Nordestinos na mira

Em 06/12/2018 - 14:12
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PRECONCEITO - Após as eleições presidenciais de 2018, casos de discriminação contra os nordestinos se intensificaram na internet. Foto: Costa Neto/Secult-PE

PRECONCEITO – Após as eleições presidenciais de 2018, casos de discriminação contra os nordestinos se intensificaram na internet. Foto: Costa Neto/Secult-PE

Ivanna de Castro

“Escuto pessoas me chamando de cangaceiro, terra-seca, passa-fome. São situações muito dolorosas e recorrentes”, relata o empresário Antônio José Guimarães Júnior, de 35 anos. Natural do Recife, ele vive em São Paulo há mais de uma década e revela que, por conta da procedência regional e do sotaque que transmite na fala, já foi vítima de ofensas verbais, constrangimentos públicos e retaliações no ambiente acadêmico. Dados de entidades que recebem denúncias desse tipo de preconceito mostram que o caso do empresário não é isolado.

195
queixas relativas à discriminação em razão da opinião eleitoral foram registradas pelo Observatório da Intolerância Política da OAB-PE.

“Em 2006, um professor da faculdade falava sobre as férias passadas no Recife, descrevendo o lugar e as pessoas de forma depreciativa. Levantei, me identifiquei como pernambucano, e ele continuou com as afirmações ofensivas”, narra. “Relatei à diretoria da instituição, que disse que tomaria as medidas cabíveis. Mas o que aconteceu foi que o professor me reprovou na matéria”, complementa Guimarães Júnior, informando que optou por mudar de escola ao final do semestre. “Outras humilhações por quais passei nesse período me desmotivaram a seguir em frente com algum tipo de processo judicial.” Hoje em dia, contudo, o empresário diz não mais tolerar a discriminação.

Muitas vezes, as ofensas são praticadas no meio digital, como revela o estudante Ramon Sobral, de 15 anos, adepto de jogos on-line. “Quando faço alguma comunicação com meu time, por exemplo, percebem pelo meu sotaque que sou do Nordeste e ficam me chamando de baiano, paraibano, atrasado. Dá pra sentir que, por isso, minha participação no jogo não é levada a sério”, lamenta.

Praticar, induzir ou incitar a discriminação em virtude da raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional é crime previsto na Lei Federal n° 7.716/1989, que determina o pagamento de multa e prisão entre um e três anos. O ato pode configurar, também, injúria racial, de acordo com o Código Penal. “A caracterização das ofensas, sejam elas orais, em redes sociais ou por vias de fato, depende da análise de cada caso. É importante que a vítima faça a representação criminal, presencialmente ou nos sites dos ministérios públicos estaduais ou federal”, esclarece a procuradora do MPF em Pernambuco Ládia Mara Albuquerque. A instituição recebeu 18 representações criminais entre janeiro e novembro deste ano.

ELEIÇÕES - "Casos são recorrentes, mas se tornaram mais evidentes após o último pleito, com pessoas desqualificando a escolha feita pelos nordestinos", analisa Leonardo Accioly. Foto: Kerol Correia/Arquivo Alepe

ELEIÇÕES – “Casos são recorrentes, mas se tornaram mais evidentes após o último pleito, com pessoas desqualificando a escolha feita pelos nordestinos”, analisa Leonardo Accioly. Foto: Kerol Correia/Arquivo Alepe

Após as eleições presidenciais de 2018, casos de discriminação contra os nordestinos se intensificaram na internet. A avaliação é do vice-presidente da seccional pernambucana da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), Leonardo Accioly. “Os casos são recorrentes, mas se tornaram mais evidentes após o último pleito, com pessoas desqualificando a escolha feita pelos eleitores, atribuindo uma condição inferior à decisão pelo fato de ela vir do eleitorado do Nordeste”, analisou.   

