A vida sob pontes e marquises

Em 20/02/2020 - 14:02
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André Zahar

VIVÊNCIA – “A realidade das ruas é sarcástica, cruel. Você passa por um período de fome até saber onde estão os lugares que oferecem alimentos”, lembra Jailson. Foto: Roberta Guimarães

Encontrar meios para se alimentar foi o primeiro aprendizado que Jailson José dos Santos, 43 anos, precisou adquirir quando passou a viver nas ruas de Petrolina (Sertão do São Francisco) e do Recife, após ser expulso de casa pelo pai devido ao uso abusivo de drogas. “Foi um pouco difícil no começo. A realidade das ruas é bem sarcástica, cruel. Você passa por um período de fome até saber onde estão os lugares que oferecem alimentos. Aprende a conviver com pessoas más e boas, fica sabendo onde dormir num lugar seguro e começa a formar uma nova família”, relembra.

Nesse contexto, o crack passou a ser, cada vez mais, uma forma de escapar da angústia que sentia: “Você fica naquela busca intensa de prazer, para não sentir, de novo, a tristeza. Por isso, as pessoas não param de usar essa droga. Se houvesse mais amor entre os homens, com certeza, ela ia parar de ter tanto poder na vida do ser humano. Mas, infelizmente, as pessoas são vistas como nada, então vão atrás de alguma coisa que proporcione prazer. Por isso, o crack domina totalmente”, opina.

Numa manhã, ao acordar com pessoas passando indiferentes por cima dele, no Centro da Capital pernambucana, Jailson decidiu procurar ajuda. Por meio do tratamento num Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (Caps-AD), conseguiu se recuperar e retomou o contato com a família. Hoje, é um dos coordenadores, em Pernambuco, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). A partir de sua jornada de 12 anos sem endereço fixo, propõe-se a estimular outros homens e mulheres que ainda vivem nessa condição para que possam conquistar e efetivar seus direitos.

“Muitos ainda sofrem com uma depressão forte e não acreditam mais no Poder Público. Acham que têm que se virar por conta própria”, diz ele, que lidera um grupo de cerca de 250 pessoas. “Em nossa abordagem, tentamos levantar o astral, mostrando que é possível – estudando, aprendendo as leis e os direitos – lutar para sair dessa condição desumana”, explica.

DEBATE – Em outubro de 2019, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Alepe promoveu audiência pública, conjuntamente com os colegiados de Cidadania e de Saúde, para tratar dos direitos da população em situação de rua. Foto: Nando Chiappetta

 

Números

60%dos indivíduos atendidos nos Centros POP são usuários de crack ou outras drogas.

A trajetória de Jailson resume alguns aspectos comuns a quem vive sem moradia convencional regular, principalmente em grandes centros urbanos. De acordo com a Secretaria Executiva de Assistência Social de Pernambuco, de 9,8 mil indivíduos atendidos nos oito Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centros POP) em 2018, 5,9 mil (60%) são usuários de crack ou outras drogas.

Já o Programa Atitude, da Secretaria Estadual de Políticas de Prevenção à Violência e às Drogas, recebeu, em 2019, 2,8 mil pessoas em situação de rua. Quase todos esses atendimentos (95%) foram motivados pelo uso de crack. A iniciativa promove ações de acolhimento e proteção integral aos usuários de substâncias químicas.

101 milpessoas estão em situação de rua no Brasil, segundo estudo feito pelo Ipea em 2016.

Em outubro de 2019, a Comissão de Desenvolvimento Econômico da Alepe promoveu uma audiência pública, conjuntamente com os colegiados de Cidadania e de Saúde, para tratar dos direitos da população em situação de rua. Políticas habitacionais e de geração de emprego foram as mais reivindicadas, assim como reajuste no auxílio-moradia e a ampliação dos Centros POP. Decidiu-se, naquele momento, criar um grupo de trabalho com representantes do Poder Público e da sociedade civil para buscar converter os temas discutidos em normas e políticas públicas.

