Para alavancar a produção cultural

Em 28/04/2017 - 08:04
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BETH DE OXUM – “Há 17 anos, quando eu era musicista de Lia de Itamaracá, a gente tentou apoio, via lei de incentivo, e não chegou nem perto. Mestres da cultura popular morriam sem gravar um CD.” Foto: Renato Spencer/Santo Lima/Divulgação – Foto da home: Costa Neto/Secult-PE

André Zahar

“Há 17 anos, quando eu era musicista de Lia de Itamaracá, a gente tentou um apoio, via lei de incentivo, e não chegou nem perto. Naquela época, maracatu, afoxé e coco não eram considerados cultura. Ícones como ela, Selma do Coco e Mestre Salustiano não conseguiam nada. Mestres da cultura popular morriam sem gravar um CD. Eu vi a luta dessas pessoas”.

A declaração de Mãe Beth de Oxum – produtora do Coco do Guadalupe, em Olinda, e integrante do Conselho Estadual de Política Cultural – se refere à situação que precedeu a criação, em 2002, do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura). Desde então, esse se tornou o principal mecanismo do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC), reduzindo a chamada “política de balcão”, quando os artistas dependiam de relações diretas com a iniciativa privada e o setor público para obter apoio financeiro a seus projetos. Por meio do Funcultura, produtores e artistas disputam hoje seleções públicas anuais e, se aprovados por uma comissão, recebem recursos diretamente do Estado. Atualmente, há cerca de 2 mil inscritos ativos no Cadastro de Produtor Cultural (CPC).

Para se ter uma ideia da importância do Funcultura, um relatório encaminhado à Alepe em 2015 indica, naquele ano, cerca de 9,5 mil postos de trabalho gerados pelas iniciativas contempladas. Àquela altura, quase 3 mil projetos haviam passado pelo crivo dos editais.

Joana D’Arc Ribeiro, coordenadora do Ponto de Cultura Poço Comprido, na zona rural de Vicência (Mata Norte), atuou em projetos aprovados, como a Festa de Engenho, a Mostra Rural de Cinema e uma formação em artesanato da fibra da bananeira. No cenário atual da cultura nacional – que ela considera um “desastre” –  Joana qualifica o Funcultura como “uma das poucas alternativas positivas”.

“São milhares de locais e pessoas que desempenham alguma atividade cultural a partir do Edital do Funcultura. A cada ano, mais produtores e grupos se cadastram, sendo uma forma positiva de mover a economia da cultura. Vejo com imensa relevância a existência dele e espero que ele possa incluir mais e mais fazedores de cultura”, observa a produtora, que defende, para isso, a desburocratização do processo de inscrição.

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EMILIE LESCLAUX – Para a produtora cultural, articulação da sociedade civil fortalece instrumentos de fomento. Foto: Henrique Genecy

Em seus 15 anos, a consolidação do Fundo foi acompanhada por ajustes e revisões anuais. Em 2007, por exemplo, foi lançado o edital exclusivo para fomento ao Audiovisual. À frente da Cinemascópio Produções, Emilie Lesclaux contou com apoio do Funcultura para a realização dos filmes O Som Ao Redor (2012) e Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, e Permanência (2014), de Leonardo Lacca, além do Janela Internacional de Cinema do Recife.

Para ela, o Funcultura “tem crescido e se fortalecido nos últimos dez anos com a pressão e articulação da sociedade civil” e hoje, em relação ao audiovisual, é “um dos melhores editais do Brasil em termos de importância dos recursos, critérios e composição de comissões”. “Quanto ao funcionamento, tem problemas sérios: burocracia excessiva, ausência de investimento na digitalização das inscrições e da prestação de contas, atrasos nas deliberações e liberação dos recursos. Acho que o fundo cresceu muito, mas a estrutura para administrá-lo dentro da Fundarpe é insuficiente”, avalia. Ela reivindica, ainda, mais ações para a formação e, principalmente, para a preservação.

Mudanças – No final de 2016, o Governo do Estado encaminhou para a Assembleia Legislativa o Projeto de Lei nº 1157, que propõe alterações no Sistema de Incentivo à Cultura. A proposição recria o Mecenato Cultural (patrocínio privado a projetos em troca de isenções fiscais) e institui o Crédito Pernambucano de Incentivo à Cultura (Credcultura), por meio do qual serão concedidos empréstimos financeiros aos produtores. Os dois novos mecanismos contarão com fundos de financiamento próprios.

Em relação ao Funcultura, a proposta prevê um orçamento anual mínimo de R$ 36 milhões, com percentuais fixos para as categorias, incluindo duas novidades: o Funcultura Governamental, para ações dos municípios e para gastos com a própria administração do SIC, e o Microprojeto Cultural, destinado a produções de baixo orçamento. O projeto prevê, ainda, a realização de concurso público para os quadros do SIC no prazo de dois anos.

