Surgido no século 18, na Europa, o liberalismo é uma doutrina que engloba questões econômicas, políticas e sociais. Naquela época, pensadores como John Locke e Adam Smith se posicionavam contra o mercantilismo e a intervenção do Estado na economia. Com a rápida expansão do capitalismo, essa corrente sofreu influências e passou por mudanças, chegando às formas conhecidas atualmente. O Em Discussão, programa de entrevistas da TV Alepe, conversou sobre o tema com o professor de Ciência Política da Faculdade Damas Antônio Henrique Lucena. Confira trechos da conversa a seguir, ou assista aqui na íntegra.
Em Discussão – Historicamente, quando (e em que contexto) surgem as ideias liberalistas?
Antônio Henrique Lucena – O liberalismo é uma teoria que vai influenciar revoluções inglesas – principalmente, a Revolução Gloriosa. O texto fundamental foi escrito por John Locke. Ele e os liberais se contrapunham ao autoritarismo e aos regimes absolutistas daquela época, ou seja, à total devoção à autoridade. Locke vai defender a importância da liberdade, por isso que o próprio nome da doutrina é liberalismo. Para ele, a liberdade é um fim em si mesmo e não deve ser acompanhada de outra coisa (para usar uma frase de outro liberal, que é Alexis de Tocqueville). Liberdade com outra coisa seria um caminho para a servidão, você não estaria sendo livre. Locke defende, por exemplo, o respeito do Estado à propriedade privada dos cidadãos. É diferente de Thomas Hobbes, que é um famoso teórico do absolutismo e, no livro O Leviatã, diz que uma das principais funções do Estado é garantir a segurança dos indivíduos. Sendo que Hobbes acreditava que, em caso de guerra, o Estado poderia tomar a propriedade das pessoas. Já para os liberais, isso não é possível. O Estado visaria garantir os “direitos naturais”, ou seja, só pelo fato de existir você já tem alguns direitos como, por exemplo, o direito à vida. Você tem liberdade, mas não pode ter a liberdade da outra pessoa. Inclusive, se o Estado crescer demais, ele pode se tornar um usurpador e atacar sua propriedade e sua liberdade. Então Locke vai defender o direito à rebelião, à insurgência, teorias que vão permear a Revolução Inglesa e, posteriormente, as revoluções Americana e Francesa. Locke também foi um grande influenciador da Constituição Americana.
ED – Às vezes, a palavra liberalismo adquire significados diferentes e que se contrapõem. Por exemplo, nos Estados Unidos, se fala do liberal como alguém mais à esquerda. Já no Brasil, a palavra liberal está mais associada ao que a gente pode chamar, grosso modo, de direita. Por que existem esses múltiplos significados e quais seriam os mais correntes?
AL – Essa confusão acontece porque não existe apenas um liberalismo. O correto seria a gente falar de “liberalismos”, porque ele tem fases. Locke é considerado um liberal clássico, mas há outros mais recentes, como Milton Friedman, que é considerado um neoliberal. Há características específicas, mas a gente tem que citar quais são alguns dos liberais fundamentais, como o próprio Locke e Adam Smith, de A Riqueza das Nações. O próprio Adam Smith vai defender que as pessoas precisam ser livres para que suas capacidades possam florescer. Esse é um elemento extremamente importante: a defesa da liberdade econômica e também da liberdade política, que têm que estar associadas. Em alguns regimes, a gente pode ver que existe um certo liberalismo econômico, mas você não tem liberalismo político, como aconteceu no caso do Chile pós-golpe, com Augusto Pinochet. Porém, a maioria dos liberais defende a liberdade política e, obviamente, a econômica. Outro liberal famoso é Edmund Burke, que escreveu reflexões sobre a revolução na França. Ele é de outra corrente, um liberal conservador, que vai defender a liberdade econômica, mas, ao mesmo tempo, o respeito à tradição e às religiões, entre outras coisas. Os liberais conservadores não acreditam em revoluções, mas em mudanças incrementais. Burke critica os efeitos da Revolução Francesa, principalmente quando se instalou o Regime do Terror, com Robespierre, que causou muito pânico entre alguns liberais por causa das mortes. Esses defendem as reformas: aquilo que está equivocado, você conserta, e o que é bom, você mantém. Algumas ideias liberais podem até mesmo ser consideradas, hoje em dia, de esquerda. É o caso de Thomas Paine, que defendeu que o Estado tem que garantir uma renda mínima para as pessoas, tirando de quem é mais rico e alocando para quem é mais pobre, para dar condições das pessoas poderem sobreviver. Há uma série de outros elementos que acabam gerando confusões. No Brasil, a gente tem algumas ideias liberais que são consideradas, por exemplo, de centro-esquerda, que poderiam ser enquadradas na social-democracia, como a escandinava. Eles acreditam que o capital e o trabalho podem se aliar, sem problema nenhum. Diferente dos comunistas e do próprio marxismo, para os quais a aliança entre capital e trabalho é impossível devido à exploração do trabalhador. Mas a social-democracia acredita que é possível, sim.