Confira a audiência pública realizada pela Comissão de Desenvolvimento Econômico

Na ocasião, Vanilson Torres, representante do MNPR no Rio Grande do Norte, avaliou que medidas econômicas no plano federal, como as Reformas Trabalhista e da Previdência e o teto dos gastos públicos, vão levar ao aumento do número de pessoas morando nas ruas. Ele pediu que sejam assegurados recursos para essa população nos orçamentos públicos. “Estamos em dificuldade social, mas não precisamos de ajuda, e sim, de políticas públicas”, pontuou.

CENÁRIO – Secretária-executiva de Assistência Social do Recife, Geruza Felizardo aponta aumento de 45% na população de rua no município desde 2016. Foto: Nando Chiappetta

Na mesma discussão, a secretária-executiva de Assistência Social do Recife, Geruza Felizardo, assinalou a dificuldade dos municípios para financiar políticas assistenciais sem apoio do Governo Federal. De acordo com ela, o grupo em situação de rua na Capital pernambucana cresceu 45% desde 2016, passando de cerca de 1,1 mil pessoas para aproximadamente 1,6 mil em 2019.

 

Encaminhamentos

Algumas demandas feitas na audiência pública obtiveram resposta com a inauguração em dezembro, pela Prefeitura do Recife, de um abrigo noturno e dois restaurantes populares na área central da cidade. O baiano José Ivaldo da Conceição, 53 anos, observa que a organização dessa população para lutar por direitos tem trazido avanços como esses. “Eu, como morador de rua, hoje me sinto digno. Tenho um local para dormir, que é o abrigo noturno, e vou enveredar por caminhos melhores”, acredita. “As pessoas querem mudar. E nós estamos unidos buscando isso”, complementa.

PROPOSTA – Erick Lessa apresentou PEC estabelecendo diretrizes para apoio à população em situação de rua. Foto: Nando Chiappetta

Presidente da Comissão de Desenvolvimento Econômico, o deputado Delegado Erick Lessa (PP) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) prevendo diretrizes para apoio à população em situação de rua. O objetivo é criar base constitucional para a elaboração de leis e de uma política estadual para o segmento. De acordo com ele, “as transformações virão com a integração dos Poderes e o diálogo entre os mais diversos setores da sociedade”. 

O parlamentar reforça, ainda, o papel das prefeituras no enfrentamento ao problema: “Os municípios são responsáveis, em grande parte, pelo atendimento na ponta, estabelecendo uma política não só de redução de danos, mas de diagnóstico e de prevenção dos fatores que levam ao uso abusivo e ao vício de drogas e álcool. E têm um papel na construção de cidades mais justas e sustentáveis”, pondera.

 

Invisibilidade social

A formulação de políticas públicas esbarra, atualmente, em uma dificuldade: a falta de dados oficiais. Em 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua foi criada por meio de um decreto federal. Entre outras medidas, instituiu a contagem oficial dessas pessoas. Entretanto, a iniciativa ainda não foi incorporada ao Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que considera apenas domicílios permanentes. As prefeituras, que poderiam fazer um acompanhamento ainda mais dinâmico, por sua vez, não são obrigadas por nenhum dispositivo legal a fornecer tais dados.

Um levantamento realizado em 2016 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou em 101.854 pessoas o número da população em situação de rua no Brasil. Em 2018, Pernambuco instituiu o Comitê Intersetorial de Políticas Públicas para a População em Situação de Rua, espaço responsável por discutir a construção da política para o segmento no Estado. Em 2019, no entanto, o comitê nacional foi extinto pelo Governo Federal.

ACOLHIMENTO – Titular do mandato coletivo Juntas, Jô Cavalcanti defende que Poder Público dê visibilidade ao segmento: “Debate deve sair da ótica apenas da caridade”. Foto: Nando Chiappetta

Na avaliação de Lessa, as novas vagas em albergues e os restaurantes populares já são um efeito do trabalho do comitê estadual. Para tentar sanar o problema da falta de estatísticas em Pernambuco, ele apresentou um projeto de lei que condiciona os repasses do Fundo Estadual de Assistência Social (Feas) para os municípios ao encaminhamento semestral de um relatório sobre os indivíduos em situação de rua. O deputado é autor, ainda, da proposta legislativa que eleva de 2 para 5% o percentual de vagas que empresas contratadas pelo Estado devem reservar a jovens e adultos assistidos por programas sociais pernambucanos.

