Marcos Miguel
Como seria o Brasil sem o Rio São Francisco? A reflexão surge em um capítulo sombrio da história do Velho Chico: seu leito foi atingido por rejeitos da barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, que se rompeu no último 25 de janeiro, em Brumadinho (MG). A contaminação foi constatada por pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), por meio de imagens de satélite e de trabalho de campo realizado entre janeiro e abril deste ano.
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A lama contaminante chegou à represa da Usina Hidrelétrica de Três Marias, ainda em Minas Gerais, no dia 12 de março, segundo o estudo. O Velho Chico atravessa o local em direção ao Nordeste do País, onde corta os Estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe. Ainda não há informações sobre quando e com que intensidade a água poluída vai alcançar a região. Sua vinda, porém, é esperada, na avaliação do pesquisador da Fundaj, Neison Freire.
“Os resultados desses estudos indicam que, em algum momento, a contaminação vai chegar ao Nordeste. É uma questão lógica. Desde que ocorreu o desastre, em 25 de janeiro, o material contaminante continua exposto ao meio natural. Enquanto a lama não for retirada, com limpeza e destinação adequadas, o risco permanece constante e cada vez mais próximo das nossas cidades”, alerta Freire.
Conclusão semelhante teve um estudo elaborado pela organização não governamental SOS Mata Atlântica. A equipe técnica da entidade visitou trechos do Rio Paraopeba para analisar a qualidade da água, entre os dias 8 e 14 de março. Foram coletadas amostras em 12 pontos dos municípios mineiros de Pompéu, Curvelo, Felixlândia e Três Marias. Em seis deles, a turbidez ultrapassou os limites definidos pela Resolução nº 357/2005, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Com base nos índices, a expedição detectou o carreamento de rejeitos de minério além do reservatório de Retiro Baixo, no qual parcela significativa deles está retida. No início da reserva de Três Marias, a cerca de 70 quilômetros de distância, a água registrou a presença de metais pesados, como cobre, cromo, ferro e manganês. Uma evidência de que parte das substâncias contaminantes não se decanta ao longo do curso do Paraopeba e está, portanto, sendo levada rio abaixo.
Para a especialista em recursos hídricos e coordenadora da expedição, Malu Ribeiro, o problema pode impactar, drasticamente, toda a Bacia do São Francisco. “Negar o carreamento é negar a necessidade de uma ação preventiva. Ainda que os órgãos oficiais não estejam constatando o carreamento hoje, ele ocorrerá. Os rejeitos não serão retirados do corpo central do reservatório de Retiro Baixo, não será feito o desassoreamento. Os contaminantes ficarão lá”, explicou. “Estão esperando que o São Francisco consiga diluir os poluentes. Não apenas esses, mas também os que recebe cotidianamente e os que já recebeu ao longo de décadas”, adverte Malu.
Ainda segundo a gestora, a hidrodinâmica dos reservatórios varia conforme uma série de fenômenos climáticos, como incidência de chuvas e oscilações de temperatura, o que pode levar metais tóxicos depositados no fundo das águas de volta à superfície – e daí, correnteza abaixo. “Temos uma espécie de conta-gotas de contaminantes na cabeceira do rio. Isso exige atenção redobrada por parte das autoridades. É preciso que seja feita a revitalização da bacia para que o rio seja capaz de diluir os poluentes, ao longo de sua grande extensão, e a população siga utilizando a água sem risco”, acrescenta Malu.
Investigação
A contaminação do Velho Chico não é, todavia, consenso entre as autoridades que acompanham o caso. A Polícia Federal tem outra versão dos fatos. Entre os dias 9 e 16 de maio, a instituição coordenou uma expedição para avaliar os impactos do acidente industrial em Brumadinho. A iniciativa contou com a participação da Universidade de Brasília (UnB), Agência Nacional de Águas (ANA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD, na sigla original em francês), Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam).
A investigação apurou cerca de 4 mil dados, entre amostras de água, imagens de satélite, medições radiométricas e hidrológicas, coletadas ao longo de 250 quilômetros, desde Brumadinho até o reservatórios de Retiro Baixo e Três Marias. No dia 17 de maio, foi divulgada nota pública interinstitucional com os resultados do diagnóstico. O texto afirma que não há evidências de que os rejeitos da barragem B1 tenham ultrapassado os limites do reservatório de Retiro Baixo e atingido o lago de Três Marias e o Rio São Francisco.
Ainda de acordo com a nota, os órgãos ambientais envolvidos no monitoramento da tragédia estão vigilantes no que se refere à dispersão da pluma contaminante e a população será informada sobre qualquer alteração relevante no cenário de poluição, por meio de comunicados oficiais e da imprensa.

