Heróis invisíveis

Em 27/06/2023 - 09:06
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TRABALHO – O catador recolhe resíduos sólidos de papelão, alumínio, plástico e vidro e encaminha para a reciclagem. Foto: Roberta Guimarães

André Zahar

Há pouco mais de um ano, quando a Região Metropolitana do Recife foi castigada por chuvas que resultariam em 134 mortes, os catadores de materiais recicláveis José Cardoso, de 69 anos, e Roberta Santana, de 49, foram acordados no meio da madrugada por uma chamada telefônica. Do outro lado da linha, um vizinho os alertava que o galpão de triagem onde trabalham no bairro da Imbiribeira, Zona Sul do Recife, estava sendo inundado.

“Quando chegamos, ao amanhecer, tudo estava destruído. Alguém deixou um aparelho ligado e, além do alagamento, começou um incêndio. Tudo ao mesmo tempo. Nem conseguimos entrar porque tínhamos medo de levar um choque. Quando entramos, o estrago já estava feito”, relata Cardoso. Entre as perdas contabilizadas estavam os computadores do escritório que haviam montado no local.

O casal faz parte de um conjunto de trabalhadores que desenvolvem cotidianamente atividades em grau máximo de insalubridade. E que, embora desempenhe um papel de extrema importância para a sociedade (ver infográfico), lida diariamente com problemas como a falta de remuneração fixa – agravada pelas variações constantes nos valores de mercado dos recicláveis – e de acesso a benefícios previdenciários e trabalhistas, além de doenças e muito preconceito.

 

“Come-lixo”

Roberta, filha de mãe catadora e pai pescador, é cria da comunidade de Caranguejo Tabaiares, na Zona Oeste do Recife. “Comecei como catadora aos sete anos de idade. Já levei nome de ‘cata-lixo’, de ‘come-lixo’, mas nunca me aperreei com isso. Sustentei meus filhos da reciclagem, nunca peguei nada de ninguém”, desabafa. “Saía de manhã e não tinha hora para chegar. Levava quatro crianças pequenas comigo na carroça”, relembra ela, que chegava a subir pontes arrastando 600 quilos de papel nas costas.

 

Cardoso, de Itumirim (MG) chegou à capital pernambucana aos 17 anos. Filho de uma dona de casa e um pai mecânico que sofria com a dependência de álcool, começou a catar material entre um serviço e outro na construção civil. Na falta de emprego, assumiu definitivamente essa atividade como fonte de sustento aos 30 anos. Em sua trajetória, chegou a morar na rua e trabalhou num lixão, o que lhe rendeu três pneumonias.

“Aquilo não é lugar nem para animal, quanto mais para ser humano. No lixão você encontra animais mortos, criminalidade, encontra tudo de ruim. Havia brigas, situações de doenças sem atendimento médico”, relembra. 

Muitas pessoas morreram e foram enterradas dentro de lixões.”

Cardoso e Roberta são representantes em Pernambuco, respectivamente, do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e da Associação Nacional dos Catadores (Ancat). Um dos orgulhos que têm é justamente o de terem participado da luta para que Pernambuco pudesse anunciar, em março deste ano, a erradicação dos lixões a céu aberto nos seus 184 municípios. 

Com isso, o Estado cumpriu a meta do Novo Marco Legal do Saneamento Básico ( Lei nº 14.026/2020), que estabelece essa medida até 2024. Um grupo de trabalho que reuniu diversos órgãos públicos estaduais – como Tribunal de Contas, Ministério Público, Secretaria de Meio Ambiente e Agência de Meio Ambiente (CPRH) – também foi fundamental para essa conquista.

Legislativo

Para enfrentar questões trazidas pela categoria, um grupo de trabalho foi formado pela Superintendência Geral da Alepe, reunindo representantes dos catadores, especialistas do setor e técnicos da Casa. O resultado foi a elaboração de três projetos de lei protocolados pelo 1º secretário, deputado Gustavo Gouveia (Solidariedade).

DIÁLOGO – Grupo de Trabalho formado pela Mesa recebeu demandas de catadores e discutiu com especialistas. Foto: Giovanni Costa

O PL nº 895/2023 estabelece um incentivo financeiro, intitulado “Bolsa Reciclagem” a ser pago pelo Estado para cooperativas e associações de catadores pelos serviços de segregação, enfardamento e comercialização de materiais recicláveis. Conforme alteração a ser feita na Política Estadual de Resíduos Sólidos, essas entidades receberão um valor a cada três meses, do qual 80% será repassado aos associados. O restante deverá ser aplicado em despesas administrativas, capacitações ou investimentos em infraestrutura e equipamentos. Os recursos serão provenientes do Fundo Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (Fema-PE)

Já o PL nº 897/2023 altera a Lei nº 10.489/1990, que trata de critérios para distribuição do ICMS aos municípios. A proposta remaneja 1 ponto percentual do valor distribuído com base em indicadores de ensino, para que sejam destinados àqueles que implantarem coleta seletiva com a participação das cooperativas de catadores. 

