
Parecer 4754/2021
Texto Completo
TRAMITAÇÃO EM CONJUNTO DO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 674/2019 DE AUTORIA DO DEPUTADO DORIEL BARROS E DO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1441/2020, DE AUTORIA DA DEPUTADA JUNTAS
PROPOSIÇÕES QUE VISAM ALTERAR A LEI Nº 9.465, DE 1984. PROIBIÇÃO DE PULVERIZAÇÃO AÉREA DE AGROTÓXICOS E PESTICIDAS. MATÉRIA INSERIDA NA ESFERA DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DA UNIÃO, ESTADOS E DISTRITO FEDERAL PARA DISPOR SOBRE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA, DEFESA DO SOLO E DOS RECURSOS NATURAIS, PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE E CONTROLE DA POLUIÇÃO E PROTEÇÃO DE DEFESA DA SAÚDE (ART. 24, VI E XII DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) E NA COMPETÊNCIA MATERIAL COMUM DA UNIÃO, ESTADOS, DISTRITO FEDERAL E MUNICÍPIOS PARA PROTEGER O MEIO AMBIENTE E COMBATER A POLUIÇÃO EM QUALQUER DE SUAS FORMAS (ART. 23, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MODELO DE REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS ESTABELECIDO PELO CONSTITUINTE ORIGINÁRIO NO QUAL AS LEIS ESTADUAIS DEVEM OBSERVAR AS NORMAS GERAIS FEDERAIS. INCOMPATIBILIDADE DOS PROJETOS EM ANÁLISE COM A LEI FEDERAL Nº 7.802, DE 1989, E DECRETO-LEI Nº 917/69. TRAMITAÇÃO CONJUNTA. ARTs. 232 A 234 DO REGIMENTO INTERNO. PELA REJEIÇÃO DOS PLO 674/201 E PLO 1441/2020 POR VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 674/2019, de autoria do Deputado Doriel Barros, e o Projeto de Lei Ordinária nº 1441/2020, de autoria da Deputada Juntas, os quais visam alterar a Lei nº 9.465, de 1984, a fim de proibir a pulverização aérea de agrotóxicos e pesticidas no Estado de Pernambuco.
Ambos os projetos destacam nas justificativas certos malefícios do uso de agrotóxicos, bem como de sua pulverização aérea.
Os Projetos de Lei tramitam nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 223, inciso III, Regimento Interno), e, nos termos do artigo 232 e seguintes do Regimento Interno deste Poder Legislativo, por tratarem de matéria idêntica, tramitarão em conjunto.
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
As proposições vêm arrimadas no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 194, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa, uma vez que o Deputado Estadual detém competência legislativa para apresentar projetos de leis ordinárias, não havendo vício de iniciativa.
É cediço que o Estado brasileiro adotou como forma de Estado a Federação, positivando-a, inclusive, como cláusula pétrea na Constituição de 1988. Característica indissociável do Estado Federado é a autonomia dos entes que o integram, presente tanto no âmbito administrativo, quanto no âmbito do governo e também no âmbito legislativo, que mais importa para o estudo da viabilidade do presente PL.
Em seu artigo 24, a CF/88 elenca matérias que podem ser legisladas concorrentemente pela União e pelos Estados (os Municípios também detêm competência para tanto, mas não com fundamento no referido artigo e sim no artigo 30, I e II). Dentre os incisos do artigo 24, podemos destacar os seguintes, que interessam para a análise ora realizada:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
...........................................................................................
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
[...]
XII – previdência social, proteção e defesa da saúde;”
De fato, em uma primeira análise, a conclusão é que os Estados podem sim legislar sobre o tema (sem realizar aqui, ainda, um juízo de valor sobre os limites desta competência) versado nos projetos aqui analisados. Porém, qual o limite, até que ponto o legislador estadual pode tratar das matérias constantes no supracitado artigo 24 ?
A resposta encontra-se no próprio dispositivo, em seus parágrafos. Vejamos:
“§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”
A União Federal, no exercício de competência constitucionalmente garantida, editou em 11 de julho de 1989 a Lei Federal nº 7.802. Tal ato normativo dispõe, dentre outros assuntos, sobre comercialização, fiscalização e consumo de agrotóxicos. Também pode ser citado o Decreto-Lei nº 917, de 8 de outubro de 1969. Conforme visto alhures, aos Estados é garantido legislar de maneira plena, quando inexistir lei federal de normas gerais sobre o tema. Também lhes é garantida a possibilidade de suplementar a legislação federal de normas gerais quando esta existir, obviamente que sem contradizê-la.