ED – Qual a relação entre liberalismo e democracia?
AL – É importante a gente voltar um pouco no tempo, na história, para poder fazer algumas considerações importantes. Nas décadas de 1910-20, no período da belle époque francesa, nós tínhamos o caráter da democracia liberal: a associação entre liberalismos político e econômico, que estava bastante em voga. Naquela época, existia a percepção, baseada em Adam Smith, da mão invisível do mercado, ou seja, que o mercado tem a capacidade de auto-regulação e pode, assim, resolver seus próprios problemas. Quando houve o crash da bolsa de Nova York, em 1929, os Estados continuaram com esse tipo de percepção, mas até o próprio Milton Friedman fez uma crítica com relação a isso. Naquela época, não foi tomada qualquer tipo de medida na tentativa de controlar os efeitos da crise. Um outro autor (considerado também liberal, porém mais à esquerda) foi John Maynard Keynes, que escreveu um livro extremamente importante: As Conseqüências Econômicas da Paz. Ele vai dizer que essa inação dos governos não funcionaria e terminaria agravando a crise. Qual foi o efeito prático disso? a ascensão dos regimes fascistas, como, por exemplo, o Nazismo. Eles tinham uma percepção diferente da intervenção do Estado na economia. Enquanto os liberais defendiam a total abstenção, os fascistas defendiam o Estado agigantado que sempre foi o temor de qualquer liberal, porque ele poderia suprimir as liberdades individuais. O movimento fascista surgiu na década de 1920, com Mussolini, mas o nazismo ganha ímpeto com a ascensão de Adolf Hitler, em 1933, que vai defender uma grande intervenção na economia, contrariando as teses liberais. Hitler, inclusive, era um grande antiliberal. A Alemanha tinha uma taxa de desemprego elevada em 1935, quando Hitler implantou os planos quadrienais. Essa intervenção do Estado na economia começa a dar resultado: a Alemanha vai de 45% de desemprego ao pleno emprego em 1938. O nazismo se tornou uma ideologia política interessante naquele momento. É tanto que tivemos o fascismo, em Portugal, com Salazar, e outros movimentos como o franquismo, na Espanha, a Cruz de Setas, na Hungria, o Guarda de Ferro, na Romênia, que se expandem de forma bastante significativa.
ED – E depois surge a ideia da social-democracia?
AL – Um estado de bem-estar social, ou seja, em que o Estado tem que garantir alguns elementos extremamente importantes. Isso nasce exatamente com Keynes, mas entra em crise na década de 1980. Daí surge o neoliberalismo que, entre uma série de outras coisas, traz algumas vertentes econômicas e modificam esse papel.
ED – Que quer dizer o termo neoliberalismo? Em que contexto ele vem à tona no debate público?
