Racismo contra religiões de matriz africana é alvo de debate na Alepe

Em 16/05/2022 - 22:05
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CONTEXTO – “Devido ao nosso passado escravista, tudo o que se relaciona à cultura negra é desprezado e, até mesmo, demonizado”, pontuou João Paulo. Foto: Roberta Guimarães

Ataques a terreiros e agressões físicas e verbais contra integrantes de religiões de matriz africana são as formas mais comuns de intolerância religiosa registradas no Brasil. Práticas do tipo foram denunciadas por líderes religiosos e organizações da sociedade civil durante a audiência pública promovida pela Comissão de Cidadania, nesta segunda (16). O encontro abordou o racismo contra o candomblé, a umbanda e outras vertentes originárias da África.

O deputado João Paulo (PT), que sugeriu a reunião, informou que a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, registrou 571 denúncias de violação à liberdade de crença no ano passado, mais que o dobro das ocorrências em 2020 (243). “A maior parte delas teve como vítimas os adeptos de religiões de origem africana, como umbanda e candomblé”, ressaltou.

Segundo o parlamentar, o preconceito tem como pano de fundo o racismo institucional do País, sedimentado com a prática da escravidão. “Devido ao nosso passado escravista, tudo o que se relaciona à cultura negra é desprezado e, até mesmo, demonizado”, opinou, salientando o aumento nos casos também em Pernambuco. Para ele, é preciso que o Estado encontre formas de estimular a convivência pacífica entre as pessoas, independentemente da fé que escolherem. 

“A liberdade de crença é um direito previsto na Constituição. Não podemos tolerar desrespeito sob nenhum aspecto, muito menos o religioso”, frisou o petista. João Paulo pretende marcar uma audiência com o governador do Estado e lideranças do segmento para tratar do assunto. 

TERREIROS – De acordo com Jô Cavalcanti, das Juntas, polícia sente-se autorizada a interditar a prática religiosa sob alegação de proteção ao sossego coletivo. Foto: Roberta Guimarães

O deputado Doriel Barros (PT) observou que todas religiões têm seu lugar e qualquer ataque deve ser reprimido. “Infelizmente, a intolerância ganhou mais espaço desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, pois ele autoriza o desrespeito aos direitos básicos. Espero que nossa sociedade evolua para a convivência harmônica entre todos.”

Ataques

Titular do mandato coletivo Juntas (PSOL), que preside o colegiado, a deputada Jô Cavalcanti alertou que o racismo religioso tem levado a atos violentos em Pernambuco. Ela citou o incêndio do Terreiro Salinas, de São José da Coroa Grande (Mata Sul), no início deste ano, e a invasão do Terreiro de Pai Edson, em Olinda (RMR), em 2021.  

De acordo com a parlamentar, sob a alegação de proteção ao sossego coletivo, a polícia do Estado sente-se autorizada a interditar a prática religiosa. “Mal sabem os agressores que os membros das religiões de matriz africana são conhecidos pela solidariedade e pelo acolhimento aos integrantes das comunidades nas quais estão inseridos”, lembrou.

“A discriminação acontece, muitas vezes, de forma mascarada”, explica Mãe Elza, líder do Terreiro Ilê Axé Egbé Awo, no Recife, e presidente do Conselho Estadual de Políticas de Igualdade Racial. “Nossa identidade religiosa está exposta em nossas vestimentas. Quando ando nas ruas, alguns se aproximam para pedir reza, conselho, mas há também aqueles que nos chamam de ‘adoradores do diabo’ e nos entregam panfletos de outras crenças. O preconceito, às vezes, está encoberto em promessas de salvação em outra fé”, observa

DISCRIMINAÇÃO – “O preconceito, às vezes, está encoberto em promessas de salvação em outra fé”, contou Mãe Elza. Foto: Roberta Guimarães

Para o Babalorixá Pai Ivo de Xambá, o Brasil atravessa um período em que as liberdades religiosas não são respeitadas como deveriam .“É preciso que as pessoas tenham conhecimento sobre a nossa tradição, porque recebemos estigmas equivocados, como adoração ao satanás. Isso não pertence ao nosso credo”, salientou. 

O religioso criticou a postura de alguns pastores evangélicos que tentam atrair pessoas do candomblé ou da umbanda para a igreja a que pertencem. “Existe fundamentalismo nessa atitude, assim como na abordagem policial às casas de terreiro”, avaliou. Pai Ivo acredita que os integrantes das religiões africanas precisam ocupar espaços de poder, como as casas legislativas, para que haja um verdadeiro combate à intolerância.

Poder Público

Advogada da Articulação Negra de Pernambuco, Priscila Rocha explicou que o racismo religioso é uma das linhas de atuação da entidade, uma vez que os afrodescendentes são os principais alvos desse tipo de preconceito.  “Isso acontece porque o Estado é racista e as instituições são racistas. Existe uma política de silenciamento e de destruição das pessoas negras. Só coletivamente poderemos combater essas atitudes”, enfatizou. Ela ainda cobrou do Governo de Pernambuco a conclusão das investigações dos atos de violência registrados, bem como orientação aos policiais em relação à abordagem após as denúncias.

ESTADO – “Qualquer situação de discriminação deve ser denunciada e será investigada pela polícia”, assegurou Jeanne de Aguiar Souza, da SDS. Foto: Roberta Guimarães

A representante da Secretaria de Defesa Social (SDS), Jeanne de Aguiar Souza, defendeu o trabalho da corregedoria e da ouvidoria da pasta. “Qualquer situação de discriminação deve ser denunciada e será investigada pela polícia. Nossa equipe está preparada para atender esses casos”, garantiu. Ela destacou, ainda, que as investigações dos atos passados estão em curso e deverão ser concluídas em breve. Já a secretária-executiva de Direitos Humanos do Estado, Laura Gomes, colocou-se à disposição: “Estamos atentos e trabalhando para prevenir e combater essa prática”. 

O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) possui um Grupo de Trabalho do Racismo há 20 anos, período no qual recebeu várias denúncias de intolerância religiosa, informou a promotora Maria Ivana Botelho. “Sabemos que tais atos devem-se ao racismo estrutural do País. Nosso papel é buscar a responsabilização de todos os implicados nesse tipo de atitude”, salientou.