O Decreto-Lei 917/69, estatui, em seu artigo 2º que :
“Art. 2º Através do Ministério da Agricultura, a Administração Federal objetivará conciliar a missão pioneira do poder público, em relação a pesquisas, treinamento de pessoal e demonstração de equipamentos e técnicas, com o princípio de que cabe à iniciativa privada operar e desenvolver essas atividades de Aviação Agrícola.
§ 1º Os equipamentos, que poderão ser objeto de demonstração pela Aviação Agrícola, são os destinados à aspersão e pulverização, conforme se especificar em regulamento.
§ 2º As atividades da Aviação Agrícola compreendem:
a) emprêgo de defensivos;
b) emprêgo de fertilizantes;
c) semeadura;
d) povoamento de água;
e) combate a incêndios em campos ou florestas;
f) outros empregos que vierem a ser aconselhados.”
Por sua vez, o Ministério da Agricultura, no exercício de seu poder regulamentar conferido pela legislação federal, editou atos normativos na matéria. Podemos citar a Instrução Normativa nº 02/2008 e a nº 15/2016. Vejamos algumas previsões contidas na Instrução de 2008:
“Art. 10. Para o efeito de segurança operacional, a aplicação aeroagrícola fica restrita à área a ser tratada, observando as seguintes regras:
I - não é permitida a aplicação aérea de agrotóxicos em áreas situadas a uma distância mínima de:
a) quinhentos metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população;
b) duzentos e cinqüenta metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais;
II - nas aplicações realizadas próximas às culturas susceptíveis, os danos serão de inteira responsabilidade da empresa aplicadora;
III - no caso da aplicação aérea de fertilizantes e sementes, em áreas situadas à distância inferior a quinhentos metros de moradias, o aplicador fica obrigado a comunicar previamente aos moradores da área; [...]”
A seu turno, a Instrução Normativa nº 15 de 2016, determinou que :
“Art. 3o Ficam aprovados e considerados como regulares,vigorando imediatamente, os modelos de equipamentos de dispersão,aspersão ou pulverização ora em uso na aviação agrícola brasileiraque se enquadrem em um dos grupos constantes do anexo destaInstrução Normativa.”
Já a Lei Federal 7.802, em seu artigo 10, prevê a possibilidade de Estados legislarem sobre o tema, fazendo expressa remissão ao artigo 24 da Carta Magna, que determina a observância, por parte dos Estados, ao quanto legislado pela União em matéria de normas gerais. Nesta linha o Procurador Geral da República, em Parecer exarado em 24 de abril de 2020, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.137/CE, que questiona a constitucionalidade de diploma normativo cearense de teor quase idêntico aos projetos ora analisados, constrói o seguinte raciocínio:
“Não poderia o ente estadual, definidos os critérios legais para a aplicação aérea de agrotóxicos em âmbito nacional, vedar a atividade por completo.
O caso é de proibição de conduta disciplinada e autorizada pela legislação federal, inexistindo omissão na legislação federal. A legislação estadual em exame não é, nesse contexto, mera complementação/suplementação da legislação federal, mais protetiva do meio ambiente.
Há, aqui, contrariedade material à decisão legislativa tomada em âmbito nacional, mostrando-se a atuação legislativa estadual em desarmonia com o entendimento jurisprudencial que admite, em certas hipóteses, legislações mais restritivas no campo da proteção ao meio ambiente.”
Merecem, no entanto, serem enfrentadas duas situações semelhantes à ora analisada. Em 2018 o STF ao julgar o Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 1.045.719, questionando decisão de Tribunal de Justiça local, afirmou a competência de Município para editar lei que veiculava dispositivos semelhantes aos dos Projetos analisados neste Parecer. No entanto, a fundamentação do Pretório Excelso no caso restringiu-se a aplicar sua jurisprudência de maneira genérica, reafirmando que os Municípios são competentes para legislar sobre matéria de interesse local, nos termos do artigo 30, I da C.F./88. Não desceram – tampouco poderiam, dada as limitações existentes nos julgamentos dos Recursos Extraordinários- os Ministros da Primeira Turma à análise da legislação infraconstitucional federal, que poderia ensejar um resultado diverso. Inclusive, posteriormente, ao não conhecerem de Embargos de Divergência interpostos da referida decisão, a Ministra Relatora Rosa Weber afirmou que : “Divergir da Corte de origem demandaria a análise da legislação infraconstitucional local apontada no apelo extremo, a tornar oblíqua e reflexa eventual ofensa à Constituição, insuscetível, portanto, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário”.
