Aprendendo a comer

Em 13/09/2018 - 14:09
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Gabriela Bezerra

Uma rotina baseada em alimentos açucarados, ricos em gordura e pouco nutritivos compromete a saúde, sobretudo durante a fase de crescimento. A adoção desse padrão alimentar e suas consequências têm chamado atenção de especialistas e do Poder Público. Por isso, a partir de novembro, crianças e adolescentes de todo o País deverão ter acesso à educação alimentar e nutricional nas escolas.

A partir de novembro, crianças e adolescentes de todo o País deverão ter acesso à educação alimentar e nutricional nas escolas.

Mesmo sem contar com uma disciplina específica, o tópico será abordado por meio de temas transversais. O assunto foi incluído na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em abril, por meio da Lei Federal nº 13.666/2018. A expectativa é de que a sala de aula sirva como local de conscientização sobre a importância de adotar uma alimentação saudável.

Na avaliação da nutricionista Luciana Nunes, “as ações de educação nutricional nas escolas são mais efetivas, já que são realizadas em grupo e, nessa fase, as crianças tendem a copiar as atitudes umas das outras”. Outra vantagem, aponta, é o fato de o contexto escolar abranger também as famílias. “A expectativa é de que os ensinamentos impactem gradativamente o planejamento alimentar dentro e fora de casa”, pontua.

Entre as estratégias que podem ser adotadas pelas escolas para tratar do tema, ela sugere atividades como feiras de ciências e, até mesmo, momentos de diálogo dos alunos com profissionais da área. Em Pernambuco, o Conselho Estadual de Educação informou que vai solicitar o cumprimento da legislação e debater o tema com a secretaria responsável.

Apelo comercial

Priorizar alimentos frescos e deixar de lado, ao máximo, os processados e ultraprocessados, é a recomendação básica do Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado pelo Ministério da Saúde em 2014. O documento destaca, ainda, a importância de “ser crítico quanto a informações, orientações e mensagens sobre alimentação veiculadas em propagandas comerciais”.

Infográfico diferenciando tipos de alimento. No exemplo in natura, constam abacaxi, peixe e milho. Já nos processados, há os exemplos de abacaxi em calda, peixe em conserva e abacaxi em conserva. Por fim, nos ultraprocessados, há suco em pó de abacaxi, nuggets de peixe e salgadinho de milho.

O público infanto-juvenil é o mais impactado pelas campanhas publicitárias. Já na década de 1970, o termo “desnutrição comerciogênica” foi relacionado à influência da indústria na saúde infantil. “Lembre-se de que a função essencial da publicidade é aumentar a venda de produtos e não informar ou, menos ainda, educar as pessoas. Avalie com crítica o que você lê, vê e ouve sobre alimentação em propagandas comerciais e estimule outras pessoas, particularmente crianças e jovens, a fazerem o mesmo”, alerta o texto do Governo Federal.

Neste ano, o Instituto Alana, que tem a promoção do direito e do desenvolvimento da criança como missão, lançou a campanha Abusivo Tudo Isso. A ação combate a venda de comidas que vêm acompanhadas de brinquedos, no intuito de frear o incentivo ao consumismo infantil e à adoção de hábitos alimentares não saudáveis. Com o programa Criança e Consumo, há 12 anos a entidade tem chamado atenção para os riscos da publicidade dirigida a esse público.

Assessor de relações governamentais do instituto, Renato Godoy conta que, atualmente, o principal desafio é a publicidade na internet, que estaria acontecendo “de forma completamente desenfreada e sem identificação de que são peças publicitárias”. “As propagandas em canais no YouTube e outras redes sociais acontecem à revelia da lei. A legislação prevê ilegalidade na publicidade destinada ao público infantil independente do meio em que ocorre a veiculação”, argumenta.

Outros atrativos

Ainda segundo a nutricionista Luciana Nunes, “cada vez mais, a indústria dos alimentos lança produtos com excesso de carboidratos refinados, gorduras, corantes, além de outras substâncias artificiais”. “Servem apenas para acentuar sabor, crocância e aparência, mas, nutricionalmente, não somam valor nenhum à alimentação”, explica a especialista.

