Edson Alves Jr.
Como vai funcionar o sistema de proteção social brasileiro nos próximos 30 anos? Essa é a grande questão por trás das discussões sobre a proposta de Reforma da Previdência que tramita no Congresso Nacional. O Governo Federal argumenta que é preciso poupar mais de R$ 1 trilhão para garantir o equilíbrio fiscal e a retomada da economia. Já especialistas e entidades que participaram de debates realizados na Alepe avaliam que a medida implicaria em sacrifícios que atingirão, sobretudo, a classe trabalhadora.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 6/2019, apresentada à Câmara dos Deputados em fevereiro deste ano, foi debatida em seis audiências públicas realizadas pelo Poder Legislativo pernambucano – três delas, por uma Comissão Especial criada para aprofundar o tema, e as outras pelas comissões permanentes de Justiça e de Administração Pública. Os encontros abordaram os impactos da Reforma sobre segmentos específicos, como as mulheres, os profissionais de segurança pública, os professores e os trabalhadores rurais.

DEBATE – Comissão Especial discutiu impactos da Reforma sobre segmentos específicos, como os profissionais de segurança pública. Foto: Evane Manço
De acordo com o deputado Doriel Barros (PT), que preside a Comissão Especial sobre a Reforma da Previdência na Alepe, o objetivo do colegiado é fazer uma relatório que sirva de referência para que a sociedade possa “cobrar dos parlamentares federais um posicionamento condizente com o que a população pernambucana deseja”.
Para defender a proposta, a Comissão de Administração Pública convidou o secretário da Previdência do Ministério da Economia, Leonardo Rolim. Ele apresentou dados sobre a evolução demográfica brasileira para apontar a necessidade de reformar o sistema. Os números indicam que, em 1980, havia 14 pessoas em idade ativa (15 a 64 anos) para cada idoso acima de 65 anos. Por outro lado, a projeção para 2060 é que sejam apenas 2,35 pessoas em idade ativa para cada idoso. Saiba mais nesta reportagem especial sobre políticas públicas para idosos.
“Comparando o Brasil com outros países com o mesmo perfil etário, gastamos o dobro da porcentagem do PIB (Produto Interno Bruto) com a Previdência. Se hoje já há um déficit significativo, imaginem quando tivermos o triplo de idosos que temos?”, questionou Rolim. “É legítimo ser contra a nossa proposta, mas negar a necessidade de uma reforma é rejeitar a demografia e a matemática”, considerou.
O secretário nacional da Previdência argumentou, ainda, que o fim das aposentadorias por tempo de contribuição torna o sistema mais justo. “A média de idade por tempo de contribuição é de cerca de 54 anos, enquanto, na população mais pobre, os homens se aposentam aos 65 anos e as mulheres, aos 61,5. Ou seja, a patroa se aposenta dez anos antes da empregada doméstica”, colocou. “O nosso sistema previdenciário é o mais insustentável do mundo porque tem muitas injustiças e privilégios: aqueles que ganham mais se aposentam mais cedo e recebem grandes transferências de recursos do Estado.”
A perspectiva do economista Eduardo Moreira, que participou de seminário feito pela Comissão Especial sobre a Reforma da Previdência, é diferente. Segundo ele, a proposta na verdade retira recursos da população mais pobre. “O Governo diz que quer combater privilégios, mas desse R$ 1 trilhão que se pretende economizar em dez anos, 84% viriam das mudanças no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) e no abono salarial. Na prática, mais de 90% do custo da Reforma vai ser pago por quem recebe até três salários mínimos”, afirmou o professor.
Cenário estadual
Em Pernambuco, o impacto da mudança no Regime Geral de Previdência Social (RGPS) é ainda maior em razão da realidade do mercado de trabalho. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente ao primeiro trimestre deste ano, 54% dos trabalhadores pernambucanos estão contribuindo para o sistema. Em um Estado mais rico, como São Paulo, a proporção de contribuintes chega a 72%, sendo de 64% no Brasil como um todo.
Mesmo os trabalhadores que seguem mantendo vínculos empregatícios com alguma formalidade não conseguem fazer isso durante toda a vida. Na média, no Brasil, os trabalhadores contribuem nove meses a cada ano trabalhado, segundo estudo de 2017 realizado pela Consultoria Legislativa da Câmara Federal (ver quadro abaixo).
Levando em conta empregadores, trabalhadores do setor público e empregados com carteira assinada, são cerca de 1,7 milhões de pernambucanos com a contribuição para a Previdência prevista em vínculos formais. Assim, pelos dados da Pnad, sobram pouco mais de 180 mil trabalhadores contribuindo entre aqueles que fazem trabalho por conta própria, doméstico ou sem carteira assinada – ou seja, menos de 15% dos 1,8 milhões de trabalhadores que estão fora do mercado formal.
Outra característica específica do Estado é o grande número de beneficiários rurais no Interior. Em 81 % municípios pernambucanos, o valor injetado na economia pelas aposentadorias rurais é maior do que o repasse do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Pela proposta do Governo Federal, a aposentadoria rural ficará condicionada a uma contribuição de R$ 50 por mês para cada grupo familiar. “Isso dá R$ 12,50 por indivíduo em uma família de quatro pessoas. É uma contribuição simbólica”, considera Leonardo Rolim.
“Essa reforma propõe que a agricultora sertaneja tenha que pagar R$ 600 por ano como contribuição. Quem é que vai tirar do pouco que tem para contribuir para a Previdência Social, ainda mais em períodos de seca, como o que vivemos nos últimos anos?”, questionou a diretora da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras de Pernambuco (Fetape), Adriana Nascimento. “Falta o Estado regularizar uma contribuição sobre a comercialização dos produtos rurais.”
“A proposta de reforma é muito ampliar e mexe com muita gente, com diversas contradições. É preciso ter cuidado para que as mudanças não tragam mais dificuldades para a população”, avalia Antônio Moraes (PP), presidente da Comissão de Administração Pública da Alepe. “A questão da aposentadoria rural já é ponto pacífico que vai ser retirado. Se não fizeram isso, vão acabar de quebrar o Nordeste, já que pequenos municípios praticamente vivem da aposentadoria rural”, considera o deputado.
Alternativas
No seminário realizado na Alepe, Eduardo Moreira apresentou como caminho à Reforma uma retomada do crescimento econômico que solucionaria a crise fiscal e custearia o pagamento de aposentadorias, pensões e benefícios. “Se o Brasil tivesse obtido um crescimento medíocre de 2% ao ano desde 2014, teríamos um superávit a cada ano de mais de R$ 100 bilhões”, contabilizou. “Para enfrentar a mudança demográfica dos próximos anos, temos que incluir os milhões de desempregados, trabalhadores informais e desalentados de hoje”, propôs.

