Campanha envolve Poder Público e sociedade na defesa dos autistas

Em 20/04/2023 - 11:04
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Por Ivanna de Castro

O convite de amigos para ir a festas, algo natural e prazeroso para tantas pessoas, era sinônimo de sofrimento para a farmacêutica Larissa dos Santos Mendes, de 33 anos. “Eu me forçava a estar nesses ambientes, sem perceber que não me adequava à sobrecarga sensorial e à interação humana intensa. Pensava… se todo mundo pode fazer, por que eu não?”, conta ela, diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) há quase dois anos.  

INFORMAÇÃO – Diagnosticada aos 31 anos, Larissa Mendes reclama do desconhecimento social do tema: “Há muito estereótipo envolvido”. Foto: Jarbas Araújo

Doutora em Ciências Farmacêuticas, Larissa relata que se submeteu a situações de sofrimento por muito tempo, passando por atendimentos psiquiátricos e terapêuticos para lidar com quadros de depressão, Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e crises de burnout, sem compreender ao certo sua condição. “O estereótipo envolvendo os autistas é enorme e atinge até mesmo os profissionais da saúde, que, sem preparo, não vislumbram esse diagnóstico nos adultos”, revela ela, que é uma das fundadoras da ‘Liga Neurau’, grupo que reúne pessoas que se descobrem com o transtorno. 

Para Fernando Antônio, de 3 anos, o diagnóstico precoce foi libertador. “Um marco que não encaramos como o fim, mas como início de caminhada que deu o direcionamento necessário para garantir a qualidade de vida dele e, consequentemente, de toda a família”, ressalta a mãe Danielle Aguiar, servidora da Alepe. Hoje, apesar da rotina intensa de terapias, ela valoriza o tempo que é dedicado ao filho e comemora cada nova conquista, como aprender uma palavra nova ou andar de bicicleta.

MARCO – Danielle Aguiar com o filho Fernando Antônio, diagnosticado com TEA: “Não encaramos laudo como o fim, mas o início de uma caminhada em busca de qualidade de vida”. Foto: Giovanni Costa

Larissa e Danielle acreditam ser fundamental a conscientização da sociedade sobre a complexidade do TEA, objetivo da Campanha Abril Azul: “Precisamos pensar em políticas públicas que atendam toda a gama de indivíduos dentro do espectro, desde crianças com limitações severas até os adultos que buscam oportunidades de inserção no mercado de trabalho especializado. Sabemos que este é um desafio gigantesco, mas que só poderá ser encarado se a sociedade nos enxergar e ouvir o que temos a dizer”, clamou Larissa. 

Diagnóstico

Segundo o Ministério da Saúde, o transtorno é causado por distúrbios no neurodesenvolvimento dos indivíduos, que geralmente apresentam prejuízos nas áreas de comunicação e interação social, bem como padrões repetitivos e restritos de comportamento. O grau das limitações dentro do espectro varia de leve (nível 1) — quando o indivíduo apresenta discretas dificuldades de adaptação — até quadros severos (nível 3), quando há total dependência dos sujeitos para realizar atividades cotidianas. 

2 milhõesé o número de brasileiros com o transtorno, segundo estimativas da OMS

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja 70 milhões de pessoas com essa condição, sendo cerca de 2 milhões só no Brasil. Os números não são precisos justamente pela amplitude de características do espectro e, também, porque o acesso ao diagnóstico apresenta-se como a primeira dificuldade enfrentada por essa parcela da população, em especial a que depende dos serviços públicos de saúde.  

DEMORA – Espera por diagnóstico na rede pública leva cerca de um ano em Pernambuco, diz Robson Menezes. Foto: Jarbas Araújo

Fundador da Liga dos Advogados que Defendem Autistas (LigaTEA), Robson Menezes conta que a fila de espera por uma consulta com um neuropediatra leva cerca de um ano em Pernambuco. “A legislação prevê o direito ao diagnóstico precoce, mas ela não está sendo aplicada à realidade”, lamentou. “Sem o laudo, esses indivíduos não são sequer conhecidos pelo Estado, que, portanto, nega a eles o direito a tratamentos, à educação inclusiva, a benefícios assistenciais e a outras políticas públicas”, acrescentou.