Da mesma forma, é preciso traçar uma distinção entre o caso em tela e as ADI’s 3937, 3470, 3357, 3356, 4066 e ADPF 109 (todos esses julgados em conjunto). No julgamentos destas ações, em resumo, foi afirmado que os Entes subnacionais tem competência para legislar vedando o uso do amianto crisotila, espécie de amianto cujo uso era admitido pela legislação federal. No entanto, para poder chegar-se a tal resultado, o STF teve que, incidentalmente, julgar inconstitucional o dispositivo da lei federal a respeito do tema, em julgado que foi tido como paradigma, haja vista alguns doutrinadores sustentarem a tese de que a partir dele a Corte Constitucional brasileira passou a adotar a teoria da abstrativização do controle difuso.
Assim sendo, uma vez que a Lei Federal nº 7802 bem como demais atos normativos expedidos por órgãos técnicos federais ao versarem sobre a questão não proibiram de maneira absoluta a pulverização aérea, não poderiam os Estados o fazerem, e, conforme sustenta o Procurador Geral da República no Parecer acima mencionado, no que concordamos, para que o Supremo acabe por julgar constitucional a lei cearense impugnada, deverá adotar a mesma técnica que adotou no julgamento citado no parágrafo supra, algo que pode até vir a ocorrer, mas não há como antecipar-se neste sentido.
Cabe também citar o RE 586224/SP, no qual foi estabelecida a tese do Tema 145 de Repercussão Geral do STF, tese esta fixada nos seguintes termos:
“O município é competente para legislar sobre meio ambiente com a União e o estado no limite do seu interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados.”
O caso citado guarda afinidade com as proposições sub examine uma vez que naquele questionava-se lei municipal em que ficava vedada a queima de palha de cana de açúcar. Entendeu o STF pela inconstitucionalidade da lei municipal (apesar de reafirmar a competência do ente para legislar concorrentemente sobre meio ambiente), uma vez que a legislação Federal e Estadual sobre o tema impunha certas restrições à prática mas sem vedá-la totalmente. Mutatis Mutandi, situação análoga está presente no caso objeto deste Parecer, conforme explicado acima.
Por fim, também convém citar a ADPF 514, julgada em 2018 pelo Plenário do STF. Nesta, questionava-se lei do Município de Santos, que vedava o transporte de animais vivos como carga no Município. Vejamos considerações realizadas pelo Ministro Relator Edson Fachin, que votou pela inconstitucionalidade de alguns dispositivos do ato normativo impugnado, por entender que a vedação em absoluto do transporte ia de encontro à legislação federal sobre o tema:
“Estas breves considerações acerca do federalismo cooperativo no que tange à distribuição de competência legislativas estabelecidas na Constituição Federal de 1988 podem ser assim sumariadas: a simples edição de lei, pela União, que cuida de matéria cuja competência para disposição seja concorrente, não exclui, em princípio, a competência de outros entes para a sua regulação. A inconstitucionalidade formal de lei municipal, estadual ou distrital só deve ser reconhecida se a legislação federal dispuser, de forma clara e cogente, que outros entes não podem sobre ela legislar, ou se os outros entes legislarem de forma autônoma sobre matéria idêntica . [...]
Como se extrai do exame da legislação federal citada, o Município, ao inviabilizar o transporte de gado vivo na área urbana e de expansão urbana de seu território, transgrediu a competência da União, que já estabeleceu, à exaustão, diretrizes para a política agropecuária, o que inclui o transporte de animais vivos e sua fiscalização. Sob a justificativa de criar mecanismo legislativo de proteção aos animais, o legislador municipal impôs restrição desproporcional ao direito dos empresários do agronegócio de realizarem a sua atividade.
Esta desproporcionalidade fica evidente quando se analisa o arcabouço normativo federal que norteia a matéria, tendo em vista a gama de instrumentos estabelecidos para garantir, de um lado, a qualidade dos produtos destinados ao consumo pela população e, de outro, a existência digna e a ausência de sofrimento dos animais, tanto no transporte quanto no seu abate. Registro, neste contexto, que o desenvolvimento de atividades econômicas e a proteção ao meio ambiente não são valores incompatíveis. Entretanto, a fiscalização das diretrizes protetivas já estatuídas é ônus dos órgãos federais, estaduais e municipais competentes para tanto, não sendo possível imputar ao particular restrição desproporcional à sua iniciativa tendo em conta suposto descumprimento de norma sobre transporte de animais.”
Diante do exposto, opina-se pela rejeição dos Projetos de Lei Ordinária nº 674/2019, de autoria do Deputado Doriel Barros, e nº 1441/2020, da Deputada Juntas, por vício de inconstitucionalidade.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela rejeição do Projeto de Lei Ordinária nº 674/2019, de autoria do Deputado Doriel Barros e do Projeto de Lei Ordinária 1441/2020, da Deputada Juntas, por vício de inconstitucionalidade, conforme os fundamento acima expostos.
Histórico