Decisão do STF acirra embate entre entidades protetoras dos animais e defensores da vaquejada

Em 10/02/2017 - 11:02
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CALENDÁRIO – São quase 300 eventos por ano em Pernambuco. Veterinários alertam para danos físicos e emocionais aos bois. Foto: Allan Damasceno/Divulgação

Por Ivanna de Castro

Prática esportiva centenária, com impacto na economia nordestina, a realização da vaquejada foi considerada ilícita, em outubro do ano passado, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou inconstitucional uma lei cearense que regulamentava esse tipo de evento. Em maioria apertada – apenas um voto de diferença – os ministros entenderam que a atividade representa maus-tratos aos animais e viola o meio ambiente. A margem estreita do resultado, no entanto, revela não apenas a falta de consenso entre os 11 magistrados. Os debates que vêm surgindo após a decisão mostram que as divergências vão além do Tribunal.

Para o relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, a vaquejada representa “indiscutível tratamento cruel aos animais” e confronta o artigo 225 da Constituição Federal, que garante que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, (…) impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Entre os que divergiram da posição está o ministro Dias Toffoli, o qual avalia que “a atividade pertence à cultura do povo nordestino, é secular e há de ser preservada dentro de parâmetros e regras aceitáveis para o atual momento cultural de nossa vivência”.

Veterinária e professora da disciplina de Bem-Estar Animal na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Ana Paula Monteiro explica que os danos aos bichos são físicos e emocionais. “Mesmo com os equipamentos de segurança, os bois podem sofrer fraturas, danos na cauda e rompimento de órgãos. Há ainda uma situação de estresse envolvida, já que são colocados em ambientes barulhentos e de risco”, avalia, criticando qualquer uso do animal para entretenimento. “Será que é realmente necessário fazermos um boi correr para ser derrubado pela cauda em pleno século 21?”, questiona.

A decisão do STF foi celebrada pela presidente da Federação das Associações Organizadas da Sociedade Protetora dos Animais de Pernambuco (Faos-PE), Luciane Nascimento. “Os prejuízos são mais extensos do que imaginamos. Além dos acidentes nos eventos, há ainda os danos provocados nos treinos. Esses são mais corriqueiros, porque não há fiscalização”, analisa. Ela contesta o aspecto cultural do evento. “Não podemos entender dessa forma um ato que provoca dor e sofrimento emocional a outro ser vivo. Cultura é algo positivo, que temos orgulho de preservar e repassar aos nossos filhos”, opina.

1874
Primeiro registro da vaquejada no Brasil

Por outro lado, defensores da manutenção da atividade, cujo primeiro registro no Brasil data de 1874, acreditam que proibir a vaquejada significa negar o reconhecimento de uma prática responsável por garantir o sustento de milhares de pessoas. Segundo estimativas da Associação Brasileira de Vaquejada (Abvaq), os eventos – que incluem leilões, feiras agropecuárias e shows – são responsáveis por 120 mil empregos diretos e outras 600 mil ocupações indiretas, envolvendo vaqueiros, produtores de artigos de couro, vendedores ambulantes e outros profissionais que se beneficiam dos festejos. Ainda de acordo com a entidade, Pernambuco promove cerca de 300 vaquejadas, todos os anos, e R$ 600 milhões são movimentados anualmente com a atividade em todo o País.

O assessor jurídico da Abvaq, Eduardo Torres, reconhece que podem ocorrer acidentes com os bois, mas garante que a prática tem se tornado cada vez mais organizada e fiscalizada, a fim de coibir maus-tratos. “Em Pernambuco, já havíamos firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público estadual, em que nos comprometemos a seguir regras que garantam o bem-estar dos animais”, explica. “Regulamentar evitaria vaquejadas inseguras. No entanto, quando se tentou criar uma lei para isso, o STF foi contrário”, critica.

Entre as regras estabelecidas pelo TAC, estão a presença obrigatória de veterinários em todos os eventos, espessura mínima de 50 centímetros do colchão de areia no qual o animal será derrubado e a obrigatoriedade do uso de protetor de cauda no boi. Contudo, após a decisão do Supremo, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) emitiu nota técnica orientando os promotores a coibir as vaquejadas no Estado “para evitar que se possa equivocadamente considerar o TAC como legitimador de evento já declarado inconstitucional”, explicita o documento.

Legislativo – Contrários à posição do Judiciário, alguns congressistas se articulam para garantir, por meio de mudanças na Carta Magna, a preservação da vaquejada. O deputado federal pernambucano João Fernando Coutinho (PSB) é autor da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 270/2016, que define rodeios e vaquejadas como manifestações do patrimônio cultural imaterial brasileiro. “Vamos lutar pela preservação da nossa cultura e pela manutenção de milhares de empregos, especialmente neste momento econômico delicado”, expressa.

Existem, pelo menos, outras duas PECs nesse mesmo sentido em tramitação no Congresso. O parlamentar – que vê inconsistência em se proibir apenas a vaquejada e deixar de fora das discussões outras práticas que envolvam animais, como hipismo e rodeio, por exemplo – acredita que o caminho é regulamentar.

Dois projetos de lei nesse sentido já tramitam na Alepe: os PLs de nºs  575 e 577 de 2015, propostos, respectivamente, pelo ex-deputado Miguel Coelho (PSB), eleito prefeito de Petrolina, e por Henrique Queiroz (PR). “O objetivo é garantir a segurança, estabelecendo requisitos mínimos a serem cumpridos pela organização”, esclarece Queiroz, que espera que o MPPE autorize as vaquejadas já agendadas. “Liberações excepcionais poderão minimizar os prejuízos, uma vez que há muitos investimentos contratados”, acrescenta.

Para o presidente da Comissão de Meio Ambiente da Alepe, deputado Zé Maurício (PP), a questão exige participação da sociedade. “Existe toda uma cultura e uma cadeia produtiva envolvidas. Ao mesmo tempo, estamos falando da preservação do meio ambiente que, sem dúvida, precisa ser garantida. O que quer que seja decidido precisa ser feito com bom senso”, opina o parlamentar. “Culturas podem ser mudadas, mas isso não deve ser feito de forma impositiva e atropelada. O debate democrático é o melhor caminho”, pondera.

“Não concordo com o sofrimento dos animais, mas também vejo a decisão do STF desconectada das peculiaridades culturais e regionais”, afirma Henrique Weil, professor de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito Damas. Para o estudioso, a transformação de práticas culturais “precisa passar pelo crivo da deliberação democrática”, na qual os indivíduos possam expor seus argumentos e escolher coletivamente o melhor caminho. “Na falta de tradição democrática pulsante e ativa, como é o caso do Brasil, o que se verifica é a ascensão do Judiciário preenchendo o espaço deliberativo, o que produz um fechamento no rol de intérpretes das normas constitucionais”, pontua.

Fique sabendo:

No dia 30 de novembro de 2016, o presidente Michel Temer sancionou a Lei nº 13.364, que reconhece a vaquejada e o rodeio como manifestações da cultura nacional e patrimônios culturais imateriais. Diferentemente de uma Proposta de Emenda à Constituição, a norma não altera a Carta Magna, mas sugere um alinhamento entre Governo e Congresso contra a decisão do STF.