Levantamento produzido pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) com 57 municípios pernambucanos revelou que, em 2021, apenas dois deles ofereciam estrutura mínima de atendimento de saúde direcionado a pessoas com TEA. Da equipe profissional disponibilizada, somente 30% tinham capacitação técnica adequada. “Há um descumprimento generalizado da Lei estadual 15487/2015, que fala do direito desses pacientes a atendimento multidisciplinar com médico, psicólogo, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional”, registrou o auditor de Controle Externo João Francisco Alves. 

COMPROMISSO – “Expectativa é que o Estado proponha ações que contemplem essa população”, afirmou o auditor João Francisco Alves. Foto: Giovanni Costa

TCE e Governo de Pernambuco firmaram, em abril do ano passado, um Termo de Ajuste de Gestão (TAG), em que o Executivo estadual comprometeu-se a apresentar um plano de ações para solucionar os problemas apontados. A resposta foi apresentada ao Tribunal em outubro de 2022 mas, com a mudança de gestão, novo prazo foi conferido para o Governo do Estado se pronunciar sobre o documento. Uma reunião sobre a questão está agendada para a próxima semana.

“Diante dos dados  já apresentados do TCE e da urgência no atendimento das demandas, a expectativa é que, nos próximos dias, o Executivo apresente ações que efetivamente contemplem familiares e pessoas com TEA”, avaliou o auditor.  

Múltiplas barreiras

VIVÊNCIA – Daniela Rorato e o filho Augusto: “Acessar tratamentos médicos é uma verdadeira odisseia”, relata. Foto: Arcevo Pessoal

Coordenadora do Comitê de Crise em Defesa das Pessoas com Deficiência em Pernambuco, Daniela Rorato conhece bem as dificuldades para garantir qualidade de vida a seu filho Augusto, de 26 anos e com TEA nível 3. “Acessar tratamentos médicos é uma verdadeira odisseia para as famílias, que muitas vezes precisam peregrinar por diferentes cidades”, disse. “No caso de pessoas com mais recursos, a luta é para que os planos de saúde cubram os procedimentos, o que é muito desgastante. Já para os que dependem do SUS, a carência é total”, alega. 

A insuficiência numérica e a falta de capacitação dos profissionais da educação, nas redes pública e privada, também é uma queixa desta população. “É comum a contratação de trabalhadores sem nenhum tipo de treinamento, o que inviabiliza o verdadeiro direito à educação inclusiva”, esclarece Robson Menezes, da LigaTEA. “Muitas famílias precisam acionar a Justiça para verem seus direitos garantidos.”

Em nome do Grupo de Mães Especiais de Pernambuco, Daniela Pedrosa denunciou a carência de espaços de cultura e lazer. “Todos sabemos como a arte auxilia no processo de socialização das pessoas com autismo, que conseguem se comunicar melhor por meio da música, dos desenhos etc. Onde estão esses espaços para eles ocuparem?”, questionou.

Mãe de João Vítor, um jovem com TEA nível 3, ela também clamou por atenção do Poder Público aos cuidadores: 

A saúde mental das mães não está mais pedindo socorro, ela está apertando o botão de ´stop´. O desamparo é muito grande, e eu só não desisti porque todas as vezes que olho para esse botão eu vejo o nome do meu filho, e ele precisa de mim”, admite Daniela Pedrosa.

De acordo com a secretária executiva estadual de Promoção da Equidade, Patrícia Caetano, o Executivo pernambucano criou, em abril, um grupo de trabalho específico para tratar das diferentes demandas dessa parcela da sociedade. Segundo ela, uma plataforma on-line também foi disponibilizada para permitir que o Executivo reúna informações sobre os pacientes. “Com os dados e em diálogo com a sociedade civil, vamos buscar construir, coletivamente, a política estadual da pessoa com TEA”, anunciou.