INCENTIVO – Primeiro secretário da Alepe, Gustavo Gouveia defende apoio às cooperativas para ampliar reciclagem. Foto: Roberto Soares

Por fim, a terceira proposta ( PL nº 898/2023) isenta de IPVA os veículos utilizados no trabalho dos catadores ou de propriedade de suas organizações. Na justificativa anexada a esta proposição, Gouveia ressalta a importância das cooperativas para aumentar a quantidade dos resíduos reciclados, ampliar o faturamento e melhorar a renda e a qualidade de vida dos envolvidos.

“A participação dos catadores no processo de coleta seletiva, além de gerar empregos e renda, traz um benefício direto para o meio ambiente. A partir disso, enxergamos, como deputado estadual, a importância de criar leis que assegurassem um benefício não só aos profissionais, como também às cooperativas e associações”, explica Gouveia.

Atualmente, essas proposições estão sendo analisadas pelas comissões temáticas da Alepe. Além disso, a Casa aprovou este ano a Lei n° 18.189/2023, que proíbe a deposição de resíduos sólidos em ecossistemas de manguezais. Essa iniciativa partiu do deputado Romero Sales Filho (União), que preside a Comissão do Meio Ambiente da Alepe. Outras cinco proposições relacionadas ao tema seguem em tramitação (ver quadro no final da matéria).

Contexto nacional

REALIDADE – Ainda há 2,5 mil lixões funcionando no país, segundo a Confederação Nacional de Municípios. Fonte: Roberto Soares

O Brasil produz mais de 80 milhões de toneladas de resíduos sólidos urbanos anualmente, dos quais mais de 80% são materiais reaproveitáveis e recicláveis. O índice de recuperação, no entanto, fica em torno de 2% da massa coletada. E 40% do lixo ainda é levado para lixões ou aterros controlados – que, ao contrário dos sanitários, não têm tecnologias de proteção do solo e tratamento do chorume. De acordo com a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), o País perde R$14 bilhões por ano com o não aproveitamento dos recicláveis que têm essa destinação inadequada. 

Órgãos oficiais, como IBGE e Ipea, estimam que cerca de 400 mil pessoas no País têm a coleta de materiais recicláveis como a principal atividade remunerada, chefiando domicílios onde vivem cerca de 745 mil pessoas. O Atlas Brasileiro da Reciclagem 2022, da Ancat, identificou 2.018 associações e cooperativas de catadores no Brasil, reunindo em torno de 50 mil pessoas. A renda média de um trabalhador que integra um desses coletivos, no Nordeste, é de R$ 973.

Num mercado em que um número reduzido de indústrias recicladoras ocupa o topo da pirâmide da cadeia de valor, podendo ditar os preços do que compram, as cooperativas obtêm condições mais vantajosas na negociação. A diferença média é de 400% a mais do que é pago aos catadores individuais. Inclusive porque elas agregam valor aos materiais por meio de algum processo de beneficiamento.

POLUIÇÃO – Ação de limpeza no Rio Capibaribe reuniu pescadores e voluntários. Foto: Nando Chiappetta

Organização

Em Pernambuco, onde são geradas 4,4 milhões de toneladas/ano de resíduos sólidos urbanos, existem 63 cooperativas e associações de catadores, envolvendo um contingente de 1.164 trabalhadores, segundo o Fórum Estadual Lixo e Cidadania (Flic-PE). Já os não organizados são estimados em 8 mil pessoas. Somente no Recife, há 3.450 catadores avulsos registrados no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico). 

Nacionalmente, os catadores tem como marco no avanço de seus direitos a fundação do MNCR, em 2001. A partir dali, pessoas em situação de pobreza que quase sempre faziam a coleta de papelão, alumínio, plástico e vidro de forma autônoma e dispersa passam a construir uma  identidade coletiva na luta por melhorias para a categoria. 

Uma dessas conquistas foi consolidada na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei Federal nº 12.305/2010, que reconhece o trabalho dos catadores como atividade de relevância social, econômica e ambiental. A norma também determina a inclusão deles nas ações de coleta seletiva e incentiva a formação de cooperativas e associações. No mesmo ano, foi instituída em Pernambuco uma Política Estadual para, entre outros objetivos, promover a inclusão social dos catadores e eliminar o trabalho infantil no segmento.

