Os ciclos da cana

Em 15/03/2019 - 09:03
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Gabriela Bezerra

Acabou-se a cana. Acabou-se o mé. Até para o ano. Se Deus quizé.”

Os versos da canção antiga simbolizavam o fim dos trabalhos e a esperança na produção do próximo ano. Até meados de abril, quando se encerrará a safra 2018-2019, cerca de 12 milhões de toneladas de cana-de-açúcar devem ser  moídas em Pernambuco. O número representa um acréscimo de quase 10% em relação à moagem anterior, de acordo com Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool (SindAçúcar-PE).

12 mide toneladas de cana devem ser moídas na safra 2018-2019.

Apesar do crescimento, Pernambuco, que até 1630 esteve entre os maiores  produtores mundiais de cana, hoje não é nem o primeiro do Brasil. Atualmente, São Paulo concentra 50% da produção, cabendo a todo o Nordeste 10% do total. Na avaliação do engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Djalma Euzébio, a presença de pátio fabril e a existência de topografia favorável ajudam no desempenho do Estado do Sudeste: “Lá, o declínio do café deu espaço para a cana. Aqui, houve avanço tecnológico nas últimas décadas, mas ainda estamos atrás”.

Atualmente, a atividade tem uma participação de 29,3% no valor obtido com toda a atividade agrícola em Pernambuco, segundo dados obtidos com a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (Condepe-Fidem).  Esse percentual já chegou a 46% nas duas últimas décadas.

Responsável, há 28 anos, por projeto que integra a universidade e o setor na produção de novas variedades genéticas da cana-de-açúcar, Djalma chama atenção para a necessidade de investimento em pesquisas. “Se não houvesse estudos, praticamente não existiria cana para plantar hoje”, frisa. Nove usinas pernambucanas participam do projeto, que conta também com a participação de outras nove universidades brasileiras.

“Se não houvesse estudos, praticamente não existiria cana para plantar hoje.”

Djalma Euzébio, agrônomo

“Conseguimos fazer cruzamentos com materiais mais ricos, vindo inclusive de outros países. O processo torna as variedades mais resistentes a doenças, garantindo maior produção por área plantada”, explica o professor. Investimentos em irrigação também têm sido feitos no Estado, com a substituição do regime de chuvas por sistema de microgotejamento.

A tecnologia mudou a atividade canavieira ao longo dos anos. Até o começo dos anos 1980, a produção era 100% manual e com transporte animal. “Houve uma evolução lenta de lá para cá, até porque a mecanização exige pesquisa cara”, observa Djalma. A topografia pernambucana também é apontada como obstáculo, já que impede a expansão da mecanização no corte, método presente em 90% da colheita paulista. Atualmente, apenas 10% da pernambucana é feita por máquinas.

Na safra atual, o Estado conta com 13 usinas em funcionamento. Desde 2011, o setor enfrenta dificuldades. No período, houve paralisação das atividades em sete unidades produtoras em pelo menos uma das safras. O reaquecimento a partir de um novo ciclo da cana no Estado – iniciado em 2015 com a reabertura das usinas Cruangi e Pumaty, na Mata Sul – trouxe esperança.

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Em fevereiro deste ano, o tema repercutiu no Plenário da Alepe. “A reabertura dessas usinas foi o que de mais importante aconteceu na Zona da Mata nos últimos anos. Se há uma unanimidade nessa região, é a respeito dos benefícios econômicos da reativação do setor açucareiro. As feiras nas cidades estavam vazias, mas hoje estão cheias”, descreveu o deputado Antônio Moraes (PP).

Ano passado, produtores reuniram-se na Assembleia Legislativa para debater proposta com potencial de gerar 20 mil empregos diretos e indiretos por ano no Estado. Em audiência pública realizada pela Comissão de Desenvolvimento Econômico, o Projeto Renovar foi apresentado como alternativa para recompor a cultura canavieira no Nordeste.

Pelos cálculos do consultor do setor sucroalcooleiro em Pernambuco Gregório Maranhão, “nos últimos cinco anos, o Nordeste deixou de produzir 20 milhões de toneladas de cana, o que representa 200 mil empregos perdidos”. Em termos financeiros, ele indica um prejuízo de R$ 4 bilhões. “Mais do que uma solução, o Renovar é uma contribuição oportuna e de caráter emergencial para Pernambuco e para o Nordeste. A cana é um insumo de integração regional”, destaca.

