DISCUSSÃO – Atualmente, embate entre taxistas e motoristas do aplicativo Uber ganha repercussão. Grupo de Trabalho formado por parlamentares vai promover debates sobre a questão. Imagem: Alepe
O avanço da tecnologia já fez a sociedade aposentar videocassetes, máquinas de escrever, listas telefônicas e outros tantos aparelhos e ferramentas que hoje fazem parte apenas de museus ou da memória da população. Aos poucos, itens imprescindíveis tornam-se dispensáveis, mas as mudanças nem sempre ocorrem de maneira pacífica. Em alguns casos, mercados ameaçados reagem às inovações e, diante das tensões entre grupos de interesses distintos, o Poder Público é chamado a se posicionar, de forma a garantir os direitos da coletividade.
Atualmente, o embate que vem ganhando mais repercussão envolve taxistas e motoristas do aplicativo Uber. A plataforma digital, recém-lançada no Recife, oferece o transporte particular de passageiros. Embora a regulamentação da atividade seja de competência municipal, as discussões – por terem impacto significativo em todas as esferas – chegaram à Assembleia Legislativa, que já promoveu duas audiências públicas para compreender o processo. De um lado, o serviço de táxi, normatizado pelos municípios, que tem regras a cumprir e cujos fornecedores entendem estar enfrentando uma concorrência desleal. De outro, uma atividade ainda à margem da legislação, mas que vem ganhando o apreço dos consumidores em razão da qualidade do atendimento e do preço competitivo.
Ainda sem consenso, as categorias protagonizam enfrentamentos físicos nas ruas de várias cidades brasileiras. No Recife, a Companhia de Trânsito e Transporte Urbano (CTTU) afirma que o Uber atua em desacordo com a Lei Federal n° 12.468/2011, que regula a profissão de taxista. “Quem descumpre a lei está passível de sofrer penalidades, como apreensão de veículo e multa de R$ 4.322,18”, explicou, em nota. O fato é que, apesar dessa interpretação da norma, o Uber continua funcionando na capital pernambucana e em outros 11 centros urbanos do País, cobrando, com cada vez mais apoio da população, a atualização da lei.
Um Grupo de Trabalho, formado pelos deputados Rodrigo Novaes (PSD), Beto Accioly (PSL), Rogério Leão (PR) e Socorro Pimentel (PSL), foi criado informalmente na Alepe para acompanhar a questão. Para Novaes, o objetivo é promover discussões e, com as devidas informações, acionar os poderes competentes para intervir no setor. “As assembleias estaduais têm competência legislativa residual e concorrente, mas, como casas democráticas que são, têm o dever de abrir suas portas e incluir a população nesse debate”, opina, defendendo a intervenção do Estado na questão.
Para ele, a atividade do Uber deve ser regulamentada e, de forma simultânea, as autoridades competentes precisam rever as regras que cabem aos taxistas, tornando-as menos rígidas. “Estabelecer critérios similares para os dois grupos daria condições de mais pessoas participarem, legitimamente, desse mercado. Isso aumentaria a concorrência, resultando em queda nos preços e melhoria na qualidade do serviço oferecido à população”, prevê. O parlamentar acredita que a prática do Uber – subsidiar corridas para oferecer preços mais competitivos – não é sustentável e, por isso, lesará consumidores e taxistas. “É preciso intervir quando um grupo utiliza artimanhas que não são justas para o usuário ou para o concorrente”, argumenta.
A opinião é compartilhada pelo deputado Beto Accioly. “Os taxistas têm uma série de regras a cumprir, as quais não cabem atualmente ao Uber. Assim, a concorrência fica desleal. Depois do estabelecimento de regras similares aos grupos, me posicionarei favorável ao aplicativo. Hoje, acho ele ilegal.” Novaes assegura ainda que é inviável tentar conter os avanços tecnológicos, mas os gestores devem atuar focados, também, na questão social. “Não podemos proteger determinados mercados e impedir que a sociedade usufrua das inovações que surgem todos os dias. Porém, devemos considerar os impactos sociais das mudanças, como a perda de empregos por trabalhadores dos setores atingidos”, complementa.
Por outro lado, Jacques Barcia, consultor de tendências do Porto Digital, defende que o papel dos órgãos administrativos, nesse caso, é fugir do conservadorismo e oferecer um novo horizonte para esses profissionais. “Em vez de tentar preservar um setor, os governos precisam requalificar os trabalhadores que vierem a ser excluídos do processo e reinseri-los no mercado”, propõe. O consultor explica que o Uber é apenas a mais conhecida de uma série de ferramentas que estão mudando a forma como a sociedade se organiza. “Vivemos hoje um processo de monetização de itens ociosos, sejam eles carros, quartos ou livros. Com o suporte da internet, retira-se o intermediário do serviço e aumenta-se a escala de usuários, o que, consequentemente, reduz os custos da operação. Isso significa preços melhores para os consumidores”, elucida Barcia.
Pesquisador da área de inovação e empreendedorismo, o professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco Sílvio Meira vê a mudança provocada pelo aplicativo como positiva para a sociedade, porque representa o enfrentamento a um “oligopólio provido por leis”. Ele garante que a transformação é “inevitável” e que o Legislativo precisa se preparar para antecipar outras discussões desse tipo. “A mudança trazida pelo Uber não tem mais volta. Ficar discutindo sua legalidade representa a perda de um tempo precioso, que poderia ser utilizado em uma discussão mais útil: a mobilidade urbana como um todo.