Ações Municipais

De acordo com informações de 2021 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 1.664 municípios no País declararam adotar a coleta seletiva. Em 524 (31,5%) ela é feita por empresa contratada pela Prefeitura ou por catadores com apoio da prefeitura. Dentre estes, em 127 é feita exclusivamente pelos catadores. Apenas 3,7% possuem contrato formalizado para tal serviço com cooperativas e associações.

INCLUSÃO – Bertrand Alencar destaca a importância da parceria entre prefeituras e cooperativas. Foto: Roberta Guimarães

Superintendente de gestão do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Pernambuco (Crea-PE), Bertrand Alencar registra que poucos municípios em Pernambuco realizam a coleta seletiva em parceria com as cooperativas. Ele avalia como positivas iniciativas nesse sentido implementadas em Jaboatão dos Guararapes e Abreu e Lima, na Região Metropolitana do Recife. 

O engenheiro, que é consultor na área de resíduos e integrou um grupo de trabalho criado na Alepe para pensar ações voltadas à coleta seletiva, considera que o encerramento dos lixões traz uma contribuição fundamental para o problema social dos catadores. Bertrand reforça, porém, a importância de os prefeitos agirem também para a inclusão social de quem trabalha nesses espaços. 

“Os catadores têm que ser remunerados da mesma forma como se paga um empreiteiro ou uma empresa de coleta de lixo”, defende. “É importante as cooperativas serem reconhecidas como entidades de utilidade pública e receberem isenção de impostos como IPVA, IPTU e ISS. Com isso, vão melhorar cada vez mais o serviço que prestam à sociedade, ao meio ambiente,  à economia e à própria saúde das pessoas”, prossegue.

Audiência pública

PROTAGONISMO – Direito dos catadores a remuneração adequada foi tema de destaque no evento do Dia Mundial do Meio Ambiente. Foto: Nando Chiappetta

No mês de junho, por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, a Comissão da Alepe dedicada ao tema fez uma audiência pública para discutir a gestão de resíduos sólidos urbanos em Pernambuco, por solicitação do deputado Luciano Duque (Solidariedade). 

Presidente do colegiado, Romero Sales Filho (União) defendeu que o parlamento “acompanhe de perto os dados sobre a execução da política estadual de resíduos sólidos e incentive os entes municipais para desenvolverem projetos e serem beneficiados pelo ICMS Ecológico”. 

Já Duque considerou importante capacitar as gestões municipais para acessarem recursos públicos e privados que garantam a execução da PNRS e o fortalecimento da coleta seletiva. Também apoiou a luta dos catadores pelo pagamento por serviços prestados. “Nosso problema não é apenas erradicar os lixões, mas também fazer com que o novo modelo de tratamento de lixo seja o melhor possível tecnologicamente e humanamente, aproveitando as pessoas”, defendeu.

Na ocasião, Lindaci Gonçalves, de 51 anos, integrou a mesa dos trabalhos na condição de integrante do Movimento Nacional Eu Sou Catador e reforçou a principal pauta desses trabalhadores. “Somos uma categoria marginalizada, mas que é de suma importância para o meio ambiente. A gente tira toneladas por dia de resíduos das ruas e faz um trabalho de excelência. Nada mais justo do que sermos pagos por este serviço”, reivindicou. 

Projetos sobre resíduos em tramitação na Alepe

PL 160/2023, de Delegada Gleide Ângelo (PSB): Institui a Política Estadual de Desfazimento e Recondicionamento de Equipamentos Eletroeletrônicos

PL 277/2023, de Eriberto Filho (PSB): Institui diretrizes para a Política Agente Jovem Ambiental – AJA

PL 622/2023, de William Brigido (Republicanos): Institui a coleta seletiva em instituições de ensino

PL 659/2023, de Socorro Pimentel (União): Institui a Política Estadual de Incentivo ao Uso de Biomassa para a Geração de Energia 

PR 785/2023, de João Paulo (PT): Implementa o Programa de Boas Práticas em Resíduos Sólidos no âmbito da Alepe

PL nº 895/2023, de Gustavo Gouveia (Solidariedade): Estabelece “Bolsa Reciclagem” para cooperativas e associações de catadores

PL nº 897/2023, de Gustavo Gouveia: Remaneja parte do ICMS Socioambiental para prefeituras que implantarem coleta seletiva com a participação de catadores

PL nº 898/2023, de Gustavo Gouveia: isenta de IPVA os veículos utilizados no trabalho dos catadores

Participaram desta reportagem Eliza Kobayashi (edição de vídeos), João Cavalcanti Sitonio e Victor Marinho (infografia) e Maíla Diamante (redes sociais).