Retorno às origens: mães, especialistas e legisladores debatem vantagens do nascimento normal no País

Em 19/09/2016 - 16:09
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ESTATÍSTICAS - Segundo Organização Mundial de Saúde, Brasil foi líder mundial em cesarianas, em 2015. Foto: Roberto Soares

ESTATÍSTICAS – Segundo Organização Mundial de Saúde, Brasil foi líder mundial em cesarianas, em 2015. Foto: Roberto Soares/Foto da home: Priscilla Andrade/Cortesia

Gabriela Bezerra

“O parto é uma grande oportunidade para trabalhar nossas fraquezas e pontos fortes. É um momento rico, no qual todo o processo nos prepara para o que está por vir. Senti medo, insegurança, vontade de desistir, sono e dor, mas também senti apoio, alegria, realização, força e coragem. Mais do que isso, eu me senti viva e poderosa. Depois do parto, tive a certeza de que sou capaz de qualquer coisa.” O depoimento é de Rafaela Mota, que em 2014 teve a certeza de ter feito a melhor escolha para o nascimento da sua filha: o parto humanizado. “Sempre digo que faria outros dez partos só para passar novamente pelo processo. Parece loucura para quem vê de fora, porque as pessoas estão acostumadas a pensar apenas na dor, mas mal sabem elas o que é um parto de verdade”, acrescenta.

Antes mesmo de engravidar, Rafaela já desejava que seu parto não fosse cirúrgico, mas desconhecia a diferença entre o normal e o humanizado. O protagonismo da mulher e a visão do nascimento como um evento sociocultural, e não apenas biológico, são algumas das características do que se considera parto humanizado. “Não imaginava que, para poder parir de forma respeitosa, a gestante teria que verdadeiramente ir à luta, na busca por uma equipe de profissionais confiáveis. Munida de muita informação, vi no parto humanizado um meio respeitoso de ter minha filha”, conta.

Apesar de a decisão ter sido embasada em suas melhores intenções e em leituras científicas, Rafaela afirma ter sofrido preconceito ao anunciar o desejo. “Nossa sociedade não está mais acostumada a realizar esse tipo de parto e tem dificuldade de respeitar as escolhas da mulher. As pessoas criticam as mães que optam por partos humanizados, como se elas fossem irresponsáveis e estivessem colocando em risco a vida de seus filhos”, relata. Assim, poucas pessoas souberam que Nina chegaria ao mundo em sua própria casa, com o apoio de uma doula — profissional capacitada para prestar auxílio à parturiente — e de uma enfermeira obstétrica, além da participação da sua família.

“Evidências científicas demonstram que o parto humanizado é o caminho mais seguro, econômico e melhor para o binômio mãe-filho”, avalia a ginecologista e obstetra Leila Katz, que coordena a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Obstétrica do Centro de Parto Normal do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). Militante do parto humanizado há mais de 18 anos, ela acredita que “o sistema obstétrico brasileiro atual é ‘medicalocêntrico’, ‘hospitalocêntrico’ e dá muito pouca importância à autonomia da mulher em relação ao seu corpo e às suas escolhas reprodutivas”.

A médica, que também coordena o Centro de Obstetrícia do Hospital da Mulher do Recife (HMR), aponta para a necessidade da adoção de modelos baseados na autonomia da mulher e centrados na assistência básica. “Nessa proposta, os obstetras são especialistas que são consultados, e os seus conhecimentos são colocados em prática quando existe alguma alteração do que é fisiológico. A gente sabe que o corpo da mulher foi feito para parir, e o processo vai dar certo na maioria dos casos”, afirma. Muitas vezes associado a procedimentos realizados necessariamente em casa, o parto humanizado também pode ocorrer em unidades hospitalares.

Na capital pernambucana, o HMR, que integra a rede municipal de saúde, tem atendido gestantes com esse desejo. “Desde que o mundo é mundo, a mulher pariu. Com a chegada do médico, várias intervenções começaram a ser incluídas”, evidencia a ginecologista e obstetra Isabela Coutinho, diretora do hospital.

