Ivanna de Castro
A legislação brasileira já proibiu expressamente a mulher de desempenhar uma profissão sem autorização prévia do marido, de ter domínio sobre os filhos menores e de exercer direitos políticos, como votar e ser votada. O Código Civil de 1916 chegou a declará-la relativamente incapaz, exigindo que seus atos fossem assistidos pelos pais ou maridos. Esses artigos foram suprimidos do nosso Direito, é verdade, mas permanece a compreensão de que o ordenamento legal precisa ser constantemente aprimorado para superar violências e injustiças remanescentes.

HISTÓRICO – Legislação brasileira já proibiu expressamente a mulher de exercer direitos políticos, como votar e ser votada. Hoje elas representam um quinto dos parlamentares na Alepe. Foto: Roberto Soares
Levantamento feito pelo Banco Mundial para avaliar como as leis de cada país afetam a vida das mulheres mostra que, no Brasil, elas têm 81,9% dos direitos legais conferidos aos homens. Para chegar a esse índice, foi verificada a existência de normas focadas em garantir ao público feminino acesso a benefícios sociais, ao crédito e às instituições, bem como daquelas direcionadas ao combate às discriminações no mercado de trabalho e às violências de gênero.
Rendimento médio das trabalhadoras em 2018 equivalia a 79,5% do recebido pelos homens.
Fonte: IBGE
“A busca pela igualdade jurídica de gênero requer forte determinação política e um esforço concertado de governos, sociedade civil, organizações internacionais, dentre outros. Porém, reformas legais e regulatórias podem servir como um importante catalisador da melhoria das vidas tanto de mulheres quanto de suas famílias e comunidades”, afirma o documento do Banco Mundial (tradução livre).
O trabalho legislativo em defesa das mulheres vem ganhando vigor nos últimos anos, e essa perspectiva deve ser contínua, avalia a promotora de Justiça Maria de Fátima Ferreira, que coordena o Núcleo de Apoio à Mulher do Ministério Público de Pernambuco (MPPE). “Quando se trata dos direitos das mulheres, não podemos descansar. É necessária uma vigilância constante e um construir eterno não apenas para abrir novos espaços, mas também para não se destruir direitos já alcançados”, avalia a promotora, que destaca o esforço exigido das mulheres nesse processo de conquista de direitos.
Mulheres dedicam quase o dobro do tempo dos homens às tarefas domésticas.
Fonte: IBGE
“Infelizmente, para aprovarmos a Lei Maria da Penha, uma norma que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, foi preciso, literalmente, que o sangue, o suor e as lágrimas de uma mulher fossem derramados”, lamentou a promotora, referindo-se à história de seguidas violências sofridas pela brasileira que ficou paraplégica após sobreviver a uma tentativa de homicídio promovida pelo seu então marido. Ela registra, ainda, que a legislação foi aprovada apenas depois de o Brasil ter sido responsabilizado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) por negligência, omissão e tolerância em relação à violência praticada contra as brasileiras.
“Depois da Lei Maria da Penha, observamos uma sucessão de normas criadas, também, a partir dos sofrimentos físicos e emocionais impostos a mulheres reconhecidas nacionalmente, mas que simbolizam um grupo enorme de outras vítimas anônimas”, registrou Ferreira, citando a Lei Joana Maranhão, que altera as regras de prescrição dos crimes sexuais praticados contra crianças e adolescentes, e a Lei Carolina Dieckmann, responsável por tipificar crimes digitais após a atriz ter tido sua privacidade invadida. “Até quando será preciso que as mulheres sejam sacrificadas para despertar a sociedade para os problemas que enfrentamos?”, questiona.
Dos trabalhadores domésticos, 92% são mulheres – em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de baixa renda.
Fonte: Ipea
A promotora integra, atualmente, uma comissão nacional organizada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública a fim de analisar lacunas na legislação que estejam dificultando a proteção de mulheres, bem como pensar em novos tipos penais de repressão. “É tema de urgência. Estamos, por exemplo, sugerindo a criação do crime de violência psicológica e de perseguição obsessiva (stalking), atos que hoje não podem ser punidos por ausência de previsão legal”, explica Ferreira.
Professora de Direito e coordenadora do Manual Jurídico Feminista (Editora Letramento), Carolina Ferraz chama atenção, no entanto, para “tentativas de retrocessos em curso”. Ela cita projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que busca criminalizar todos os tipos de aborto, mesmo em caso de estupro ou risco para a gestante. Lista, também, a recente tentativa da Reforma Trabalhista de autorizar o trabalho insalubre para gestantes, iniciativa posteriormente barrada pelo Supremo Tribunal Federal.
“É preciso defender um Direito e uma legislação menos hostil às mulheres, e isso passa, necessariamente, por uma maior representatividade feminina em nossos parlamentos”, avalia. “Temos uma legislação que invisibiliza nossas diferenças e desigualdades. Por isso, faz-se necessário um trabalho contínuo para que as normas enxerguem as mulheres em suas particularidades, como aquelas em situação de rua, as que vivem a violência doméstica, as com deficiência e as que enfrentam assédio no ambiente de trabalho”, acrescenta.