Titular do mandato coletivo Juntas (PSOL), a deputada Jô Cavalcanti, que preside a Comissão de Cidadania da Alepe, analisa que o Poder Público deve assumir o compromisso de dar visibilidade a essa parcela da sociedade. “O debate deve sair da ótica apenas da caridade. Hoje, só quem visa essas pessoas são as ONGs (organizações não governamentais) e a Igreja. O Estado também deve acolhê-las e impedir que mais gente seja empurrada para essa situação”, acredita.

 

Entrevista: Pedro Ferreira de Souza

O problema da desigualdade social mobiliza intensos debates na política e na academia nos últimos dois séculos, sem que se chegue numa “receita mágica” para resolvê-lo. Para piorar, estudos sobre o tema apontam que a queda na concentração de renda e riqueza ao longo da história aconteceu, quase sempre, de forma abrupta e catastrófica, em contextos de guerras ou crises profundas. 

Se, por um breve momento, nos anos 2000, o Brasil pareceu desafiar este consenso, obtendo, num quadro democrático, crescimento econômico e distribuição de renda, o otimismo logo se dissipou. Uma crise econômica e política se abateu sobre o País e um olhar mais apurado mostrou as limitações daquele processo.

ESTUDO – “Todas as fontes de dados mostram que, entre 2015 e 2018, tanto a pobreza como a desigualdade pioraram.” Foto: Estúdio Wtf/Divulgação

Ao olhar para o “topo” da pirâmide, com base principalmente em dados do Imposto de Renda, o sociólogo Pedro Ferreira de Souza, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), comprovou que pouco ou nada mudou. E que o Brasil continua entre os países mais desiguais do mundo. 

Por aqui, o 1% mais rico recebe em torno de 23% da renda total. Em outros países muito desiguais, como Estados Unidos e Colômbia, esse percentual fica próximo a 20%. E nos mais igualitários, como França e Japão, não ultrapassa os 10%.

O trabalho do sociólogo resultou no livro Uma história de desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013), que venceu o Prêmio Jabuti 2019. Leia, a seguir, a entrevista com o autor do que o sociólogo Celso Rocha de Barros considerou “o melhor trabalho produzido pelas ciências sociais no país nos últimos anos”.

 

Primeiramente, como podemos diferenciar pobreza e desigualdade?

Pobreza, como a gente mede normalmente, diz respeito a quem está abaixo de alguma linha de pobreza com valor absoluto, por exemplo: quem ganha menos de R$ 100, R$ 200. Desigualdade fala de diferenças de renda relativas. O que importa é se uma pessoa ganha 10, 20, 30 vezes mais do que outra. Embora as duas coisas estejam muito relacionadas, há diferenças, inclusive, no tipo de política que serve para combatê-las.

 

Nos últimos anos, houve avanços, no Brasil, no combate à pobreza e à desigualdade?

Nos anos 2000, a gente viu a renda média crescer e a pobreza e a desigualdade diminuírem. Esse processo durou uns 10, 15 anos. Muita gente passou a interpretá-lo como um resultado da democracia. Como se, depois da Constituição e de algumas reformas, a pressão do voto e a demanda por melhores condições de vida estivesse dando certo. 

De 2013 para cá a gente reconsiderou esse período. Primeiro, porque acabou em escândalos, crise política e econômica. Segundo, porque novos dados colocaram nossas conclusões anteriores um pouco em dúvida, no caso da desigualdade. A pobreza diminuiu, mas a desigualdade caiu muito pouco. Os mais pobres, de fato, melhoraram muito, mas os mais ricos também. Quem estava no meio foi um pouco pressionado pelos dois extremos. Com a crise, isso piorou: todas as fontes de dados mostram que, entre 2015 e 2018, tanto a pobreza como a desigualdade pioraram. 

