Marcos Miguel
A cada 15 horas, um brasileiro registra denúncia de intolerância religiosa, segundo dados de 2017 do Ministério dos Direitos Humanos. Quase 40% das vítimas seguem religião de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. Os casos de discriminação religiosa no Brasil chegaram a 210 no primeiro semestre de 2018, também segundo dados do órgão.
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VIOLÊNCIA – Líder de um terreiro em Olinda, a professora de história e mãe de santo Jane de Oyá conta que sofreu agressão verbal no transporte público. Foto: Sabrina Nóbrega
A maior parte das vítimas são mulheres (41,18%) e 15,06% do total têm entre 25 e 30 anos de idade. Além disso, somente de janeiro a julho deste ano, 13 crianças e adolescentes sofreram com a discriminação. As agressões costumam partir de pessoas próximas às vítimas, como vizinhos (26,77%) e irmãos (5,12%). Assim, um terço dos casos ocorre dentro da casa da vítima.
A intolerância por motivo religioso é considerada, desde 1997, crime de ódio, previsto na Lei Federal nº 9459. A pena para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito religioso pode chegar a três anos de prisão.
Gente como a professora de História e mãe de santo Jane de Oyá, líder de um terreiro em Olinda, na Região Metropolitana do Recife. Em audiência pública sobre o tema, realizada na Alepe em agosto, Mãe Jane relatou um caso de violência verbal por um neopentecostal dentro de um ônibus de transporte público. “Ele me menosprezou, falou o que quis da minha religião. Disse que eu era o diabo e que iam descer várias tochas de fogo mandadas por Deus para me queimar”, lembra. “Quando ele parou de falar, eu cantei pra Oxalá. Em seguida, quando desci o viaduto, tinha um carro de polícia. Pedi, como cidadã, que levassem ele preso.”

PROPOSTA – Para Pai Edson, texto do Estatuto da Liberdade Religiosa dá brechas a violações contra grupos minoritários. Foto: Sabrina Nóbrega
A comunidade que frequenta terreiros sofre violências como essa de forma cotidiana, na opinião do pai de santo Edson de Omolu, também de Olinda. Ele critica o conteúdo do Projeto de Lei nº 1773/2017, de autoria do deputado Henrique Queiroz (PR), que propõe a criação de um Estatuto da Liberdade Religiosa em Pernambuco. Na avaliação de Pai Edson, o texto abre brechas para violações contra grupos religiosos minoritários.
O representante da Diocese Anglicana do Recife, Joanildo Buriti, afirmou que a norma não traz inovação jurídica, já que a liberdade de crença é um direito assegurado pela Constituição Federal. “Numa perspectiva de que o Estado deve ser laico, a garantia da liberdade da informação tem que vir junto com o tratamento isonômico das religiões. Ou seja, o Estado não pode legislar nem atuar de tal maneira a dar preferência, privilegiar ou favorecer um credo determinado em detrimento de outros”.
Legislação
No Brasil, a Constituição Federal determina que o Estado é laico – que significa que não tem religião oficial nem deveria favorecer um credo em detrimento de outro. A Carta Magna também assegura, no artigo 5º, que nenhum cidadão seja alvo de discriminação por conta da crença. O texto constitucional garante a todos os brasileiros o “livre exercício de cultos religiosos e tendo garantida a proteção aos seus locais de culto e às suas liturgias”.
Já o artigo 208 do Código Penal trata dos crimes contra o “sentimento religioso”: escarnecer de alguém publicamente por motivo de crença, impedir ou perturbar cerimônia e vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto. As penas previstas são multa ou, ainda, detenção de um mês a um ano. Se há uso de violência no ato, a pena aumenta em um terço.
Mais recentemente, a Lei nº 9.459/1997 classificou como crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões, por meio de alterações na Lei nº 7716/1989, a qual define os delitos resultantes de preconceito de raça ou de cor.

ALVO – “Toda e qualquer religião não cristã é perseguida”, afirma Mãe Elza de Yemojá, que integra a Coordenadoria de Igualdade Racial do Estado. Foto: Rinaldo Marques/Arquivo Alepe
Para Mãe Elza de Yemojá, integrante da Coordenadoria de Igualdade Racial da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, as religiões africanas são, de fato, as que mais sofrem discriminação. “Mas não são só elas. Toda e qualquer religião não cristã passa por essa dificuldade. Mas a gente compreende que o momento é de perseguição a quem é de matriz africana porque, infelizmente, a sociedade foi ensinada a ter preconceito (e mantê-lo) sobre pessoas e comportamentos que não sejam cristãs.”

LEGISLAÇÃO – Joanildo Buriti afirmou que liberdade de crença é direito assegurado pela Constituição Federal. Foto: Sabrina Nóbrega
Ela orienta as vítimas de preconceito a procurar a delegacia mais próxima para registrar boletim de ocorrência e, de posse do número do documento ou de uma cópia dele, encaminhar a denúncia à Ouvidoria da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado para o acompanhamento do caso, pelo telefone (81) 3182-7607.
Denúncias de agressões também podem ser feitas pelo Disque 100, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. Além do número de telefone, o serviço conta com uma página na internet em que podem ser denunciados comentários ou posts em redes sociais. Basta selecionar o tema da denúncia, inserir o link e o comentário denunciado. Tanto as ligações recebidas pelo Disque 100 quanto os registros criados pelo site podem ser anônimos e sigilosos.
*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Breno Laprovítera