JURISTA – “É preciso defender um Direito e uma legislação menos hostil às mulheres. Isso passa, necessariamente, por uma maior representatividade feminina em nossos parlamentos”, avalia a professora Carolina Ferraz. Foto: Sabrina Nóbrega/Arquivo
“Vale registrar que nossa representação no Congresso é honrosa, combativa, aguerrida, mas representa apenas 15% do total – isso em um um contingente populacional majoritariamente feminino”, destaca Ferraz. A avaliação é compartilhada por Maria de Fátima Ferreira. “Com maior presença feminina, haverá um olhar diferenciado para essas questões. O primeiro passo é ter mais mulheres, mas precisamos ir além. Precisamos contar com representantes conscientes da realidade desigual que enfrentamos e isso será possível por meio da educação de todos, independentemente do gênero”, acrescenta.
Veja reportagem sobre presença feminina na política
Na Alepe
A bancada feminina da Assembleia Legislativa de Pernambuco é formada por dez deputadas, de um total de 49 legisladores. “Eu parto da ideia de que a representação só é efetiva quando existem diversos corpos em locais como o nosso, de poder e prestígio”, afirma a deputada Simone Santana (PSB), primeira vice-presidente da história Alepe, instituição que completa 185 anos em 2020. A parlamentar defende não apenas um quadro maior de mulheres no Legislativo, mas também uma maior diversidade delas.

PARTICIPAÇÃO – “Representação só é efetiva quando existem diversos corpos em locais como o nosso, de poder e prestígio”, acredita Simone Santana. Foto: Roberto Soares
“Essa questão de local de fala é verídica, porque homens jamais saberão como é ser uma mulher numa sociedade tão machista como a nossa e, consequentemente, não pensarão em ações que nos contemplem. Do mesmo modo, precisamos de mulheres diversas em raça, classe e sexualidade, para que não haja uma universalização de demandas”, entende a deputada, autora de propostas legais focadas no combate à desigualdade de gênero. Foi dela a iniciativa da Lei Estadual nº 16.669/2019, que obriga a igualdade de premiações em eventos esportivos que contem com recursos do Poder Público estadual.
“Nada mais adequado que atribuir premiação equivalente aos atletas competidores em mesma categoria, independentemente de seus gêneros. Afinal, o que está em voga são suas habilidades esportivas”, pontua a parlamentar, registrando a disparidade nas premiações de campeonatos internacionais de futebol. Simone cita que a edição masculina da Copa Libertadores da América de 2019 concedeu um prêmio 568 vezes maior que o pago às atletas mulheres.
Outra iniciativa com foco na mulher aprovada em Pernambuco em 2019 foi a Lei Estadual n° 16.587/2019, que obriga os condomínios residenciais a informarem os órgãos de segurança sobre episódios de violência que tenham sido registrados no livro de ocorrências do local. A proposta foi apresentada pela deputada Delegada Gleide Ângelo (PSB), que preside a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alepe.

ATUAÇÃO – Para Gleide Ângelo, foco legislativo na mulher não é “privilégio, mas necessidade”: “Precisamos reparar a desigualdade que existe entre os gêneros”. Foto: Evane Manço
“Diante do fato de haver uma crescente concentração populacional residindo em condomínios, acreditamos que os síndicos e os administradores podem dar valorosas contribuições no combate à violência doméstica e familiar. Essa é mais uma medida que pode ser adotada para que cada vez mais os agressores sintam-se coibidos de praticar esses atos” argumenta a parlamentar, que trouxe à Alepe a experiência acumulada no trabalho exercido na Polícia Civil de Pernambuco, onde atuou no enfrentamento à violência de gênero.
“Vocês não têm noção do que é uma mulher chegar toda ‘quebrada’ na delegacia, olhar para você e dizer: ‘Eu vou para onde quando sair? Vou comer o quê? Eu não tenho emprego’”, relatou a deputada, em discurso no Plenário. “A gente só vai mudar essa realidade se pensar e fizer políticas públicas para as mulheres, para as nossas filhas, nossas netas, a fim de que se tenha uma sociedade justa e equilibrada”, acrescentou, reafirmando que o foco legislativo na mulher não se trata de “privilégio, mas de necessidade, pois precisamos reparar a desigualdade que existe entre os gêneros”.
Ao todo, 15 proposições que visam o público feminino foram aprovadas pela Alepe em 2019:
*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Roberto Soares