Presidente do departamento de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, Virgínia Weffort explica que “a desnutrição pode ser proteico-calórica, com o quadro de magreza da criança, e também de deficiência de micronutrientes, chamada de fome oculta”. “Os fast foods dão a falsa impressão de que a criança está alimentada, quando, na verdade, ela pode estar ficando obesa e com deficiência de vitaminas e ferro”, destaca.

Professora do departamento de Morfologia e Fisiologia Animal da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Andréa Mendonça avalia que a globalização e a urbanização colaboraram com a mudança no padrão de consumo alimentar: “Hoje vivemos um paradoxo. Temos mais equipamentos para cozinhar, ao contrário de nossas avós, mas não temos tempo e disponibilidade para fazer a comida”.

A docente observa que, atualmente, “gasta-se mais com um alimento processado do que comendo um natural”. “Mas as pessoas foram condicionadas, ao longo dos tempos, a escolher o mais fácil”, argumenta.

Quanto mais cedo as pessoas tiverem conhecimento da importância de hábitos nutricionais saudáveis, melhor. “A má alimentação prejudica o crescimento físico, o desenvolvimento cognitivo, a imunidade e a prevenção de doenças crônicas não transmissíveis da vida adulta”, explica Virgínia Weffort. Entre as possíveis consequências, a médica cita diabetes, arteriosclerose, anemia por deficiência de ferro (ferropriva) e dificuldade de aprendizado. Acredita, também, que a escola pode contribuir para refeições melhores, tanto em sala de aula quanto na cantina.

Ensino público

Foto de merendeira entregando refeição a aluna de escola pública.

NORMA – De acordo com a Secretaria de Educação, educação alimentar e nutricional no processo de ensino e aprendizagem ocorre em Pernambuco desde abril do ano passado. Foto: Pedro Menezes/Secretaria Estadual de Educação

De acordo com a Secretaria de Educação, desde abril do ano passado a inclusão da educação alimentar e nutricional no processo de ensino e aprendizagem está garantida pela Instrução Normativa nº 03/2017. “A temática é bastante relevante nos dias atuais, visto que pessoas do mundo inteiro se mobilizam para cuidar do tipo de alimento que consomem, refletindo sobre os benefícios e malefícios dos produtos industrializados”, observa a superintendente do Programa de Alimentação Escolar de Pernambuco, Marieta Pinho Barros.

As ações realizadas nas unidades da Rede Estadual cabem à Superintendência do Programa de Alimentação Escolar (Supae), por meio de equipe de nutricionistas. A gestora explica, no entanto, que esses profissionais não conseguem realizar as atividades de educação alimentar em todas as escolas.

Diante desse cenário, Marieta analisa que “é muito relevante a atuação de toda a equipe pedagógica das escolas no desenvolvimento de ações permanentes em sala de aula”. As iniciativas poderão ser promovidas em parceria com a equipe de nutricionistas de cada Gerência Regional de Educação e da sede do Programa.

A alimentação oferecida nas escolas também atende a critérios para garantir uma refeição saudável aos estudantes, com restrição de produtos ultraprocessados e valorização de alimentos in natura ou minimamente processados. “A Secretaria fornece diariamente refeições equilibradas, em conformidade com cardápios elaborados e acompanhados pelas equipes de nutricionistas”, afirma a superintendente, citando a presença de frutas, verduras e legumes.

Foto de frutas à venda no Mercado da Encruzilhada, no Recife.

