
OUSADIA – Para especialistas, anonimato encoraja posicionamentos radicais na Internet. Foto: Henrique Genecy
Por André Zahar
“Começou em 2015, quando fiz um vídeo contra Eduardo Cunha (então presidente da Câmara dos Deputados, cassado em setembro do ano passado) sobre a redução da maioridade penal. Fui atacada por grupos políticos e religiosos que sempre perpetuam o mesmo discurso. Parece que está se buscando que todo mundo pense igual, isso é um perigo”, relata a nadadora pernambucana Joanna Maranhão.
Ao ser eliminada na fase classificatória dos 200 metros borboleta nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em agosto de 2016, a atleta foi novamente alvo de cerca de 250 comentários em suas redes sociais com insultos e mensagens de ódio. As postagens revelavam desde o desejo de que ela morresse ao deboche com as denúncias feitas por ela sobre abusos sexuais sofridos quando criança.
“Aquilo me chocou. Tive medo de ir para a rua um dia depois”, narra Joanna, que prestou queixa à polícia contra as agressões virtuais. “Desde os protestos de 2013, que começaram democráticos, pessoas que tinham vergonha de manifestar posições racistas, homofóbicas e a favor do Regime Militar se encontraram e passaram a expressar um discurso de ódio. São essas as que me atacam”, acredita.
O episódio se soma a outros que extrapolaram o ambiente virtual, com xingamentos, pichações e tentativas de agressão física a figuras públicas em ambientes privados como restaurantes, hospitais, aviões e livrarias. No Congresso Nacional, insultos, vaias, empurrões e, mesmo, troca de cusparadas foram televisionados ao longo de 2016. Durante a votação do impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 31 de agosto, o muro erguido no gramado do Congresso Nacional para separar manifestantes contra e a favor do afastamento da petista se tornou símbolo da polarização em torno do tema.
Naquele mesmo dia, a estudante da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (SP), Deborah Fabri foi ferida por uma bomba da Polícia Militar durante uma manifestação no Centro de São Paulo. O ferimento lhe causou a perda da visão do olho esquerdo. Ao postar em uma rede social uma mensagem de agradecimento pelo apoio recebido, tornou-se alvo de comentários ofensivos e violentos. “Me impressiona as pessoas que dizem e acreditam que tudo é uma farsa, até hoje, apesar das evidências”, comenta.

OFENSAS – “Os insultos dizem mais do outro do que de mim”, diz a universitária Deborah Fabri.
Para a universitária, esse tipo de reação parte de grupos que colocam a ideologia política acima da condição humana. “Os insultos dizem mais do outro do que de mim. São pessoas que se baseiam na emoção e não conseguem sustentar ideias utilizando a razão”, afirma Deborah, frisando que recebeu também muitos comentários machistas, com piadas e ofensas. “Fora isso, sou grata aos que mandaram mensagens de força e apoio. É para essas pessoas que direciono minha atenção”, ressalva.
Para o cientista político Juliano Domingues, professor da Universidade Católica de Pernambuco, esse tipo de comportamento, no Brasil, relaciona-se com a cultura política autoritária do País. Segundo ele, o ódio na política ganhou força especialmente no contexto acirrado das eleições de 2014. O autor de pesquisas sobre a relação entre democracia e mídia ressalta também que o ambiente das redes sociais estimula o fenômeno. “Ao não se sentir só, ao ter a percepção de que muitos compartilham da sua visão de mundo, o intolerante se sente incentivado a se manifestar”, observa.
Domingues avalia que a comunicação mediada pelo computador reduziu o custo de manifestação, encorajando pronunciamentos na forma de postagens em detrimento de ações presenciais nos ambientes tradicionais de ações políticas coletivas, como sindicatos e partidos. “Ganha a disputa pela visibilidade nas mídias sociais o discurso que mais se propagar. Como temos uma cultura política autoritária em vários setores da sociedade, o discurso intolerante leva vantagem”, explica.
A deputada Teresa Leitão (PT) indica que o fenômeno aponta para “um caminho perigoso de criminalização da política”. A parlamentar atribui as ocorrências à “insatisfação de setores conservadores da sociedade com o nível de politização e organização do povo” e afirma que o direcionamento dessas ações é dado pela mídia. Para ela, os políticos precisam agir com cuidado redobrado para não insuflar o ódio na população: “Nossas posturas precisam ser muito pensadas, para não corroborar com esse tipo de movimentação”.