RENOVAR - Em 2018, produtores apresentaram na Alepe proposta com potencial de gerar 20 mil empregos por ano. Foto: Roberti Soares

RENOVAR – Em 2018, produtores apresentaram proposta com potencial de gerar 20 mil empregos por ano. Foto: Roberto Soares

Em fevereiro, foi criada a Frente Parlamentar em Defesa do Setor Sucroalcooleiro, para discutir medidas de fortalecimento da atividade no Estado. “Sou empresário do ramo e vejo o segmento em extrema decadência, tendo cada vez mais dificuldades. Queremos que o Governo possa intervir de forma positiva para reverter esse quadro”, afirmou o deputado Clovis Paiva (PP), que propôs e coordena o colegiado. Ele avaliou, ainda, que “não basta reativar usinas. É preciso examinar mais de perto e de maneira mais profunda os problemas do setor”.

Da cana esmagada no Estado, cerca de 54% são destinados à produção de açúcar e 46% para o etanol. O custo do açúcar, no entanto, tem contribuído para modificar essa balança. De acordo com o SindAçúcar-PE, “nas últimas três safras, houve uma queda nos preços do açúcar, que tem cerca de 30% da produção negociada no exterior. No mercado interno, os preços também caíram no mesmo período, em torno de 25%”.

O sindicato avalia a tendência de ampliação da produção do etanol também em razão da maior procura: “Nos últimos dez meses, o etanol substituiu mais de 37% de toda a gasolina consumida em Pernambuco”. Também é produzida energia elétrica a partir do processamento do bagaço da cana.

 

Trabalhador rural

Em dezembro do ano passado, houve deflagração de greve dos canavieiros após 13 rodadas de negociação. De acordo com a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais do Estado de Pernambuco (Fetaepe), a paralisação, que durou quatro dias, mobilizou cerca de 80% da categoria.

MATA SUL - Reaquecimento iniciado em 2015, com a reabertura das usinas Cruangi e Pumaty, trouxe esperança. Foto: João Bita/Arquivo

MATA SUL – Reaquecimento iniciado em 2015, com a reabertura das usinas Cruangi e Pumaty, trouxe esperança. Foto: João Bita/Arquivo

O ponto principal da pauta de reivindicações foi o deslocamento remunerado ao local de trabalho. Até a aprovação da Reforma Trabalhista, em 2017, o art. 58 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) previa a incorporação do tempo desse percurso, ida e volta, desde que o local de trabalho fosse de difícil acesso e não servido por transporte público regular, e que o empregador fornecesse a condução, era a chamada hora in itinere.

Como o período em deslocamento representava um acréscimo de 20% a mais no salário, a categoria lamentou a perda e cobrou compensação. “Conseguimos a garantia de vários direitos, mas a hora in itinere, infelizmente, não foi mantida em audiência de conciliação realizada na Justiça do Trabalho. Estamos orientando os trabalhadores a ajuizarem as horas extras para conseguir substituir esse valor”, declarou Gilvan Antunis, presidente da Fetaepe, que reúne quase 140 mil membros.

De acordo com a Federação, o contrato safra inclui o piso de R$ 1.016, uma cesta básica mensal no valor de R$ 50, além do pagamento por produtividade. Estima-se o corte diário de três toneladas por trabalhador. A produtividade é calculada a partir do que for cortado a mais.

No período de entressafra, a renda dos profissionais advém da possibilidade de recontratação para o plantio e do Programa Chapéu de Palha. “Seria importante para os trabalhadores rurais que houvesse a desvinculação entre o Chapéu de Palha e os programas de assistência social, já que há dedução do valor caso a família receba outros auxílios”, pontua Gilvan. A maior parte da categoria é composta por homens, entre 20 e 50 anos.

 

Herança doce e amarga

Em abundância no Estado, o açúcar também foi responsável por forjar o patrimônio cultural no âmbito da gastronomia, com cardápio variado de bolos e doces. O livro Assucar, escrito pelo sociólogo Gilberto Freyre, reúne as receitas e reflete acerca da presença do ingrediente nas relações sociais.