Atenta ao movimento crescente, a entidade criou o Observatório da Intolerância Política, canal on-line que recebeu, até o fim de novembro, 195 queixas relativas à discriminação em razão da opinião eleitoral – grande parte delas envolvendo declarações contra nordestinos. A OAB-PE está finalizando o relatório, que será levado ao MPF. “As redes sociais dificultam a identificação dos agressores, muitas vezes escondidos pelo anonimato. Apesar disso, é importante lembrar, quem comete crime nesse meio não está imune à responsabilização”, alerta Accioly.  

Nesse mesmo sentido, a Alepe criou, em novembro, a Comissão Parlamentar Especial de Enfrentamento à Intolerância Política. O colegiado temporário foi proposto pela deputada Laura Gomes (PSB). “A iniciativa advém de preocupação apurada em diálogos com as comissões de Defesa da Mulher e de Direitos Humanos, além da sociedade civil, que se sente ameaçada pelo crescente cerceamento na formação de opinião política, temendo pela liberdade de pensamento individual”, explicou a parlamentar.

Origens

“Em momentos de crise econômica, quando a distribuição dos recursos públicos se torna mais disputada em virtude da escassez, as questões regionalistas se intensificam. Nessas ocasiões, o imaginário construído há anos sobre o Nordeste é jogado contra ele”, analisa o historiador e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Durval Muniz de Albuquerque Júnior.

ESTEREÓTIPO - “Inicialmente, a palavra só trazia o sentido de localização geográfica. Foi ao longo dos anos 1920 que o conceito regionalista passou a ser trabalhado por intelectuais e lideranças políticas", explica Durval Júnior. Foto: Fundaj/Divulgação

ESTEREÓTIPO – “Inicialmente, a palavra Nordeste só trazia sentido de localização geográfica. Foi ao longo dos anos 1920 que o conceito passou a ser trabalhado por intelectuais e lideranças políticas”, explica Albuquerque Júnior. Foto: Fundaj/Divulgação

Autor do livro A invenção do Nordeste e outras artes (Cortez Editora, 2012), o historiador explica que esse recorte regional surge no Brasil no início do século 20, momento em que o País era dividido espacialmente apenas entre Norte e Sul. O termo aparece pela primeira vez no documento de criação da Inspetoria Federal de Obras contra as Secas, em 1919. “Inicialmente, a palavra só trazia o sentido de localização geográfica. Foi ao longo dos anos 1920 que o conceito regionalista passou a ser trabalhado por intelectuais e lideranças políticas em torno de uma ideia de identidade”, esclarece.

Albuquerque Júnior conta que a região, à época, perdia a centralidade econômica e política, em razão do declínio das atividades açucareira e algodoeira e, paralelamente, da ascensão do café e do processo de industrialização do Centro-Sul. “As elites da região, sentindo-se abandonadas pelo Estado Nacional na distribuição de recursos, passam a se articular porque chegam à conclusão de que, agindo isoladamente, não teriam como enfrentar o poder crescente de São Paulo e Minas Gerais”, diz.

Intelectuais, artistas e imprensa somaram-se à campanha em torno da unidade do Nordeste. O professor destaca o papel relevante do jornal Diario de Pernambuco e do sociólogo Gilberto Freyre que, em 1924, cria o Centro Regionalista do Nordeste, em que intelectuais se reuniam para debater a questão. Segundo o historiador, quatro temas estruturaram a identidade regional: seca, coronelismo, cangaço e messianismo. “É uma construção nostálgica, marcada pelo saudosismo de um passado de glória das elites rurais que estão em declínio. É a saudade do Sertão, do engenho, da vida rústica, da sociedade estamental e da própria escravidão”, completa.