Se os governos não olharem adiante, o mercado de tecnologia continuará definindo as regras desse e de outros setores, sem a participação dos governos”, prevê. Meira acredita que os gestores públicos “discutem o passado”, e isso é resultado da falta de pensamento estratégico e de investimentos em inovação no Brasil. “Apenas absorvemos, pelo consumo, as mudanças criadas em outros mercados. Assim, não discutimos o processo e, depois, perdemos muito tempo apenas tentando entender as transformações”, analisa. Segundo ele, os prejuízos dessa postura são amplos. “Em qualquer ambiente, não há vantagem competitiva ou estrutural em ser o último a compreender a nova dinâmica estabelecida. O País perde o timing para formar capital humano e não aproveita as oportunidades trazidas pela nova realidade.”
À margem – Não é apenas o setor de transportes que está enfrentando mudanças. Além de pedir um táxi, outras atividades rotineiras como reservar um hotel, assistir a um filme ou fazer uma ligação também estão ganhando, dia a dia, uma nova roupagem (confira no infográfico). Todos esses serviços têm, em comum, o fato de estarem atuando em um “vácuo” legislativo, realidade que abre espaço para o surgimento de novos atritos entre mercados e gera insegurança ao consumidor.
Presidente da Comissão de Tecnologia da Informação da Ordem dos Advogados do Brasil em Pernambuco, Frederico Duarte entende que, para ser eficiente, a normatização precisa ser abrangente, focada no objetivo maior do Estado. “É equivocado tentar regular situações específicas. Daqui a pouco, surgem novos aplicativos e tal legislação não atenderá mais à realidade. A saída é delimitar regras básicas para o setor envolvido, de forma a assegurar que o interesse do usuário seja garantido por qualquer prestador de serviço que surgir”, avalia.
Em paralelo, a qualidade do que é oferecido ao consumidor – tanto por setores estabelecidos quanto pelas novas plataformas – precisa ser fiscalizada pelas agências reguladoras, defende Sílvio Meira. No entanto, o professor acredita que esses órgãos têm que reavaliar suas posturas. “A imposição de limite de internet, que vem sendo atualmente proposta pelas telefônicas e afeta o uso de várias dessas ferramentas, mostra o descompasso entre o interesse público e a atuação das agências. Em razão da capacidade de lobby dos agentes provedores do mercado ser maior que a articulação dos usuários, esses são desprestigiados no processo”, critica. Para mudar essa realidade, ele propõe “a regulação dos reguladores e mecanismos mais eficientes de avaliação permanente disponíveis para os usuários”.
Inovação – Um dos primeiros recifenses a abrir as portas de sua casa para receber hóspedes por meio do aplicativo AirBNB, ainda em 2011, Eiran Simis não é só um entusiasta das novidades trazidas por essas tecnologias, mas um profissional da área: atua como consultor do Centro de Estudos e Sistemas Avançados no Recife (C.E.S.A.R.). “Quando minha filha foi morar com a mãe, fiquei com um quarto ocioso em casa. Como sempre gostei de receber amigos, experimentei a ferramenta, que também tem a vantagem de trazer um retorno financeiro bacana”, lembra. Atualmente, as hospedagens já respondem por 10% da renda dele.

OPORTUNIDADES – Consultor do C.E.S.A.R., Eiran Simis se inspirou no AirBNB para criar o eventplatz.com, site que oferece estrutura física para eventos. Foto: Giovanni Costa
Eiran, que também é professor, conta que o modelo de negócios do AirBNB o inspirou. Em 2013, ele criou o eventplatz.com, site que oferece estrutura física para eventos. “Quando chegava antes do horário das aulas, ficava incomodado com a ociosidade de salas, laboratórios e equipamentos. Assim, tive a ideia de criar uma plataforma que integra pessoas que têm espaços de negócios disponíveis a profissionais em busca de estrutura para seus eventos.” O empreendedor cobra 10% sobre cada transação, valor ainda insuficiente para suprir os gastos com o site. “Não tenho lucros, por enquanto, mas esse mercado exige que se corra riscos”, diz o empresário, que critica as regras do setor. “As leis atuais, por serem anteriores a muitas dessas tecnologias, favorecem apenas as grandes empresas, e a inovação nasce em pequenos empreendimentos”, pontua.
“O ambiente de negócios no Brasil é hostil e burocrático, com excessivas cobranças tarifárias e regras”, complementa Jacques Barcia. Para ele, tais condições inibem os investidores. “Arriscar-se no País, com essas condições, é muito complicado. Por isso, a maioria das empresas que trabalham com inovação acabam parando em um nível confortável de desenvolvimento de soluções, não atingindo o patamar de impacto global”, analisa. Ele explica que o Porto Digital, centro responsável pela formulação de políticas públicas que fomentam a inovação em Pernambuco, incuba, atualmente, cerca de 200 empresas, mas apenas 1% delas são consideradas “unicórnios”, ou seja, iniciativas que transformam os mercados em que atuam.
“Nossa função é mudar essa realidade”, assegura. Para essa missão, Barcia acredita ser imprescindível uma nova postura da gestão pública diante da inovação. “Minha função é olhar para frente, para um horizonte de 10 ou 15 anos, e dizer o que está por vir. Há lugares no mundo em que esse tipo de profissional trabalha junto com o governo, preparando o para as mudanças”, comenta. E conclui, explicando as consequências dessa política estratégica: “Se você tem um Poder Público que consegue enxergar as mudanças e se adaptar a elas de forma rápida, você cria um ambiente inovador mais adequado, que atrairá profissionais que farão a diferença para toda a sociedade.”
*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de maio/junho. Confira a edição completa.