Direito de viver
Estatuto da Pessoa com Câncer, promulgado em janeiro, consolida garantias para pacientes e familiares
André Zahar
A cada duas semanas, em média, o trabalhador rural aposentado José Severiano de Oliveira, 72 anos, deixa o distrito de Negras, em Itaíba (Agreste Meridional), na divisa de Pernambuco com Alagoas, e percorre sete horas de viagem até o Recife. Seu destino na Capital pernambucana é o Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP), onde faz o tratamento de quimioterapia. A unidade atende cerca de metade dos pacientes com a doença no Estado.
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Ao contar sobre o momento em que recebeu o diagnóstico sobre a dor que sentia na região do estômago, Oliveira afirma que dispensou as mesuras da equipe médica: “Não faz medo o cabra dizer que o outro tem uma doença. Se tem, precisa descobrir para poder tratar. Não pode esconder o que está acontecendo com a pessoa”, diz.
Embora se considere bem tratado quando acorre à casa de apoio mantida pelo município do Agreste, constata que o número de pacientes gera situações de superlotação. “Carro pra vir tem, graças a Deus. O povo tudinho vai pra lá. Tem dia que vem duas vans cheias de gente, ônibus, carro pequeno… Tem dia que enche, que o povo dorme no chão. Não tem cama para todos, bota colchão no chão e se deita”, relata.
A preferência para pessoas com câncer no transporte e nas casas de apoio mantidas com recursos públicos é um dos dispositivos contidos no Estatuto da Pessoa com Câncer (Lei 16.538/2019), promulgado em 9 de janeiro deste ano. A legislação estabelece como dever do Estado, da sociedade, da comunidade e da família assegurar, com preferência, a plena efetivação dos direitos desses pacientes.
Para incentivar a prevenção da doença e a melhoria da qualidade de vida das pessoas acometidas, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em parceria com a União Internacional de Combate ao Câncer, promove, em 4 de fevereiro, o Dia Mundial do Câncer.
Conforme estabelece a lei aprovada na Alepe, o atendimento integral à saúde da pessoa com câncer, por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), é obrigatório. Entre os direitos assegurados estão, ainda, a preferência no atendimento e no fornecimento de medicamentos e a priorização pela convivência com a família, em vez de abrigo ou entidade de longa permanência. A norma regulamenta, de forma ampla, o atendimento a esses pacientes, incluindo assistência médica, psicológica, odontológica, oficinas terapêuticas e o fornecimento de órteses ou próteses e serviços especializados para habilitação e reabilitação.
A lei é de autoria da ex-deputada Socorro Pimentel (PTB) e do deputado licenciado Rodrigo Novaes (PSD). O parlamentar ressalta que a construção do projeto foi feita ao longo de mais de um ano, por meio de uma Comissão Especial criada na Alepe e presidida por ele. “Tivemos reuniões com várias entidades, fizemos visitas. A partir do diagnóstico que realizamos, tivemos a capacidade de elaborar o estatuto, diante das dificuldades observadas no tratamento dessas pessoas.” Para Novaes, a iniciativa permitirá ao cidadão exigir os seus direitos e ao Ministério Público fazer a proteção do direito coletivo.
Moradora de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR), Arleide Paulina Dutra, 38 anos, acredita que a lei pode representar um avanço, especialmente se garantir mais agilidade para consultas e exames. “Marquei em janeiro uma tomografia para março. Com essa medida, a gente vai ter como mostrar as prioridades”, pontua ela, que já fez mais de 180 sessões de quimioterapia.
A dona de casa afirma que a maior motivação para o tratamento, desde que teve o diagnóstico de câncer de mama, em 2014, foi a filha, que então tinha 4 anos e recentemente completou 9. “Operei a mama e hoje trato pulmão e fígado. Passei por psicólogo, nutricionista e até fonoaudiólogo. No começo, chorei mais pela minha filha. Fiquei pensando nela, que veria uma mãe sem cabelo, sem uma mama. Atualmente, a gente tem um grupo que se chama Mulheres Valorosas, com 38 integrantes que tiveram câncer de mama. São pacientes levando alegria para outros”, conta.
Após o impacto do diagnóstico, espaços de afetos como esse se revelam essenciais. Desde 1992, o Grupo de Apoio e Autoconhecimento para Pessoas com Câncer (Gaapac) auxilia pacientes, familiares e profissionais de saúde, numa metodologia que permite o contato com as emoções profundas, por meio de vivências em grupo e atividades criativas.
Quando a equipe de reportagem da Alepe esteve lá, em janeiro, recebeu da enfermeira Madalena Andrade, diretora de pacientes, livros com poemas e pinturas feitos pelos participantes. Entre as obras, a de Edna Bispo, que ilustra esta reportagem, em que flores ganham luz e cor diante de um fundo verde escuro. O Gaapac realiza reuniões de compartilhamento uma vez por semana e tem o apoio de voluntários e parceiros.
Atual presidente da entidade e ex-paciente de câncer de mama, a pediatra Ana Maria Aguiar frisa que o adoecimento e a cura não são resultado, apenas, de fatores biológicos. “O grupo de apoio estimula o autoconhecimento para identificar questões pessoais – como a forma de encarar a doença e relações familiares – e ajudar o participante a saber que está inserido na própria cura. Independentemente do prognóstico, é preciso ter metas futuras, enfrentar a situação com mais leveza e se cuidar no dia a dia”, declara.
Na avaliação da presidente do Gaapac, o estatuto aprovado na Alepe contempla até itens comumente relegados ao segundo plano, como direito à presença de acompanhante durante os períodos de atendimento e de internação. “A questão é brigar pelo cumprimento da lei, diante das limitações estruturais do sistema de saúde”, avalia Ana Aguiar.
Superintendente-geral do HCP, o oncologista Hélio Fonsêca aponta a importância de uma conscientização cada vez maior da sociedade para a prevenção, a busca por tratamento; e do Poder Público, para a destinação de recursos. “Precisamos criar um debate amplo e permanente, pois o câncer acomete pessoas de todas as idades. A incorporação de novas tecnologias e remédios requer recursos elevados, e a gente se depara com uma limitação para ofertá-los dentro da rede do Sistema Único de Saúde”, salienta, citando a defasagem na tabela do SUS.
Com relação a esses aspectos, o Estatuto da Pessoa com Câncer estabelece a destinação privilegiada de recursos públicos, a formação de cuidadores habilitados, a capacitação de profissionais e grupos de autoajuda, o fomento à realização de estudos e a promoção de ações e campanhas preventivas. “O direito à saúde do portador de câncer será assegurado mediante a efetivação de políticas sociais públicas, de modo a construir seu bem-estar físico, psíquico, emocional e social no sentido da construção, preservação ou recuperação de sua saúde”, diz a Lei.
Mergulho
“Novo encontro com o câncer.
Um mergulho mais profundo dentro de mim mesma.
Antes foi preciso viajar para um terreno outrora obscuro
Onde pequenos pontos de luz foram crescendo e aumentando
Na minha alma a certeza de que não estou sozinha.
Brilhamos juntas e por isso foi possível brilhar mais forte
E assim clarear as possibilidades de renovar a esperança”
- Trecho de poema da enfermeira Mônica Fidelis, que integra livro publicado pelo Gaapac