HISTÓRIA - No início do século 20, região perdeu a centralidade econômica e política em função do declínio das atividades açucareira e algodoeira e, em paralelo, a ascensão do café e o processo de industrialização do Centro-Sul. Foto: Fundaj/Divulgação

HISTÓRIA – No início do século 20, região perdeu a centralidade econômica e política em razão do declínio das atividades açucareira e algodoeira e, paralelamente, da ascensão do café e do processo de industrialização do Centro-Sul. Foto: Fundaj/Divulgação

A valorização da cultura folclórica e artesanal, reconhecida como resultado do encontro das três raças, integra a noção de identidade. “Não é associada a uma cultura urbana e moderna, instituindo-se como um contraponto à cultura ‘estrangeirada’ do Centro-Sul”, analisa. O historiador explica que esse imaginário, construído à época na região, foi divulgado para o restante do País, que incorporou a ele outros elementos, como o racismo contra os mestiços do Nordeste. “Construiu-se um lugar que, ao final, tornou-se muito incômodo para a região, vista como um ambiente tradicional, atrasado do ponto de vista da história”, verifica.

… incontestavelmente, o Sul do Brasil, isto é, a região que vai da Bahia ao Rio Grande do Sul, apresenta um tal aspecto de progresso em sua vida material que forma um contraste doloroso com o abandono em que se encontra o Norte, com seus desertos, sua ignorância, sua falta de higiene, sua pobreza, seu servilismo.” (Jornal O Estado de São Paulo, 3/9/1920, citado no livro A invenção do Nordeste e outras artes)

Para a doutora em Antropologia Ciema Silva de Mello, coordenadora no Museu do Homem do Nordeste, no Recife, valorizar somente o passado e ignorar as transformações do último século reforçam o estereótipo. “O Nordeste ficcional é apresentado, até hoje, como um território da seca, majoritariamente povoado por beatos, cangaceiros e retirantes. No entanto, nas ruas, não são esses personagens que você encontra. Somos berço de grandes intelectuais do passado e do presente, temos grandes metrópoles na região e nossas universidades formam mão de obra altamente qualificada em áreas tecnológicas”, exemplifica.

DIVERSIDADE - "Não existe um homem do Nordeste genérico. Somos muitos e tentar comprimir essa diversidade em um conceito é uma injustiça com os 53 milhões de brasileiros que vivem aqui", acredita Ciema de Mello. Foto: Fundaj/Divulgação

DIVERSIDADE – “Não existe um homem do Nordeste genérico. Somos muitos e tentar comprimir essa diversidade em um conceito é uma injustiça com os 53 milhões de brasileiros que vivem aqui”, acredita Ciema de Mello. Foto: Fundaj/Divulgação

Na avaliação da estudiosa, a tentativa de definir um perfil do homem nordestino simplifica e empobrece uma realidade complexa. “Um território que vai do Sul da Bahia ao Norte do Maranhão engloba uma diversidade tremenda. Não existe um homem do Nordeste genérico. Somos muitos e tentar comprimir essa diversidade em um conceito é uma injustiça com os 53 milhões de brasileiros que vivem aqui. Em parte, somos também responsáveis por isso quando reproduzimos essa concepção”, opina.

Para Ciema de Mello, compreender a diversidade e abandonar conceitos simplificadores são caminhos para enfrentar o preconceito. “Temos que pôr fim à insistência de veicular a seca eterna, como se aqui não houvesse prosperidade. Cabe a todos nós fazer o movimento no sentido inverso e mostrar que não somos melhores que outros brasileiros, tampouco subalternos”, afirma, explicando que o Museu do Homem do Nordeste trabalha, justamente, com a proposta de mostrar o mosaico sociológico da região, combatendo a estereotipização.

“O visitante do museu encontra mais perguntas do que respostas. Não há pudor em apresentar a dúvida. Dizer que não sabemos o que é o Nordeste como região não nos diminui, pelo contrário, nos aumenta”, avalia. A opinião é compartilhada por Albuquerque Júnior. “Precisamos romper com a ideia de que somos um espaço parado no tempo, sem lugar para a cultura contemporânea. Somos complexos, com várias temporalidades convivendo. É preciso assumir nossa modernidade.”

 

*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Costa Neto/Secult-PE