
COLETIVO – Mães da Saudade faz parte do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças, fundado em 1986 para garantir políticas públicas para os mais jovens. Foto: Roberta Guimarães
André Zahar
Rosineide Maria estava atendendo no balcão da padaria e, ao receber um telefonema, pediu ao cliente para esperar. Solange Djanira trabalhava no bairro da Ilha do Leite, Centro do Recife, cuidando de uma idosa. Rejane Barbosa preparava-se para entrar no banho. As três moradoras de Peixinhos, em Olinda (Região Metropolitana), guardam vivo na memória o momento em que receberam a notícia da morte de seus filhos. No processo de luto, a dor em comum as aproximou de outras mulheres do bairro que se uniram ao coletivo Mães da Saudade, surgido em 2012. Além do apoio psicológico, a iniciativa realiza debates, cursos, atos públicos e eventos culturais. Também busca produzir estatísticas alternativas às oficiais e propõe um novo olhar sobre o fenômeno da violência urbana.
O coletivo é uma das iniciativas do Grupo Comunidade Assumindo suas Crianças (Gcasc), fundado em 1986 – quatro anos antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – para garantir políticas públicas para os mais jovens. “Nós víamos os meninos crescendo, virando adolescentes e tendo as vidas ceifadas. Era uma dor muito grande. Ocorria muita chacina, grupo de extermínio, e a gente se questionava sobre o que os levava a morrer e o que poderia ser feito”, explica a educadora popular Elisângela Maranhão, coordenadora do Grupo.
Conhecida na comunidade como Anjinha, é ela quem coloca as mãos sobre os ombros de Rosineide quando a voz da aposentada falha e os olhos se enchem de lágrima ao falar de Adílio. “Eu perdi o sentido de viver quando perdi meu filho. Deixei de ter noção da vida, do tempo. Não me olhava em espelho, não sabia rir. Só fazia chorar. Depois que eu vim pra cá e conheci as histórias de outras mães, aquilo me fez abrir os olhos e ter vontade de viver”, relata Rosineide.
Rejane, que perdeu o filho de criação José Humberto destaca a importância da terapia comunitária, em que “todos choram juntos e se renovam juntos”. “Quando perdemos um filho, praticamente somos enterradas juntos. Eu não vivia: vegetava. Só fazia beber e chorar. Hoje tenho capacidade de dar força a outras mães”, diz.
Além de lidar com o trauma, as mulheres aprendem a dar um novo sentido à existência ao lutar pelas vidas de outros jovens. Foi com esse espírito que Solange começou a participar de visitas domiciliares a outras mães menos de um mês depois de perder seu filho Vitor, de 16 anos. A cuidadora e vendedora permanecia em silêncio e disfarçava o choro ao ouvir as histórias de outras mulheres. Apenas no final revelava a própria perda. “Todas se abraçavam e havia um carinho imenso. É algo que nos fortalece cada vez mais”, conta.
Medo de represália, descrença na Justiça e preconceito, quando se supõe que a vítima tenha envolvimento com a criminalidade, se misturam ao luto das mães da saudade. No começo, elas eram 30. Este ano, chegaram a 65. Para a antropóloga Catarina Morawska, que assessora o grupo, as periferias urbanas do Brasil vivem um luto endêmico, em que a experiência da perda de um ente marca a maior parte das casas. Por esse motivo, grupos de mães que perderam os filhos assassinados surgem atualmente em diversos Estados.
Na avaliação dela, um dos desafios na relação com o poder público é propor políticas para além da repressão. “Os dados produzidos pelo Estado focam muito na contabilização dos homicídios, e muito pouco se pensa sobre as pessoas que ficam. Buscamos produzir dados que desloquem a ideia de violência”, explica.
Em 2014, o GCASC fez uma pesquisa com famílias que tiveram parentes assassinados ou que estavam, naquele momento, presos. Foram visitadas 242 casas em 85 ruas de Peixinhos, onde habitam 1.053 pessoas. O estudo apontou uma relação entre desemprego, evasão escolar e vulnerabilidade à violência do bairro: quando faleceram, 77,3% dos jovens não tinham emprego e 74,4% estavam fora da escola.
“A maioria deles não teve oportunidade de emprego e nem chegou a trabalhar. São negros, nunca participaram de uma atividade de prevenção à violência, geralmente foram assassinados por causa de disputa de drogas. Nasceram e morreram na favela”, detalha Fernanda Alves, multiplicadora do projeto. “Esses meninos fazem parte da teia da exclusão social. Poderiam estar vivos se a gente tivesse uma política mais igualitária e inclusiva. Nosso foco é fazer com que as pessoas continuem vivas e sigam lutando, que a vida é uma eterna luta”, reforça Elisângela.
