André Zahar
Era uma vez, por volta do século 19, um país onde os livros eram mantidos em espaços restritos. Apenas a nobreza e o clero tinham acesso às recém-surgidas bibliotecas, que eram proibidas para grande parte da população por conter documentos sagrados e algumas poucas edições literárias existentes à época.
Um cenário bem diferente do que encontramos, em novembro, na Praça Ator Barreto Junior, na comunidade do Coque, região central do Recife. Na ocasião, dezenas de crianças aglomeravam-se entre livros, debaixo de uma lona, para escutar a história de Barba Azul contada pela professora Erica Montenegro.

EVENTO – Debaixo de uma lona, a professora Erica Montenegro reuniu crianças para escutar histórias. Foto: Rafael Andrade/Divulgação
A atividade fazia parte da Festa Literária do Coque (Felic), realizada pela Biblioteca Popular do Coque. O espaço comunitário surgiu em 2007, por iniciativa da pedagoga Maria Betânia do Nascimento. Mas a ideia já vinha sendo amadurecida há duas décadas. “Nos anos 1990, havia muita violência. As crianças eram usadas pelo tráfico, andavam armadas… Eu resolvi mudar esse cenário, e só trocando uma arma pelo livro isso é possível”, diz.
Com o apoio da paróquia e algumas doações, a biblioteca começou a ser montada. De início, Betânia fazia alfabetização de crianças e rodas de leitura. A partir das demandas e parcerias, expandiu as atividades para contação de histórias, mala de leitura, sussurro poético, trocas de cartas, curso de fuxico e até mediação de conflitos, quando necessário. No espaço alugado – o projeto ainda não tem sede própria –, estudantes aproveitam para estudar em épocas de prova e vestibular.
“Minha intenção é fazer com que o Coque seja leitor, mesmo que seja um trabalho de formiguinha. Não é fácil. Primeiro, você tem que conquistar a família, que, muitas vezes, não costuma ler”, explica ela, que comemora a contribuição para aprovação, em 2017, de cerca de 350 moradores do bairro em universidades públicas e privadas. “Emprestamos 450 livros por mês. E sempre voltam”, assegura.
A Biblioteca Popular do Coque integra a Releitura, rede que reúne sete equipamentos comunitários do Recife. À frente do espaço Amigos da Leitura, no Alto José Bonifácio (Zona Norte do Recife), Fábio Rodrigues conta que, embora os territórios tenham características próprias, os problemas enfrentados são semelhantes. “Essas unidades terminam sendo o único lugar de cultura ou de acesso à literatura aonde as pessoas podem ir para ler, levar livros para casa, buscar informações e acessar outros mundos de conhecimento”, prossegue.
Membro da Secretaria Executiva da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), ele avalia que a articulação fortalece o propósito de difusão da literatura como direito humano ao acesso de todos. “Pesquisas mostram que o brasileiro não gosta de ler, mas a gente vê na nossa comunidade pessoas que leram mais de 90 livros em cinco meses”, revela o arte-educador.
De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada pelo Instituto Pró-Livro em 2016, 44% dos brasileiros não são considerados leitores, conforme os critérios da sondagem, e 30% afirmam nunca terem comprado um livro. Em média, o brasileiro lê 2,43 livros até o fim a cada ano, e as publicações religiosas ocupam o topo das preferências.
Para especialistas, a leitura é um instrumento de conquista de poder, que amplia a visão do mundo e a capacidade crítica, possibilitando aos indivíduos o exercício da cidadania. Apesar da popularização da educação e do livro, o acesso a obras e a espaços de fruição ainda é um desafio. “É importante que exista um local diário de leitura de histórias na rotina da criança. A escola pode convidar parentes e contadores, promover mala de leitura, visita a feiras literárias…”, sugere a professora Ana Carolina Perrusi, do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Para ela, “a curiosidade é muito evidente na criança, que tem interesse pelo livro, pois fala a linguagem dela, da imaginação e da fantasia”. A pesquisadora, que estuda a apropriação da linguagem escrita pelos pequenos, observa que as bibliotecas públicas ainda estão pouco presentes no interior dos Estados. E nas escolas, muitos desses ambientes são usados como depósitos. Segundo Perrusi, faltam, ainda, políticas públicas para atrair profissionais que façam a mediação de experiências de leitura.
A curiosidade é muito evidente na criança, que tem interesse pelo livro, pois fala a linguagem dela, da imaginação e da fantasia.”
A Lei Federal nº 12.244/2010 estabeleceu que, em dez anos, todas as escolas brasileiras, públicas ou privadas, devem dispor de biblioteca e profissionais especializados para atuar como mediadores de leitura. Em Pernambuco, as leis estaduais de números 12.047 e 12.119, de 2001, determinam, respectivamente, a presença de sala de leitura na Rede Estadual de Ensino e a prioridade no Orçamento para eventos e promoções de incentivo à leitura na rede escolar. Desde os anos 1990, o Ministério da Educação (MEC) possui programas de distribuição de livros para bibliotecas e de incentivo ao uso dentro e fora dos colégios.
Atualmente, Pernambuco desenvolve, por meio da Secretaria de Educação, ações como formação continuada dos profissionais da biblioteca escolar e doação de acervo para bibliotecas comunitárias. “Das 1.051 escolas da rede estadual, 837 possuem biblioteca e 51 são dotadas de sala de leitura em funcionamento e com recursos multimídia”, informa a pasta em nota.
“Está em processo de execução a reforma do setor infanto-juvenil da Biblioteca Pública do Estado, que contará com novo mobiliário, jogos educativos, acervo atualizado, ambiente específico para leitura, projeto de iluminação e climatização. Além disso, já houve recuperação estrutural, reforma do setor de obras raras e reparos da praça de informação (ambiente que disponibiliza 40 computadores para acesso ao público)”, agrega.
A Secretaria de Cultura, por meio do Projeto Outras Palavras, leva escritores e artistas para falar de literatura com os estudantes. Em três anos, a iniciativa atingiu quase 590 escolas, mais de 17 mil estudantes e entregou mais de 6 mil livros às bibliotecas. O Plano Estadual do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca também está sendo elaborado com participação da sociedade.
Presidente da Comissão de Educação e Cultura da Alepe, a deputada Teresa Leitão (PT) considera que, para ter êxito, “o plano deve extrapolar os governos e tornar-se uma exigência permanente da sociedade”. “Precisamos fortalecer a relação entre o Governo e a demanda crescente da população, uma tarefa complexa e necessária. Um projeto como esse deve ter uma definição orçamentária atribuída por lei, para o investimento nesses espaços”, assinala.
A estudante Joanna Soares, 12 anos, que frequenta a Biblioteca Popular do Coque, diz que descobriu o espaço acompanhando a mãe. “Através disso, eu comecei a gostar de vir pra cá e ler. Os livros me trazem vida e, com eles, consigo viajar sem sair do lugar”, constata.
*Fotos em destaque: Pixabay CC0 (topo), Rafael Andrade/Divulgação (home) e Ginny CC BY-SA 2.0/WikimediaCommons (Notícias Especiais)