O secretário de Cultura, Marcelino Granja, diz que as mudanças buscam garantir mais recursos, democratizar o acesso, permitir parcerias e criar instrumentos de participação. Visto com ressalvas pela classe artística quando anunciado em 2015, o Mecenato Cultural de Pernambuco (MCP) será, segundo o gestor, acompanhado de medidas para evitar problemas que, no passado, contribuíram para a sua extinção. Entre eles, a concentração em produtores, artistas e linguagens, e o reduzido poder decisório da sociedade. De acordo Granja, a Comissão de Análise de Projetos (CAP) do MCP e do CredCultura funcionará nos mesmos moldes da Comissão Deliberativa do Funcultura.

“Mudanças no Sistema de Incentivo à Cultura buscam garantir mais recursos, democratizar o acesso, permitir parcerias e criar instrumentos de participação.”

Marcelino Granja, secretário de Cultura do Estado

“Os projetos do Mecenato serão aprovados pelo mérito e orientados pela política pública. Haverá limites de projetos e de valor e será exigida das empresas uma contrapartida destinada ao CredCultura”, explica. “Além disso, com a criação dos dois novos fundos, o dinheiro não vai diretamente para o produtor cultural, como ocorria antes”, acrescenta o gestor estadual, ressaltando que há empresas que deixam de financiar a cultura em Pernambuco devido à inexistência desse mecanismo.

O Microprojeto Cultural, segundo Granja, será pago na modalidade de prêmio, o que garantirá seleção e pagamentos simplificados. Ele afirma, ainda, que a informatização do processamento do Funcultura está sendo implementada e que os atrasos nas liberações de recursos são pontuais, devendo-se, principalmente, ao passivo referente ao período de 2010 a 2014, quando o valor disponibilizado nos editais foi superior ao de receitas verificadas.

Durante a discussão na Alepe, deputados fizeram considerações sobre a proposta. Para Waldemar Borges (PSB), o projeto é um marco na relação do Estado com o setor cultural. “Ele cria uma institucionalidade que dá mais segurança e transparência e abre novas possibilidades de financiamento, com controle social”, avaliou. Já Rodrigo Novaes (PSD) pediu mais atenção às cidades menores. “No Interior, nas festas de padroeiro, de aniversário, há dificuldade de obter recursos. É importante uma regra específica para municípios com menos de 50 mil habitantes, e que ali as empresas não precisem dar a contrapartida prevista”, sugeriu.

Também favorável à proposta, a presidente da Comissão de Educação e Cultura, Teresa Leitão (PT), que foi responsável pelo relatório no colegiado, cobrou o envio de um novo projeto para a inclusão específica do setor de cultura popular nos incentivos. “Hoje, isso é feito via produtor, e os brincantes e mestres populares ficam prejudicados”, observou. “As instituições organizadas, com expertise na área, levam vantagem na captação de recursos. É preciso alcançar os brincantes de modo geral. E isso vai acontecer. O projeto ainda não é o ideal, mas tem um grande alcance”, endossou Tony Gel (PMDB).

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DEBATE – Audiência pública realizada em março discutiu o SIC com produtores e agentes culturais. Foto: João Bita

Em audiência pública realizada no dia 22 de março, produtores e agentes culturais questionaram a criação da categoria do Funcultura Governamental, alegando que o fundo deveria ser destinado apenas para a produção independente, pois os projetos do Estado contam com recursos previstos em lei orçamentária. Também houve pedidos para inserção de ações afirmativas na lei, com o objetivo de incluir minorias.

Na ocasião, os representantes do Governo do Estado argumentaram, porém, que a nova categoria se justifica para suprir despesas administrativas, antes custeadas pelos produtores, bem como para permitir que transferências entre fundos estaduais e municipais ocorram por meio de editais. “A gente não pode investir apenas na produção independente, precisamos cuidar dos equipamentos públicos, justamente para que essa produção possa circular”, disse a presidente da Fundarpe, Márcia Souto. Quanto ao debate sobre políticas de cotas, de acordo com ela, isso precisa ser feito no âmbito do Plano Estadual de Cultura e dos editais de cada categoria do Funcultura.

Para Beth de Oxum, o acesso ao SIC tem sido democratizado e as verbas aumentaram consideravelmente como decorrência das pautas levantadas pela sociedade. “Temos a prática de monitorar as políticas implementadas e, quando é o caso, fazer oposição. Quanto mais a sociedade participa, mais perspectivas de melhoras a gente tem”, afirma.