Em 12/07/2019 - 10:07
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Marcos Miguel

Às margens do São Francisco, na comunidade do Roçado, localizada na zona rural de Petrolina (Sertão de Pernambuco), seu Raimundinho narra com nostalgia sua história de parceria com o Velho Chico. Há décadas, o curso d’água irriga a propriedade do agricultor familiar aposentado de 73 anos. Foi o lucro das verduras e hortaliças plantadas ali que permitiu a Raimundo Nunes sustentar a casa e criar os filhos. A relação com o rio, porém, mudou ao longo do tempo.

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“Era uma água muito cristalina, sadia. Não tinha essa poluição que existe hoje. A gente tanto nadava como pescava”, recorda. “Quando os meus filhos eram pequenos, eu saía na margem do rio e jogava a tarrafa. Com menos de um quilômetro, já voltava cheia de peixe. Era uma coisa certa. A mulher podia dizer: ‘Agora não tem nada para fazer a janta’. Num instante, o cabra ia ali e trazia o peixe. A agressão ao São Francisco foi tanta que sumiu o peixe, e toda essa forma de a gente conviver com ele”, lamenta Raimundo.

Também de Petrolina, o barqueiro Luiz Rogério Rocha coleciona memórias afetivas com o rio. O interesse pela navegação veio de família. Ainda criança, durante as férias escolares, Rogério ajudava o pai no transporte fluvial de gado e alimentos produzidos no oeste da Bahia. As expedições pelo rio duravam cerca de 30 dias e percorriam mais de mil quilômetros. Com os anos, a atividade barqueira entrou em declínio e o empreendedor decidiu explorar o potencial turístico da região. Atualmente, a agência dele, Vapor do Vinho, oferece passeios de barco pelo Vale do São Francisco a quase 1.200 passageiros por mês.

Turismo que pode acabar se o São Francisco for contaminado por rejeitos da barragem B1, da Vale S.A., rompida no último mês de janeiro em Brumadinho (MG). Lá, o leito do rio já teria sido atingido pela lama contaminante, segundo estudos da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e da organização não governamental SOS Mata Atlântica. Por sua vez, os órgãos oficiais que acompanham o caso, como o Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e a Agência Nacional das Águas (ANA), negam tal versão.

Para Rogério, o momento é de alerta. Em jogo, está sua fonte de renda. “Quem vai querer navegar num rio morto, doente, poluído? Quem vai querer tomar banho? Hoje, o turista ainda se diverte no Lago de Sobradinho. Se essa contaminação realmente chegar para cá, está todo mundo morto. Morto. O prejuízo seria incalculável”, sentencia o empresário.

A hipótese de contaminação foi discutida em audiência pública da Frente Parlamentar em Defesa do Rio São Francisco, da Assembleia Legislativa de Pernambuco, realizada na Câmara Municipal de Vereadores de Petrolina, no último 3 de junho. Para o presidente do Distrito de Irrigação Nilo Coelho (Dinc), José Loyo, que integrou a mesa de debates, o impacto ambiental seria desastroso.

“Não só para o Distrito, mas também para a economia local. Envolve muita gente. Toda a água utilizada pelo Dinc vem do São Francisco, captada diretamente da barragem de Sobradinho. De lá, via canais, é distribuída para a região. São quase 40 mil hectares”, destaca Loyo.

O faturamento do Distrito Nilo Coelho está na casa de R$ 1,4 bilhão por ano, segundo José Costa, gerente regional de irrigação da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codesvasf). O número, no entanto, representa só uma parcela da riqueza gerada pelo perímetro. O polo totaliza 120 mil hectares de áreas produtivas, somados os projetos de irrigação pública, como o Dinc, e os privados. 

“O setor se fortaleceu bastante depois que o mercado externo se abriu para nós. Isso atraiu mais investimentos. Atualmente, a região é responsável por mais de 80% das mangas exportadas no Brasil. E mais de 90% das uvas”, afirma Costa.

Apenas as duas culturas renderam US$ 265 milhões em 2016, de acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. São cifras que podem aumentar – e muito. A área irrigável do território pode triplicar, chegando a 360 mil hectares. A esse ponto positivo, também somam-se outros diferenciais, na análise de Tássio Lustoza, gerente executivo da Associação dos Produtores e Exportadores de Hortigranjeiros e Derivados do Vale do São Francisco (Valexport).

“É um dos únicos locais no mundo com dois climas: semiárido e tropical. Temos 3 mil horas de sol por ano. A insolação é importantíssima para a fruticultura. É a partir da luz solar que a fruta produz açúcar. Além disso, nossa precipitação anual é de 450 milímetros. Chove muito pouco. A safra pode ser mais programada quando se consegue controlar a quantidade de água fornecida às plantas”, ressalta Lustoza.

Tal conjuntura permite aos agricultores colher mais de duas safras por ano. Algo que não acontece nas vinícolas do sul do País, por exemplo, segundo Lustoza. São fatores favoráveis como esse que levaram o investidor paulista Flávio Muranaka a se mudar para Petrolina, há mais de 20 anos. A empreitada rendeu frutos: só na última safra, o empresário exportou mais de 12 mil toneladas de manga.

A irrigação dessa produção é feita em uma área de, aproximadamente, 760 hectares. Todo o recurso natural vem do São Francisco (diretamente do rio ou da barragem de Sobradinho) e passa por filtragens antes de chegar às mangueiras. “A água é fundamental para o desenvolvimento das plantas e produção das frutas. Sem ela, a fruticultura seria inviável. É a conjunção do clima seco com a irrigação adequada que origina frutas de melhor qualidade”, assevera Muranaka.

O negócio do exportador, acrescido aos demais da região, gera 250 mil empregos diretos; outros 950 mil indiretos, segundo dados da Valexport. Fruticultura, entretanto, que está em risco. A eventual contaminação do rio comprometeria a qualidade do solo com metais pesados. Nesse cenário, os frutos da atividade de seu Raimundinho, Rogério, Muranaka e tantos outros que dependem das águas do Velho Chico poderiam, em última instância, secar.

Fonte: Valexport

Fonte: Valexport

 

*Produção, reportagem, imagens e criação gráfica: Marcos Miguel

*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Roberto Soares


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