EQUILÍBRIO – Alimentação oferecida nas escolas da rede pública estadual atende a critérios para garantir uma refeição saudável aos estudantes, com restrição de produtos ultraprocessados e valorização de alimentos in natura ou minimamente processados. Foto: João Bita/Arquivo Alepe

Deputados divergem sobre IMC nas escolas

A realização anual do cálculo de Índice de Massa Corporal (IMC) dos estudantes de escolas públicas e privadas foi proposta na Alepe. Na justificativa do Projeto de Lei nº 1602/2017, o deputado Adalto Santos (PSB) pontua que “o País, ainda hoje, conta com graves índices de desnutrição, bem como, em sentido oposto, a população sofre de uma verdadeira epidemia de obesidade”. “Embora (o IMC) seja um teste simples, pode indicar, de forma fácil, graves riscos à saúde relacionados à alimentação”, frisou o texto.

A proposição foi debatida na Comissão de Justiça, em agosto, e rejeitada pela maioria dos parlamentares presentes. O parecer do relator apontou inconstitucionalidade da proposta, por gerar despesa ao Governo do Estado. Na ocasião, também houve discussão acerca do papel das escolas na educação alimentar.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o IMC (veja como calcular no box abaixo) contribui para diagnósticos de desnutrição e obesidade, conforme orientação da Organização Mundial de Saúde. “Mas, junto ao diagnóstico, deve-se ter medidas para correção da alimentação na escola, uma preocupação importante para promover a saúde de crianças e adolescentes”, acrescenta o Departamento Científico de Nutrologia da instituição.

Infográfico ensina a calcular o Índice de Massa Corporal (IMC) a partir da fórmula peso (em quilogramas) dividido pelo quadrado da altura (em metros).

Clique aqui e compare o resultado com as tabelas de avaliação de peso em crianças e adolescentes do Ministério da Saúde.

Relator do PL na Comissão de Justiça, o deputado Antônio Moraes (PP) defendeu a rejeição. “Apesar de ser uma louvável iniciativa em prol da proteção à saúde de estudantes, o projeto apresenta vícios de inconstitucionalidade, uma vez que a verificação do IMC envolve custos, tais como a disponibilização e remuneração de profissionais capacitados para a realização de exames, bem como a manutenção de um registro com as informações pertinentes para cada aluno”, avaliou.

Chamando atenção para o fato de que a medida acrescenta uma atribuição para as instituições de ensino, Teresa Leitão (PT) também foi contrária. “Devemos cuidar do que de fato é obrigação da educação, ao invés de encher as escolas de tarefas que não cabem a elas, e sem um objetivo definido.” Edilson Silva (PSOL) concordou: “O mérito do projeto é mostrar a preocupação, mas não abarca soluções”.

Foto de profissionais medindo altura de adolescente no Projeto IMC, realizado na Escola Jordão Emerenciano.

PROJETO DE LEI – Realização anual do cálculo de IMC dos estudantes de escolas públicas e privadas foi proposta na Alepe. Foto: Gil Menezes/Secretaria Estadual de Educação

Um dos favoráveis à proposta, o deputado Tony Gel (MDB) classificou o PL como “um avanço extraordinário”. “Não adianta ter educação física se a criança não está bem nutrida. É como os exames oftalmológicos nas escolas, em que se descobriu que a dificuldade de aprendizado estava relacionada à dificuldade de enxergar”, argumentou. Rodrigo Novaes (PSD) também defendeu a iniciativa: “Não gera despesa, na medida em que a Rede Estadual de Educação tem profissionais capazes de executar a tarefa. Acredito que o projeto pode despertar novas políticas públicas voltadas para a questão”.

Papel dos pais

“As escolas estão cada vez mais conscientes, modificando os lanches oferecidos e incentivando bons hábitos alimentares. No entanto, essa não é uma função apenas da escola, é também um dever familiar.” É o que avalia a nutricionista Luciana Nunes, que tem como uma das linhas de atuação justamente a nutrição infantil. “Não são as crianças que decidem a lista do supermercado, mas os pais. Apenas eles têm o poder de decisão quanto à alimentação que realizam e oferecem aos filhos”, explicita, apontando o exemplo como uma importante forma de convencimento para a adoção de opções mais saudáveis.

 

*Fotos em destaque: Rinaldo Marques/Arquivo Alepe (home) e Gil Menezes/Secretaria Estadual de Educação (Notícias Especiais)