Há pouco mais de um ano, quando a Região Metropolitana do Recife foi castigada por chuvas que resultaram em 134 mortes, os catadores de materiais recicláveis José Cardoso e Roberta Santana foram acordados no meio da madrugada por uma chamada telefônica. Do outro lado da linha, um vizinho alertava que o galpão de triagem onde trabalham no bairro da Imbiribeira, na Zona Sul do Recife, estava sendo inundado. Cardoso relata que, ao chegarem no local, pela manhã, tudo estava destruído.
“Esse galpão era considerado um dos melhores da região, tínhamos até orgulho de trabalhar aqui. Na última tempestade, nós estávamos em casa e aí começou a chuva, ai um vizinho chamou e disse: ‘olha, está entrando água’, eu pensei que era só água rapaz, quando eu cheguei aqui de madrugada, estava tudo estourado, além da enchente teve o incêndio, tudo na mesma hora.”
José e Roberta fazem parte de uma categoria de trabalhadores que desenvolve, cotidianamente, atividades que têm grau máximo de insalubridade, segundo o Ministério do Trabalho. Embora tenham um papel importante na sociedade, eles relatam problemas como a falta de renda fixa – agravada pela variação constante dos valores dos recicláveis – e de acesso a benefícios previdenciários e trabalhistas, além de doenças e muito preconceito. Roberta, filha de mãe catadora e pai pescador, é cria da comunidade de Caranguejo Tabaiares, na Zona Oeste do Recife.
“Eu já levei nome de cata lixo, de come-lixo, mas eu nunca me liguei para isso não, e nem me aperreava não… tá bom, eu tô comendo lixo, mas tô vivendo, entendeu? E ainda sustentei meus filhos da reciclagem. Nunca peguei nada de ninguém.”
Roberta lembra que saía para trabalhar de manhã e não tinha hora para voltar. Levava quatro crianças pequenas na carroça e chegava a subir pontes arrastando 600 quilos de papel nas costas. Cardoso, que é natural de Itumirim, em Minas Gerais, chegou à Capital pernambucana aos 17 anos. Filho de uma dona de casa e um pai mecânico que sofria com a dependência de álcool, começou a catar recicláveis entre um serviço e outro na construção civil. Na falta de emprego, assumiu definitivamente a função como fonte de sustento. Chegou a morar na rua e trabalhou num lixão, o que lhe rendeu três pneumonias.
“A lama podre do lixão vem no joelho, você encontra animais mortos, você encontra a bandidagem, você encontra tudo de ruim dentro do lixão. Quantos morreram, quantos estão enterrados dentro dos lixões, em brigas entre eles mesmos, entre nós mesmos, em situações de doença sem poder ter um médico, e ele morrer dentro do lixão? E a vida do lixão nunca prestou para ninguém.”
Cardoso e Roberta são representantes em Pernambuco, respectivamente, do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e da Associação Nacional dos Catadores. Eles têm orgulho da participação na luta para que Pernambuco pudesse anunciar, em março deste ano, a erradicação dos lixões a céu aberto em seus 184 municípios. O Estado conseguiu cumprir a meta do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, que estabelece essa medida até 2024. Apesar do avanço, o setor ainda tem outros desafios, como explica o pesquisador do Grupo de Gestão Ambiental da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Daniel Pernambucano.
“Sim, de fato o marco do encerramento dos lixões foi algo valorável, mas de que forma foi feito isso? A condução desse encerramento precisa ter a questão da participação da população, da sociedade em si. Porque se processo continua viciado do início, sem uma política de coleta inclusiva, a gente vai continuar levando para os aterros os mesmo resíduos que iam pros lixões e teremos novos lixões.”
O pesquisador participou da Audiência Pública realizada pela Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Pernambuco, em junho deste ano, para discutir a gestão do lixo. No encontro, os participantes debateram a situação do Estado, onde são geradas 4,4 milhões de toneladas ao ano de resíduos sólidos urbanos. Também existem em Pernambuco 63 cooperativas e associações de catadores, envolvendo um contingente de 1.164 trabalhadores, segundo o Fórum Estadual Lixo e Cidadania. Já para os não organizados, a estimativa é de oito mil pessoas. Uma das maiores conquistas do movimento foi a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei Federal 12.305, de 2010. A norma reconhece a atuação dos catadores como atividade de relevância social, econômica e ambiental. Na prática, a categoria ainda precisa lutar por mais valorização. É o que explica Lindaci Gonçalves, integrante do Movimento Nacional Eu Sou Catador.
“Essa categoria é marginalizada de todas as formas. E o que a gente está buscando é o pagamento pelos serviços prestados. A gente trabalha de sol a sol e a gente sabe que tem condições e as contas não fecham. Como é que um município paga milhões por mês para uma empresa e não consegue pagar mil para os catadores?”
Lindaci também participou da Audiência Pública realizada pela Alepe, por solicitação do deputado Luciano Duque, do Solidariedade. O parlamentar considerou importante capacitar as gestões municipais para acessarem recursos que garantam a execução da Política Nacional de Resíduos Sólidos e o fortalecimento da coleta seletiva. Duque também apoiou a luta dos catadores pelo pagamento por serviços prestados e defendeu a urgência do tema.
“A cobertura de coleta do nosso país, abrange 92.2% dos resíduos, o que significa que 6,4 milhões de toneladas por ano, se quer, são retiradas dos pontos de geração. Esse volume poderia encher três mil piscinas e o pior é que cerca de 40% de tudo que é coletado no Brasil vai para o lixão a céu aberto, o que é um sistema medieval de descarte.”
O presidente do Colegiado de Meio Ambiente, Romero Sales Filho, do União, defendeu que o Parlamento acompanhe de perto a execução da Política Estadual de Resíduos Sólidos, e incentive os entes municipais a desenvolverem projetos e serem beneficiados pelo ICMS ecológico. A reportagem especial “Heróis Invisíveis” continua na próxima semana, quando eu conto o restante dessa história.