EXPERIÊNCIA - Laura Melo optou por parto domiciliar no nascimento do caçula, Ita. Foto: Estúdio Materne/Cortesia

EXPERIÊNCIA – Laura Melo optou por parto domiciliar no nascimento do caçula, Ita. Foto: Estúdio Materne/Cortesia

Mãe de dois meninos, Laura Melo viveu a experiência do parto humanizado em ambas as gestações. “Quando fiquei grávida pela primeira vez, queria ter o meu filho em casa. No entanto, em razão de complicações, a recomendação foi de que o parto fosse realizado no hospital, pois o domiciliar só é indicado para gravidez de baixo risco”, relata. Já o caçula, Ita, nasceu no lar da família, com a presença do irmão, Azuh. “No hospital sou visita e na minha casa, não. Isso contribuiu para que eu me sentisse mais à vontade na segunda experiência”, conta.

O parto domiciliar não tem, no entanto, o apoio de toda a classe médica. Presidente da Associação dos Ginecologistas e Obstetras de Pernambuco (Sogope) e professora da Universidade de Pernambuco (UPE), Maria Luiza Menezes é contrária à prática. “Entendo o parto como uma emergência. No hospital, é possível ter a certeza de que numa situação de adversidade tudo o que está ao alcance será realizado, como reanimação neonatal ou entubação”, ressalta. Apesar de ainda não ter uma deliberação específica sobre a realização de partos domiciliares, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) reitera a importância da assistência médica no primeiro instante do bebê fora da barriga.

“Esse momento é tão relevante, que é chamado de ‘minuto de ouro’. Não existem transformações mais importantes na nossa fisiologia do que as que ocorrem imediatamente após o nascimento, e qualquer problema durante esse processo tem que ser atendido pelos médicos”, reforça o presidente do Departamento Científico de Neonatologia da SBP, José Maria Lopes.

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Doulas – Um dos responsáveis pela mudança da concepção do parto, o neonatologista estadunidense John H. Kennell defendeu, já nos anos 1950, a inversão da lógica desse procedimento, que passaria a focar nas necessidades das mães e dos bebês, e não nas do hospital. Nesse sentido, tornou-se entusiasta do trabalho das doulas. O verbete ainda não é encontrado em vários dicionários, mas, de acordo com o Houaiss, trata-se da “mulher que presta assistência a gestantes e parturientes, especialmente para proporcionar-lhes um ambiente de tranquilidade e segurança”.

Na prática, o significado é mais amplo. “Considero a doula essencial em todo o processo. Não conseguiria suportar as dores sem ela”, resume Rafaela Mota. Motivada por uma “vontade absurda de que outras mulheres também vivenciassem uma experiência respeitosa e empoderada”, Ludmila Cavalcante decidiu tornar-se doula há pouco mais de três anos. “Tive um parto que respeitou meu tempo e o da minha filha. Uma experiência transformadora”, lembra. De acordo com ela, “o papel da doula difere muito, de acordo com a experiência que cada mulher quer ter do seu parto”.

Reconhecendo a importância dessas profissionais, a Assembleia Legislativa aprovou, em agosto, a Lei nº 15.880/2016, que garante o direito à presença de doulas nos hospitais das redes pública e privada. A norma é de iniciativa do deputado Zé Maurício (PP), que também propôs a criação do Dia Estadual da Doula (18 de dezembro), oficializado pela Lei nº 15.881/2016.

Legislação – Em junho deste ano, a Comissão de Cidadania da Alepe debateu duas propostas que visam disciplinar o parto humanizado. De autoria do deputado Odacy Amorim (PT), o Projeto de Lei nº 411/2015 estabelece regras para a realização do procedimento fora do ambiente hospitalar.

Já o PL nº 622/2015, de iniciativa da deputada Raquel Lyra (PSDB), tem o objetivo de assegurar o direito ao parto humanizado nos estabelecimentos públicos de saúde do Estado. Na ocasião, participantes da audiência pública teceram críticas às matérias, que ainda tramitarão pelas comissões da Casa. Representante do Comitê de Estudos de Mortalidade Materna e do Fórum das Mulheres de Pernambuco, Gigi Bandler acredita que as propostas precisam focar mais nas necessidades da gestante, evitando reproduzir um modelo centrado no médico. Já Daniella Gayoso, coordenadora do Instituto Nômades, pede mais escuta da sociedade, especialmente dos movimentos que representam as mulheres.

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 Agressões ao corpo e à autonomia da mulher

 

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Situações como a medicalização sem o consentimento da parturiente, a patologização de processos naturais e, até mesmo, o desencorajamento do parto normal – ainda que seja um desejo da grávida – caracterizam o que se convencionou chamar de violência obstétrica, que não está restrita à cesariana (ver infográfico). Florrie Fernandes resume o sentimento de quem passou por essa experiência: “Não foi a minha escolha, nem aquilo que combinei com o médico.” “Optei pelo parto normal nas duas ocasiões. Na primeira, o anestesista não atendeu ao telefone. Quatro anos depois, o processo foi ainda mais agressivo, com a administração da ocitocina, que, a princípio, eu não queria, pois provoca uma dor terrível”, lamenta. Para Florrie, “embora alguns obstetras se proponham a adotar o procedimento não cirúrgico, muitos querem fazer um pseudoparto normal”.