Líder do PSDB na Alepe, o deputado Antônio Moraes considera que “qualquer tipo de agressão é lamentável e deve ser repudiado”. Citando casos de perfis falsos e “blogs sem responsabilidade com a notícia”, o parlamentar defende uma regulação que permita o acompanhamento das postagens, embora não se possa proibi-las. “É preciso diminuir a tensão criada no País, para haver um debate sóbrio de ideias no campo político. Esse agravamento só faz enfraquecer as instituições políticas”, avalia.
Em seu livro Como Conversar com um Fascista, a filósofa e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marcia Tiburi chama atenção para a irrupção do ódio na sociedade civilizada, emoção cada vez menos evitada e mais “autorizada”. Em entrevista por e-mail ao Tribuna Parlamentar, a autora acrescenta que não se trata de um sentimento natural, mas de um “afeto manipulado”. “As pessoas pensam que sentem ódio porque não há como não sentir, mas não sabem que estão sendo ‘co-movidas’ a sentir isso”, diz ela, que sublinha o caráter antipolítico por trás das ações (saiba mais na entrevista).
Intolerância na web – Em 2016, durante um período de três meses (de abril a junho), o projeto ComunicaQueMuda, da agência de comunicação paulista Nova/SB, monitorou dez tipos de intolerância na Internet. A partir dos dados – cerca de 543 mil posts extraídos de Facebook, Twitter, Instagram, blogs e comentários de sites –, o dossiê Intolerâncias Visíveis e Invisíveis no Mundo Digital concluiu que a modalidade de maior audiência, em números de postagens, é a política, com cerca de 274 mil menções.
Na pesquisa, racismo e política aparecem praticamente empatados no topo dos temas com maior percentual de menções negativas, ou seja, aquelas que expõem intolerância, preconceito ou discriminação: 97,6% e 97,4%, respectivamente. No caso da política, apenas 0,8% foram positivas e 1,8%, imparciais.
“O efeito disso é a negação completa do lado oposto, que deixa de ser visto pelo que é (um grupo que tem uma posição política diferente da sua) para ser encarado como inimigo, um erro clássico de quem ainda não aprendeu a brincar de democracia”, aponta o estudo.
Coordenadora da iniciativa, a publicitária Stephanie Jorge ressalta que as redes funcionam como uma “válvula de escape”, na qual as pessoas se sentem protegidas para falar coisas que não expressariam cara a cara. O efeito disso é que preconceitos restritos a círculos pequenos passaram a ter um alcance maior. Ela acredita, porém, na capacidade da comunicação para reverter o quadro. “Quando veiculamos mensagens informativas sobre intolerância, percebemos que os jovens têm mais capacidade de alterar a percepção. Entre as pessoas mais velhas, alguns preconceitos são mais difíceis de mudar”, observa.
Titular da Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Cibernéticos (DPCRICI) do Recife, o delegado Derivaldo Falcão explica que opiniões difamatórias, injuriantes, de cunho racista ou de qualquer forma discriminatórias configuram crimes, e o fato de acontecerem pela Internet não livra os agressores de punição. Ele alerta ainda para o risco desses discursos se converterem em violência fora da rede.
“Não é muito comum, mas há histórico de pessoas que se conhecem nas redes sociais, formam grupos e, em algum momento, reúnem-se para praticar atos violentos”, diz. O policial ressalta a importância da coleta de provas (capturas de telas com identificação do endereço do site e do perfil do agressor, por exemplo) por aqueles que se sentirem ofendidos, caso queiram registrar ocorrência para entregar às autoridades.
Integrante do Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet, a pesquisadora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS) Anna Clara Lehmann Martins assinala que as decisões judiciais nesses casos costumam ter caráter punitivo-retributivo ou indenizatório, em vez de medidas de reparação simbólica ou direito de resposta. Por isso, segundo ela, não são suficientes para enfrentar o prejuízo causado. “O dano advindo do discurso permanece. A vítima persiste silenciada, discursivamente posta como inferior ante uma gama incontrolável de usuários do meio virtual”, aponta.
“Os julgamentos de casos paradigmáticos como o da estudante paulista que pediu a morte de nordestinos via Twitter, após as eleições presidenciais de 2010, embora sejam relevantes para chamar atenção da população para esse problema, não parecem suficientes no enfrentamento dos danos causados”, exemplifica. Para suprir essa lacuna, a pesquisadora sugere legislações e políticas públicas que adotem disposições de prevenção e valorização da diferença no meio virtual.