
ENCONTRO – Audiência pública foi promovida pela Comissão de Defesa da Mulher. Foto: João Bita
“Eu e meu namorado estávamos no ensaio de dança break, em uma praça pública, quando policiais, sem justificativa, nos abordaram e nos agrediram com tapa na cara e com expressões racistas e misóginas. Quando questionamos os motivos da abordagem, eles tentaram nos incriminar colocando drogas em nossas bolsas e zombaram dos meus direitos”. O relato foi feito por Letícia Carvalho, estudante de 20 anos, durante audiência pública promovida nesta quinta (3), pela Comissão de Defesa da Mulher da Assembleia, para debater a violência praticada – e especificamente direcionada – contra as negras.
Letícia, integrante do movimento Mulheres Negras Fortalecidas na Luta contra o Racismo e Sexismo, informou que o caso ocorreu no município de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana, em dezembro do último ano. Após seis meses de processo administrativo, a denúncia que a jovem fez à Corregedoria da Polícia Militar foi arquivada. “Enquanto isso, eu fico calculando os dias e horários para sair da minha casa, evitando encontrar com os policiais [envolvidos no caso] que hoje sabem tudo sobre a minha vida”, lamentou.
A queixa de Letícia não é isolada. Segundo informações do Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, no período 2003-2013 o homicídio contra mulheres negras saltou de 1.864 para 2.875, um crescimento de mais de 54%. Em contraposição, no mesmo período, houve um recuo de 9,8% no número de crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576 ocorrências. O estudo Violência contra a mulher: feminicídios Brasil, produzido em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), confirma esta realidade. O documento aponta que cerca de 60% dos feminicídios cometidos no Brasil vitimam negras.
Presidente da comissão parlamentar, a deputada Simone Santana (PSB) falou sobre a tripla violência que incide sobre as mulheres negras de baixa renda: o machismo, o racismo e a segregação social. “Daí a importância do trabalho intersetorial para enfrentar, de maneira conjunta, esta opressão múltipla”, defendeu. “A estrutura socioeconômica racista, aliada a sistemas de saúde e de educação precários, tornam ainda maior a exclusão das mulheres negras. Diante deste Governo que vem subtraindo direitos sociais, é preciso somar esforços através de encontros como este”, acrescentou a deputada Teresa Leitão (PT), autora do requerimento para a realização da audiência pública.
Segundo a gerente de fortalecimento sociopolítico da Secretaria estadual da Mulher, Beatriz Vidal, a estratégia adotada por Pernambuco para enfrentar o problema é fortalecer núcleos municipais de forma a capilarizar as ações de enfrentamento à violência contra a mulher. “Hoje, há no Estado 182 núcleos – dentre coordenadorias, diretorias e secretarias – que podem atuar com o tema”, informou.
A capitã da Polícia Militar de Pernambuco, Lúcia Helena, defendeu a sensibilização dos profissionais da segurança pública. A instituição recebeu críticas de muitas representantes de movimentos negros feministas presentes no evento em virtude do uso da discriminação racial – como a sofrida por Letícia – nas abordagens. “Reconhecer a existência do racismo é o primeiro passo e a PM de Pernambuco fez isso quando, em 2009, iniciou atividades de formação e capacitação dos policiais”, informou, admitindo que a maior parte do efetivo ainda precisa passar pelo treinamento. “A educação é o caminho para enfrentar esta realidade”, corroborou a desembargadora e chefe da Coordenadoria estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
A especialização das delegacias para o atendimento de mulheres vítimas de violência, bem como das unidades que investigam crimes de intolerância, foi defendida pela delegada e chefe do Departamento da Polícia da Mulher de Pernambuco, Gleide Ângelo. “Para transformar essa realidade de violência é preciso denunciar os agressores. A lei existe para impor sanções àqueles que não respeitam mulheres e negros”, pontuou. A delegada anunciou que, em cerca de 30 dias, os boletins de ocorrência emitidos em Pernambuco terão a opção de registro de feminicídio. “Hoje, existe a opção de crime passional, que tenta justificar a agressão”, disse.
Representando o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, deputado Edilson Silva (PSOL), Isabel Freitas criticou a falta de mulheres negras nos espaços de poder. “Não podemos desacreditar nas leis, mas sabemos que, na prática, as regras funcionam contra o povo negro”, afirmou. Ana Paula Maravalho, advogada e militante do movimento negro, falou sobre a naturalização do racismo na sociedade brasileira hoje e orientou: “Temos que ter estratégia para o futuro. Vamos pensar com mais cuidado em quem a gente elege para nos representar”.
“Nós, mulheres negras, estamos morrendo nas periferias. O que as instituições públicas estão fazendo para mudar isto?”, questionou a ativista Joy Tamires. “Como é triste, em pleno século 21, nós estarmos aqui mendigando nosso direito constitucional à vida”, lamentou a estudante Gilmara Santana. “Não podemos nos calar porque somos nós, mulheres negras, que levamos esse País a frente”, concluiu Ediclea Santos, do movimento negro da Comunidade do Passarinho.