Números
A análise corrobora o que diz o Atlas da Violência 2019, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A pesquisa aponta que, em 2017, Pernambuco teve a terceira mais alta taxa de homicídios de jovens – 15 a 29 anos – no País, atrás apenas de Rio Grande do Norte e Ceará. Registrou também a terceira maior taxa de homicídio de negros.
Para Elisângela, faltam políticas de prevenção social à violência e, quando há, são frequentemente interrompidas. Na avaliação dela, o diálogo com as instituições governamentais é restrito. “Não somos adversários do poder público, estamos apontando caminhos que ele pode fortalecer, propondo ações de médio e longo prazo”, diz.

APOIO – “Policiais não podem só abordar, precisam conversar para saber a necessidade daquela mãe e proteger outros jovens”, defende Gleide Ângelo. Foto: Jarbas Araújo
A presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alepe, deputada Delegada Gleide Ângelo (PSB), entende que “o trabalho deve ser feito para que os jovens não morram e tenham outro caminho para seguir”. Ela, que chefiou a 9ª Delegacia de Homicídios, em Olinda, defende o reforço à atuação de polícia comunitária, ao lado de políticas de prevenção dentro das comunidades.
“Os policiais não podem só abordar, precisam conversar para saber a necessidade daquela mãe e proteger outros jovens. Já fui pra local de crime que estava no terceiro filho que a mulher perdia. Ela se agarrava comigo, chorando. Muitas fizeram de tudo para tirar o filho das drogas, mas não conseguiram, e pedem ajuda para não perder outro filho”, agrega. Na avaliação da parlamentar, o medo de represálias inibe a busca por mecanismos do Estado como o Centro Estadual de Apoio às Vítimas de Violência (Ceav), da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH).

RACISMO – “Há uma naturalização das mortes e da violência contra a população negra”, acredita Joelma Carla, integrante do mandato coletivo Juntas. Foto: Sabrina Nóbrega/Arquivo
Para Joelma Carla, integrante do mandato coletivo Juntas (PSOL), que preside a Comissão de Cidadania da Assembleia, a violência que atinge esses jovens é fundamentada no racismo. “Há uma naturalização dessas mortes e da violência contra a população negra na sociedade brasileira”, avalia ela, que reclama de cortes nos orçamentos dos programas de prevenção à violência.
Coordenador da Frente Parlamentar de Segurança Pública da Casa, o deputado Delegado Erick Lessa (PP) pontua que a realidade específica de cada local deve ser observada na elaboração das políticas públicas. E esse é um dos motivos pelos quais o colegiado tem realizado audiências públicas no Interior do Estado. “A política deve ser feita em diálogo com a população. Ninguém pode ficar desamparado e exposto à violência criminal”, observa ele, que destaca a redução de 23% nos homicídios ocorridos em Pernambuco no primeiro semestre de 2019, em comparação ao mesmo período de 2018.
Políticas públicas
De acordo com a Secretaria de Defesa Social (SDS), a Área Integrada de Segurança 7 (AIS-07), que engloba a cidade de Olinda, registrou 80 crimes contra a vida nos seis primeiros meses de 2019, uma redução de 11% em relação ao mesmo período de 2018, quando houve 90 casos. “Estatísticas de segurança mostram que 70% dos homicídios têm relação com o tráfico de drogas, dívidas de drogas ou disputa pelo território por parte de grupos com esse tipo de atuação”, informou.
“Foram inauguradas, no ano passado, nove delegacias de repressão ao narcotráfico. Isso foi possibilitado pela contratação de 1,2 mil policiais civis no início de 2018. A Polícia Militar, também reforçada com 500 profissionais em 2018, ampliou a presença nas ruas e programas de prevenção à violência, a exemplo do Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência, da PMPE)”, complementou a SDS, em nota.
Neste ano, a Alepe aprovou a Lei nº 16.569/2019, que estabelece a Política de Prevenção Social ao Crime e à Violência no Estado de Pernambuco. A norma busca induzir ações integradas de políticas públicas nos territórios de maior incidência criminal e estabelece como elementos centrais a mobilização e a participação social e comunitária.
Essas ações são coordenadas pela Secretaria Estadual de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas. Criada em 2018, a pasta conta hoje com programas como o Atitude, focado na redução de danos para os usuários de álcool e outras drogas; o Juventude Presente, que oferece capacitação profissional gratuita; e Governo Presente, que realiza ações de cidadania em escolas públicas nos finais de semana.
*Vídeos e fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Roberta Guimarães