Jovens negros estão mais expostos à violência

Em 29/04/2016 - 11:04
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DEPOIMENTO – Na Alepe, Eleonora Pereira, que teve um filho assassinado, afirmou que ele foi vítima de “múltiplo preconceito”.

Ainda que se perceba um sentimento generalizado de medo e insegurança na sociedade, as estatísticas mostram – e o cotidiano confirma – que a violência atinge, com mais intensidade e frequência, grupos sociais específicos. O Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial 2014 (ver arte), o mais recente estudo sobre o tema feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ratificou numericamente essa constatação. De acordo com o levantamento, a chance de um jovem negro ser assassinado no Brasil é 2,5 vezes maior que a de um brasileiro da mesma faixa etária (12 a 29 anos) que se declara branco. Em Pernambuco, esse risco chega a ser 11,57 maior, o segundo pior índice apresentado pelos Estados brasileiros, atrás apenas da Paraíba.

Fez parte dessa estatística o recifense José Ricardo Pereira, espancado e morto em 2012, aos 24 anos, na porta de sua casa, no bairro de Jardim São Paulo. Negro, homossexual e morador da periferia, José Ricardo foi vítima de “múltiplo preconceito”, segundo sua mãe, Eleonora Pereira (foto). “Essas pessoas, mais do que violentadas, estão sendo exterminadas. É preciso que as autoridades verifiquem e sistematizem as características das vítimas de violência e pensem em políticas públicas e em leis direcionadas a combater o problema”, opinou. Ela, que coordena o Movimento Mães pela Igualdade, critica a metodologia pernambucana, que não especifica a raça da vítima. “Depois que perdemos um filho, nos tornamos mutiladas pela vida. Eu tento transformar essa dor em luta.”

O Estado em que Eleonora vive apresenta, ainda, outro dado preocupante. Fica em Pernambuco o município com o pior índice de vulnerabilidade do País: Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana.  O levantamento leva em consideração índices de mortalidade por homicídio, de pobreza, de frequência à escola, de situação de emprego, entre outros. Para a coordenadora do Movimento Negro Unificado de Pernambuco, Marta Almeida, “a violência física é a consequência extrema do racismo, mas o preconceito se revela de inúmeras outras formas”. Ela fala sobre violência correlata. “Somos vítimas de preconceito porque somos negros, pobres, mulheres. Mais que isso: sofremos com a intolerância religiosa, pois são as crenças e culturas negras as mais perseguidas”, explicou.

Além de dados relativos à violência, não por acaso os negros também aparecem em posição desvantajosa em outros indicadores sociais, segundo pesquisas divulgadas regularmente. Para exemplificar, conforme a 8ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a população carcerária brasileira possuía, em 2013, 18,4% mais negros do que brancos. E, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o salário médio das pessoas negras no Brasil era, nesse mesmo ano, de R$ 876,40, enquanto brancos ganhavam em torno de R$ 1.517,70. Em 2012, 22,2% da população branca tinha 12 anos ou mais de estudos, enquanto apenas 9 % dos negros atingiram essa escolaridade, segundo o Ipea.

Para enfrentar essa realidade em Pernambuco, o Governo do Estado lançou, no final de 2015, o 1° Plano Estadual de Promoção da Igualdade Racial. O documento apresenta como objetivo geral “garantir o recorte étnico-racial no conjunto das políticas públicas e de ações afirmativas executadas pelo Governo Estadual, seguindo os princípios da transversalidade, descentralização e gestão democrática”. Segundo o coordenador estadual de Igualdade Racial, Vicente Moraes, o plano foi construído com a participação da sociedade. “Nosso trabalho agora é apresentar esse documento às prefeituras a fim de incentivar os municípios a replicar seu conteúdo, respeitando as especificidades locais”, explicou.

Na Assembleia, os trabalhos de enfrentamento ao racismo têm o suporte da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos e da Frente Parlamentar de Combate ao Extermínio da Juventude Negra. O presidente do primeiro colegiado, deputado Edilson Silva (PSOL), acredita que a mudança dessa realidade passa, primeiramente, pela implementação de políticas de “prevenção social”. “Acesso à saúde pública, melhoria nas condições de habitação e inserção de disciplinas sobre a cultura negra no currículo da educação são ações urgentes. É por meio delas que conseguiremos exterminar as condições de vulnerabilidade que recaem, majoritariamente, sobre essa parcela da população”, pontuou.