ASSUCAR - Escrito pelo sociólogo Gilberto Freyre, obra reúne receitas e reflete acerca da presença do ingrediente nas relações sociais. Foto: Malu Didier/Divulgação

ASSUCAR – Escrita pelo sociólogo Gilberto Freyre, obra reúne receitas e reflete acerca da presença do ingrediente nas relações sociais. Foto: Malu Didier/Divulgação

Ao destacar que “o açúcar é um ingrediente social”, a antropóloga Ciema Mello, do Museu do Homem do Nordeste, fala sobre a importância do doce na cultura. “A gente faz bolo, toma café e conversa – o açúcar está presente nos nossos rituais de convivência. Nas nossas festas, celebramos sempre com um bolo”, pontua. Também sublinha que Gilberto Freyre foi o primeiro a perceber isso: “Ele entende o açúcar não só sob o aspecto econômico, como aquilo que a gente exporta”, observa.

Do departamento de Gastronomia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), a professora Neide Shinohara chega a afirmar que “o doce de Pernambuco é mais doce”. “Isso fica claro nos concursos de culinárias no Brasil e no exterior. Aqui há sempre a percepção de que o doce tem que aparecer, tem que sobressair, no sabor. Está no DNA pernambucano”, analisa.

A cana começou a ser cultivada no Brasil por meio dos portugueses, sob o trinômio monocultura, latifúndio e escravidão. A influência de três séculos de apogeu da produção repercutiu de tal forma na sociedade a ponto de Gilberto Freyre escrever, em 1939, que “sem açúcar – seja do mais refinado ao mascavo, ao bruto ou de rapadura – não se compreende o homem do Nordeste” (ver box).

Para o professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Marcus de Carvalho, a frase pode ser ampliada: “Sem o açúcar, não se compreende o Brasil”. “A estrutura de latifúndio e escravidão marcou muito a sociedade brasileira, étnica e economicamente, o que permanece até hoje”, avaliou.

O livro A Velha Usina, de Robert Levine, traz a informação de que, “em tempos prósperos, algumas fazendas tinham chegado a possuir até 150 escravos. E o escravos constituíam, em certa época, cerca de três quartos dos trabalhadores do Estado”.

 

Passeio resgata o papel do açúcar para a construção do Nordeste

EXPOSIÇÃO - Iniciada em março, no Museu do Homem do Nordeste, mostra reúne peças requintadas pertencentes à aristocracia. Foto: Malu Didier/Divulgação

EXPOSIÇÃO – Iniciada em março, no Museu do Homem do Nordeste, mostra reúne objetos que demonstram centralidade do açúcar no cotidiano do nordestino. Foto: Malu Didier/Divulgação

Gilberto Freyre considerava fundamental conhecer a história do açúcar para compreender o homem do Nordeste. Além do clássico Casa Grande e Senzala (1933), em que dá a sua contribuição sobre a formação sociocultural brasileira a partir dos engenhos, ele é autor de Assucar (1939), um apanhado dos bolos e doces do Nordeste brasileiro. A obra completa 80 anos em 2019 e é tema de exposição iniciada, em março, no Museu do Homem do Nordeste.

Curadora da mostra, a antropóloga Ciema Mello conta que a primeira edição de Assucar estará exposta aos visitantes. “O açúcar tem sido, na nossa cultura, um pretexto para o convívio e uma demonstração da nossa hospitalidade”, pontua. A exposição busca representar uma festa de aniversário para a obra.

O passeio deve seguir pelo Museu, que busca promover a reflexão sobre o que é o Nordeste e quem é o nordestino. “É uma região gigante que expressa uma diversidade cultural grande. Mais do que oferecer respostas, procuramos oferecer um espaço mais interrogativo”, destaca Ciema.

Desde peças requintadas pertencentes à aristocracia a peças utilizadas pelo povo da região, objetos da cultura do açúcar podem ser observados no Museu. A coleção conta também com acervo antropológico que destaca produções afro-brasileiras e indígenas. Este ano, o museu completa o seu quadragésimo aniversário.

 

Exposição Assucar

Museu do Homem do Nordeste

Avenida Dezessete de Agosto, 2187, Casa Forte, Recife

A partir de 15 de março (duração de três meses)

Entrada gratuita

 

*Fotos em destaque: imagem pública (home) e João Bita/Arquivo (Notícias Especiais)