 

Num contexto mais amplo, o que pode ser dito sobre o comportamento da desigualdade em regimes democráticos e autoritários?

Há uma discussão a respeito da capacidade da democracia para promover o crescimento econômico, a diminuição da pobreza e a desigualdade. No caso do crescimento, as evidências mais recentes mostram que, no longo prazo, a democracia parece ser boa. No caso da desigualdade, tem resultado para todos os gostos. De modo geral, quando se tem uma ditadura como a que houve no Brasil, no Chile e na Alemanha dos anos 1930, a desigualdade aumenta. E a ditadura é bem melhor em fazer a desigualdade aumentar do que a democracia é em reduzi-la. Democracia pressupõe negociação constante, e se os mais pobres são muitos e têm o poder do voto, os mais ricos são poucos mas detêm o capital econômico. É o natural da democracia, mas acaba favorecendo uma certa inércia na distribuição de renda.

 

É possível, em uma democracia, viabilizar uma proposta que harmonize interesses diversos em prol da redução da pobreza e da desigualdade?

No caso da pobreza, não tem problema. Se a renda de todo mundo crescer num ritmo igual, a desigualdade não vai mudar, mas a pobreza vai diminuir. Nos últimos 20 anos, houve uma redução da pobreza muito grande, apesar do aumento agora, durante a recessão. No caso da desigualdade, é mais complicado. Medidas mais radicais acabam ficando muito fora das opções políticas viáveis. Para conseguir uma conquista, [o Governo] acaba tendo que abrir mão em outras áreas. A desigualdade é afetada por muitas coisas. Mesmo que um governo queira melhorar, terá que fazer concessões em outras áreas que podem anular parte desses ganhos. Por isso, a desigualdade é difícil de ser alterada.

 

A desigualdade, conforme sua pesquisa, é produzida e reproduzida por uma série de pequenas e grandes decisões e acordos. E, da mesma forma, a distribuição de renda ocorre pelo efeito combinado – e muitas vezes não intencional – de políticas, programas e regulações. O que pode ser feito pelo Poder Público no Brasil?

Tem um monte de coisa que pode ser feita, o desafio é fazê-las junto. A reforma tributária está quicando. O Brasil tem uma carga tributária alta, dependente de imposto sobre consumo e tributos indiretos, enquanto os países ricos cobram muito mais sobre a renda e um pouco mais sobre a propriedade. Nosso Imposto de Renda, tem um monte de rendimentos isentos, como os dividendos, e poderia ter alíquotas mais altas. A política salarial para o alto escalão do funcionalismo público pode ser revista, o financiamento subsidiado para grandes empresários, protecionismo contra competição externa, oligopólios… O papel da educação também é importante, mas não resolve sozinho e, além de tudo, demora muito. O ponto é avançar em várias direções sem permitir o retrocesso em outras. Isso é o mais difícil.

 

Seu trabalho termina com uma conclusão pessimista sobre as perspectivas de o Brasil caminhar progressivamente para níveis de desigualdade semelhantes aos dos países ricos. Por quê?

O pessimismo vem da interrupção de uma trajetória que, bem ou mal, ainda era virtuosa. Os problemas ficaram mais claros com os escândalos políticos e as consequências ruins de decisões econômicas tomadas nos anos 2000. Nenhum país do mundo tem uma receita muito clara de como diminuir a desigualdade. E nenhum saiu do Brasil para virar a França pacificamente. Dado esse contexto, você olha a crise fiscal, a democracia que já não está mais a favor, o sistema político esfacelado, a economia que não se recupera, e é difícil ver uma luz no fim do túnel, no curto e médio prazo, para entrar num combate à desigualdade mais forte. E a gente não tem nenhum exemplo muito bom a seguir. Não vejo a desigualdade piorando muito. O Brasil já tem uma desigualdade muito alta, é pouco provável que piore muito. Acho muito improvável que o crescimento deslanche também. O mais provável é que continue mais ou menos como está, numa certa mediocridade, num equilíbrio ruim para o futuro, no médio prazo. Mas a gente sempre espera ser surpreendido.

 

*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Roberta Guimarães