Para o coordenador-geral da Frente, deputado Bispo Ossesio Silva (PRB), o Brasil e Pernambuco já avançaram muito na formulação de leis voltadas ao empoderamento do negro e combate à discriminação. “É preciso, no entanto, cobrar das autoridades para que haja rigor na aplicação das leis e na punição daqueles que as descumprem”, opinou. O deputado ressaltou, porém, que esse é um trabalho que deve envolver toda a sociedade. “O combate ao racismo não é uma função apenas do Legislativo. Nossas ações, para surtirem efeito, precisam do suporte da população”, observou. A Frente, que já promoveu audiências públicas nos municípios do Cabo de Santo Agostinho, Recife e Olinda, pretende, neste ano, continuar levando as discussões sobre o tema para fora das paredes da Assembleia.

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Entrevista – Liana Lewis *

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LIANA – “Somos explicitamente racistas, mas lançamos mão de vários argumentos para negar isso.”

 

Tribuna Parlamentar – As causas dessa realidade discriminatória e violenta contra os negros são antigas e ainda persistem. A senhora poderia apontar algumas delas?

Liana Lewis – Quando das Grandes Navegações, foi construída uma ideia do “Nós” (europeus civilizados) e do “Outro” (colonizados que não estavam inscritos em uma ideia de humanidade). Essa cisão se aprofundou com o racismo científico no século XIX, momento em que a ciência legitimava a ideia de gradações de humanidade. Hoje, devemos pensar no que a antropóloga Nancy Scheper-Hughes denomina de comntinuum genocida, que consiste em um projeto, das diversas instituições, de aniquilamento não apenas físico, mas subjetivo, cultural e intelectual de populações. Temos esse processo no Brasil, onde vemos o encarceramento em massa de negros, a violência obstétrica sofrida por negras, estereótipos disseminados pelos meios de comunicação etc.

TP – A senhora acredita que o mito do país miscigenado, que convive bem com as diferenças de raças, dificulta a percepção do racismo no Brasil?

LL – Sem dúvida. O mito gerou uma ideia de que não há racismo no Brasil. Essa ideia, que possui em Gilberto Freyre sua legitimação, ganha força ao se comparar nosso racismo – que não foi calcado na lei – com os sistemas do Apartheid, na África do Sul, e o de Jim Crow, nos Estados Unidos. O racismo brasileiro sempre foi institucionalizado e territorializado, mas não a partir de um marco jurídico. Costumo afirmar que nosso racismo não é velado, ele é explícito e tem se tornado cada vez mais. Costumo dizer que nosso racismo, na verdade, sofre de falta de honestidade de autoatribuição. Somos explicitamente racistas, mas lançamos mão de vários argumentos para negar isso.

TP – Como a senhora avalia a legislação atual em defesa dos direitos dos negros?

LL – Nos últimos anos, houve um grande avanço na legislação, especialmente no que diz respeito a políticas de ação afirmativa. O problema reside no fato de que, quando da implementação dessas políticas, existe um esvaziamento da vontade de rever a hierarquia racial a partir das instituições. Um exemplo são os constantes questionamentos das politicas de cotas raciais e um retraimento de recursos para a saúde da população negra. Em um momento de crise política e econômica como o que estamos vivendo, com uma radicalização do pensamento conservador, a população negra deve ficar atenta a um retraimento dos direitos adquiridos.

TP – Como o Estado e o País podem avançar?

LL – O País só pode avançar com a continuidade de mobilização do Movimento Negro e, a partir daí, uma radicalização das políticas de ação afirmativa (que englobam, mas vão além da questão das cotas) e uma reestruturação radical das instituições. É necessária uma mudança de mentalidade, o que implica um questionamento dos privilégios da população branca. Isso cria um campo de batalha extremamente complexo e árduo.

* Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco

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