CAMINHO – Eduardo Moreira defende retomada do crescimento econômico para solucionar crise fiscal e custear o pagamento de aposentadorias, pensões e benefícios. Foto: Roberto Soares
Por outro lado, se o aumento da formalização reduz o déficit entre contribuições e pagamentos no curto prazo, ele aumenta o gasto com benefícios no futuro, segundo informações de nota técnica da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia. Segundo o texto, a permanência das regras atuais aponta para a insustentabilidade da Previdência, mesmo com aumento da formalização.
Já para Jackeline Natal, que é economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o que deve ser considerado numa mudança no sistema, mais do que a mudança demográfica, é a mudança na própria essência do mercado de trabalho. “Não podemos pensar a previdência como uma conta que fecha, mas como uma política de proteção social. Com o pacote tecnológica da nova revolução industrial, temos um contexto que aponta para uma exclusão social ainda maior. A realidade para os próximos anos pode ser muito diferente do que projetam os defensores dessa proposta de Reforma”, analisa Jackeline.
Outro ponto importante do debate é a proposta de capitalização. Com a mudança, em vez do sistema atual, em que os trabalhadores atuais pagam a aposentadoria de quem trabalhou no passado, cada trabalhador terá uma poupança própria para garantir a aposentadoria no futuro. Para Leonardo Rolim, esse modelo fará com que “a nossa geração possa garantir o custeio da própria Previdência, retirando esse encargo de nossos filhos e netos”. “E não é verdade que isso vai fazer com que o trabalhador ganhe menos que o salário mínimo, pois o piso vai ser garantido por um fundo próprio”, garante o secretário do Ministério da Economia.

CAPITALIZAÇÃO – Para Leonardo Rolim, modelo fará com que “nossa geração possa garantir o custeio da própria Previdência, retirando esse encargo de filhos e netos”. Foto: Evane Manço
Já os críticos da capitalização avaliam que ela pode intensificar as desigualdades atuais do mercado de trabalho. “Estão propondo que cada um tenha a sua própria poupança, sem contribuição dos patrões. Como as mulheres estão num contexto social em que absorvem mais o trabalho doméstico e a criação dos filhos, elas recebem salários menores, contribuem por menos tempo e, em troca, vão ter uma aposentadoria menor”, argumentou a deputada federal Marília Arraes (PT-PE), em audiência pública na Alepe.
Especialistas em Direito Previdenciário também criticam a possível instabilidade jurídica com a proposta, já que muitas definições sobre aposentadorias não estariam mais na Constituição Federal. “A PEC apresentada traz apenas regras de transição, relegando toda a mudança no sistema para lei complementar. Vejam a polêmica que está acontecendo agora com a regulação do porte de armas, feita sem nenhum debate. Imaginem se mudanças por medida provisória acontecerem na pensão por morte ou no BPC (Benefício da Prestação Continuada)?”, questionou Alexandre Triches, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário, em debate ocorrido em maio.
Segundo o Ministério da Economia, serão desconstitucionalizadas apenas as regras de cálculo e de acesso ao benefício das aposentadorias. A União não terá liberdade para mudar as normas sem que elas passem por debate e autorização prévia do Congresso Nacional, garantiu o secretário especial adjunto de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Bruno Bianco, em audiência pública da comissão especial na Câmara dos Deputados. “Se dá ainda mais legitimidade ao Congresso com outro modelo de regra e outra proposta de norma”, avaliou Bianco.
*Imagens em destaque (home e Notícias Especiais): Rinaldo Marques/Arquivo