A doula Pollyana Mendes chama atenção para o famoso “depois falamos sobre isso”, dito por alguns médicos quando as pacientes mencionam o desejo do parto normal. “A violência obstétrica não é só física, mas também psicológica e se caracteriza, inclusive, pela negligência de informações durante o pré-natal”, alerta. Também doula, Mariana Bahia critica o fato de não existir no Brasil uma legislação que tipifique a violência obstétrica como crime. “Isso dificulta a proteção da mulher contra essa prática, naturalizada e cultural no nosso País”, acredita.

A Argentina, por exemplo, já criminaliza a questão. Regulamentada em 2015 pela então presidente Cristina Kirchner, a Lei n° 25.929/ 2004 elenca os direitos da mãe, do recém-nascido e dos pais. De acordo com a pesquisa “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado”, divulgada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, uma em cada quatro mulheres brasileiras declarara ter sofrido algum tipo de violência durante o parto, como exame de toque doloroso, gritos e até assédio sexual.

Daniella Gayoso, do Instituto Nômades, avalia que “a maioria das mulheres é vítima de violência obstétrica e nem sequer se dá conta disso”. A presidente da Sogope, Maria Luiza Menezes, pede ponderação ao tratar do tema. “Não se pode culpabilizar uma classe inteira. É preciso também deixar claro que essa violência não é uma prática própria do obstetra, podendo ser promovida pela recepcionista do hospital, por exemplo”, acrescenta.

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Especialistas alertam para riscos da chamada “cultura da cesariana”

 

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No início da gravidez, o parto normal é desejado por quase 70% das brasileiras. Exposto no estudo “Nascer no Brasil”, coordenado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2014, esse dado contrasta com o alerta feito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), no ano passado, ao apontar o Brasil como líder na realização de partos por cesárea no mundo. Atingindo uma média de 52% no País, a cesariana chega ao percentual de 88% do total de partos na rede privada e a 46% no setor público, aponta a pesquisa.

Desde os anos 1980, a OMS recomenda que os índices fiquem entre 10% e 15%. Diante do que se considerou, em 2015, como “cultura da cesariana”, a OMS restringiu ainda mais o procedimento. “Quando realizadas por motivos médicos, as cesáreas podem efetivamente reduzir as mortalidades e as morbidades materna e perinatal. Porém, não existem evidências de que fazer o procedimento em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios”, explicita o texto.

“Precisamos lembrar que a cesariana é um procedimento cirúrgico de grande porte e, como tal, deve ser realizado apenas em casos específicos”, defende o ginecologista e obstetra Thiago Saraiva. Ele também observa que “esse tipo de parto aumenta em 120 vezes o risco de o bebê ter desconforto respiratório e em cinco vezes o risco para a mãe”. Presidente da Associação dos Ginecologistas e Obstetras de Pernambuco (Sogope), a ginecologista e obstetra Maria Luiza Menezes registra a importância da cesariana para o salvamento de vidas e pondera que “a taxa preconizada pela OMS é baixa, diante da situação de risco enfrentada”. “Ninguém vai defender as taxas que se têm hoje na rede privada, mas acredito que vamos caminhar para o patamar que temos no serviço público”, declarou.

Com o objetivo de reduzir riscos para mãe e bebê, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou, em junho, a Resolução n° 2144/2016, que determina a realização da cesariana, a pedido da gestante, somente a partir da 39ª semana. A decisão deverá, inclusive, ser registrada em termo de consentimento livre e esclarecido. O documento se baseia na constatação de recorrentes problemas em bebês nascidos antes desse prazo. O estudo da Fiocruz também alerta: “Embora não sejam considerados prematuros, são bebês que poderiam ganhar mais peso e maturidade se tivessem a chance de chegar a 39 semanas ou mais de gestação. A epidemia de nascidos com 37 ou 38 semanas no Brasil é, em parte, explicada pelo número elevado de cesarianas agendadas antes do início do trabalho de parto, especialmente no setor privado”.

*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de setembro/2016. Confira a edição completa.