Alepe na luta

ATUAÇÃO – Alepe instalou comissão especial para atuar na elaboração de plano estadual de inclusão. Foto: Jarbas Araújo

Com o propósito de formular um plano estadual de inclusão e um amplo diagnóstico dos serviços públicos voltados a esse público em Pernambuco, a Alepe instalou a Comissão especial em Defesa dos Direitos das Pessoas com TEA. Presidido pelo deputado João de Nadegi (PV), o colegiado atuará por 120 dias, em diálogo com as organizações envolvidas com a temática. “Vamos trabalhar ouvindo todos os segmentos, criando um relatório plural que, ao final, será entregue aos demais Poderes e aos órgãos de controle”, afirmou o parlamentar.

A defesa dos familiares e das pessoas com autismo é, no entanto, pauta permanente dos deputados da Alepe. A Lei estadual 15487/2015 reúne os mais diversos direitos — conquistados graças a uma luta coletiva —  a essa parcela da sociedade. Entre as garantias presentes na norma estão gratuidade no transporte público, prioridade nos atendimentos de saúde, direito a acompanhante especializado nas instituições de ensino, maior tempo para realização de provas, meia entrada em espaços culturais e esportivos e laudos médicos com validade indeterminada. Outra norma estadual garante benefícios tributários na compra de veículos.

A legislação segue em constante atualização e aprimoramento, com vistas a responder às demandas ainda não atendidas e aos pleitos que passam a surgir. Apenas nos primeiros três meses de 2023, 21 projetos de lei (PLs) direcionados aos autistas foram protocolados na Casa e começaram a tramitação. Veja a lista:

Em tramitação na Casa

PL nº 8/2023, do Pastor Cleiton Collins (PP) – acompanhamento de cães de assistência emocional 

PL nº 16/2023, de João Paulo Costa (PCdoB) – incentivo à musicoterapia como tratamento complementar

PL nº 24/2023, de João Paulo Costa – gratuidade em eventos culturais e esportivos

PL nº 68/2023, da Delegada Gleide Ângelo (PSB) – isenção de pedágios

PL nº 91/2023, de João Paulo Costa – uso do método ABA na rede pública de saúde

PL nº 125/2023, da Delegada Gleide Ângelo – gratuidade para acompanhante no transporte público

PL nº 139/2023, da Delegada Gleide Ângelo – acompanhantes em tratamentos

PL nº 156/2023, da Delegada Gleide Ângelo – atendimento de gestantes com TEA

PL nº 172/2023, de Socorro Pimentel (União) – sinais sonoros adequados em escolas

PL n° 173/2023, de Socorro Pimentel – acompanhamento de cães de assistência emocional

PL nº 231/2023, de William Brigido (Republicanos) – capacitação de educadores

PL n° 262/2023, de Joaquim Lira (PV) – divulgação de vagas destinadas à Educação Especial

PL n° 268/2023, de Coronel Alberto Feitosa (PL) – uso do método ABA na rede pública de educação 

PL nº 283/2023, de Eriberto Filho (PSB) – atendimento prioritário em comércio e serviços

PL nº 349/2023, de Gilmar Júnior (PV) – pulseira de identificação em unidades de saúde

PL nº 361/2023, de Eriberto Filho – atividades laborais compatíveis

PL n° 397/2023, de Joaquim Lira –  Selo Empresa Amiga da Pessoa Autista

PL n° 483/2023, de Joãozinho Tenório (Patriota) – Campanha de divulgação do Direito a Isenção do IPVA

PL n° 492/2023, de Eriberto Filho – aplicação do questionário M-CHAT para rastreamento de sinais precoces

PL n° 511/2023, de Gilmar Júnior – Núcleos de Referência e Atendimento à Pessoa com TEA em unidades de saúde

PL n° 515/2023, de Gilmar Júnior  – capacitação dos profissionais de segurança pública