GARANTIA – Órgãos ambientais afirmam estar vigilantes sobre dispersão de pluma contaminante. Foto: Roberto Soares
O Igam, que participou do projeto da Polícia Federal, mantém a mesma posição. O órgão integra uma rede de monitoramento de qualidade das águas, em parceria com a Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais (Copasa), a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) e a ANA. Ao todo, 17 pontos estão sendo observados. Os parâmetros de avaliação incluem turbidez, PH, temperatura e existência de contaminantes, como arsênio, chumbo e mercúrio, entre outros.
Segundo informativo divulgado pelo Igam no último 30 de maio, os maiores valores dos parâmetros ocorreram logo após o desastre, principalmente nos primeiros 40 quilômetros do Rio Paraopeba, região mais impactada. Oscilações significativas foram notadas nas semanas subsequentes, principalmente devido a chuvas, que contribuíram para a remobilização do material depositado no leito do Paraopeba ou novos aportes de rejeitos. O documento reitera a mesma conclusão da Polícia Federal: os rejeitos minerários não chegaram ao Velho Chico.
Porém, o analista ambiental do Igam, Heitor Soares Moreira, admite o risco de contaminação. “Existe a possibilidade do material oriundo de Brumadinho chegar ao São Francisco. Entretanto, não se espera que isso aconteça nos próximos anos. Os modelos que temos utilizado para simular o transporte de sedimentos na bacia apontam que, aproximadamente, 77% do material ficará retido no primeiro reservatório do Rio Paraopeba, a Usina Hidrelétrica de Retiro Baixo. As partes mais finas podem migrar ao longo do tempo para o próximo reservatório, o de Três Marias. Mas a gente ainda não sabe com qual magnitude isso vai acontecer e se essa água vai conseguir transportar as substâncias químicas dos rejeitos”, esclarece Moreira.
Tais análises pós-Brumadinho devem contemplar as séries históricas de dados, segundo a Agência Nacional das Águas. Estudos sobre o Paraopeba, realizados antes da ruptura da barragem B1, por exemplo, já apontavam níveis de contaminação por ferro e alumínio, de acordo com o órgão federal. Assim, o histórico é fundamental para evitar confusão. Em Três Marias, a ANA está trabalhando justamente para determinar qual era o cenário anterior ao acidente.
Além das ações de monitoramento, a prevenção – ou minimização – do impacto ambiental no Velho Chico depende da implementação do Plano de Emergência para Contenção de Rejeitos da Barragem 1 e Reparação das Áreas Impactadas, proposto pela Vale S.A. à secretaria estadual de Meio Ambiente de Minas Gerais, no último 5 de fevereiro.
O documento apresenta intervenções de caráter emergencial para conter sedimentos e melhorar a qualidade da água. A escolha e a responsabilidade técnica das tecnologias adotadas são de inteira responsabilidade da Vale S.A. Os órgãos ambientais têm avaliado se tais propostas atendem à legislação ambiental em vigor, tanto em reuniões semanais como em vistorias in loco.
A coordenação dos trabalhos está a cargo da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), em parceria com equipes do Sistema Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Sisema), do Corpo de Bombeiros, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Militar Ambiental-MG.
Plano de Emergência para Contenção de Rejeitos
Até agora, segundo relatório da Vale S.A., as seguintes obras emergenciais foram concluídas:
- 1) Estação de Tratamento de Águas Fluviais (ETAF1) para tratar o ribeirão Ferro-Carvão;
- 2) Sistema de bombeamento de água do reservatório da Barragem 6, localizada ao lado da B1;
- 3) Cortina metálica no leito do ribeirão Ferro-Carvão, a montante da rodovia LMG 813 (Estrada Alberto Flores), na Ponte Alberto Flores, para reduzir o carreamento de sedimentos.
Em andamento, estão:
- 1) Estação de Tratamento de Águas Fluviais (ETAF2) para tratar a água do rejeito dragado do rio Paraopeba (previsão de entrega: agosto/2019);
- 2) Barreira Hidráulica (BHO) a montante do bairro Parque das Cachoeiras, para contenção de sedimentos (previsão de entrega: agosto/2019);
- 3) Dique a jusante da Barreira Hidráulica (BHO), com entrega prevista para outubro/2019.
Ainda de acordo com o relatório, a dragagem do Rio Paraopeba só deve ser iniciada a partir de outubro deste ano. Para tal, vão ser utilizadas dragas flutuantes para a retirada do material contaminante e disposição final em local adequado.
*Produção, reportagem, imagens e criação gráfica: Marcos Miguel
*Fotos em destaque: Roberto Soares (home) e Marcos Miguel (Notícias Especiais)