvaro Porto (PSDB): Mecanismos para detecção e combate a violência doméstica contra crianças e adolescentes.

PL 329/2023, de Simone Santana: Obrigatoriedade de abordagem de crianças ou adolescentes em situação de rua

PL 493/2023, de Simone Santana: Sistema Estadual de Informações da Primeira Infância (SEIPI) 

PL 499/2023, de Simone Santana: Notificação sobre a elaboração dos Planos Municipais pela Primeira Infância.