AL – O neoliberalismo é um rótulo para identificar alguns autores no pós-guerra, após 1945, como Milton Friedman. Algumas das principais ideias do liberalismo estão no livro Capitalismo e Liberdade, de Friedman. É uma ressignificação das idéias liberais clássicas, mas com algumas mudanças importantes: os neoliberais, vão criticar a relação do Estado com a população e com a economia. Para Friedman, o Estado deve intervir o mínimo possível na economia. Ele tem até uma famosa frase: “O Estado só deve atuar onde a sociedade não consegue atuar”. Por exemplo, no caso das universidades, Friedman acredita que devem ser todas privadas. Ele defende algumas adaptações: por exemplo, as pessoas que não tivessem condições de pagar receberiam uma espécie de incentivo, de forma que elas pudessem quitar a universidade no futuro. É uma ideia de financiamento, a exemplo do Fies [Fundo de Financiamento Estudantil], que é mais ou menos isso. Algumas idéias neoliberais foram implementadas em alguns países, como no Chile, em que o Estado buscou sair o máximo possível da economia e dar plena liberdade aos indivíduos. Os neoliberais – voltando a citar Friedman – defendem algumas concepções muito diferentes, como na aposentadoria. Ele acredita que os indivíduos devem ter total liberdade para fazer o que quiserem com o seu dinheiro e o Estado não deve se meter nisso. No sistema de aposentadoria que o Brasil tem, atualmente, baseado em um regime de solidariedade, os trabalhadores contribuem para um fundo comum, que é gerenciado pelo Estado e que, a partir de determinado tempo de contribuição, passa a remunerar essas pessoas. Os neoliberais acreditam que quem deve gerir esse fundo é o próprio indivíduo que, inclusive, se não quiser, nem teria que contribuir para a previdência. Agora, arcaria com as consequências futuras. Seria algo individual, como um título de capitalização. Isso se aproxima um pouco da proposta do ministro Paulo Guedes, que foi designado para o Governo que começa em 2019.
ED – E como ficou a situação em outros países?
AL – Não podemos esquecer de duas figuras importantes do liberalismo no período pós-guerra. Quando o estado-nação entra em crise, principalmente na década de 1980, temos a eleição de Margaret Tatcher, na Inglaterra. Já na década de 1980, Ronald Reagan, que também defende várias reformas liberais para a economia, assume nos Estados Unidos. Uma pauta neoliberal muito criticada é a de cortar imposto dos mais ricos, para que eles, teoricamente, tenham mais acesso a recursos para investir e fazer a economia girar. Na prática não é bem assim que funciona. Mas essa pauta de desregulamentação, de privatizações (que nasce no final da década de 1970) começa a ser implementada na Inglaterra por Margaret Tatcher e vai influenciar muitos governos. É quando ocorre a queda da União Soviética, porque o sistema não funciona, não leva em consideração a formação de preços ao consumidor – uma característica do socialismo e do comunismo. Então vêm as reformas propostas por Mikhail Gorbatchov, da Perestroika. E, a partir da década de 1990, entra em vigor o consenso de Washington, com várias dessas propostas de privatizações e desregulamentações, de o Estado atuar menos na economia. Essa agenda neoliberal, em grande medida, não vai dar o resultado esperado. Por exemplo, o nível de desigualdade na América Latina cresce de forma bastante significativa. A partir dos anos 2000, a população começa a fazer uma experimentação e a votar maciçamente em governos de esquerda.
ED – É quando a gente tem Hugo Chávez, Evo Morales…
AL – Hugo Chávez na Venezuela, os Kirchner na Argentina, Evo Morales na Bolívia, Lula da Silva no Brasil, entre outros. Existe a ascensão desses governos de esquerda que, na verdade, buscam retomar a capacidade operativa do Estado. Esses governos vão ser implementados a partir dos anos 2000, com algum resultado econômico de sucesso. Também houve o boom das commodities, que favoreceu a implantação desses tipos de políticas públicas. Mas, a partir da crise financeira de 2008, há um momento de inflexão. Os governos também vão passar por uma modificação, e a gente percebe o ressurgimento de uma descrença na democracia liberal, com a ascensão de alguns indivíduos com certo viés autoritário, digamos assim, mas com pautas liberais economicamente falando.
ED – Como o senhor interpreta a força com que as ideias liberais têm ganhado campo no Brasil na atualidade?
AL – A crise financeira de 2008-2009 vai ser um ponto de inflexão na história mundial, não apenas no Brasil. Não necessariamente indivíduos de matriz liberal, que se orientam por ideias liberais, vão ascender. Por exemplo, a gente não poderia classificar um indivíduo como Donald Trump como liberal clássico. Na verdade ele tem algumas pautas antiliberais, nacionalistas, de fechamento da economia, de retorno de capacidade operativa do Estado, como também uma agenda conservadora, entre uma série de outros elementos. Outro exemplo é o presidente eleito, Jair Bolsonaro. Se a gente for analisar a história dele, não é um liberal clássico, muito menos contemporâneo ou neoliberal. Ele é muito mais estatista do que efetivamente liberal. Quando é que ele vai dar uma guinada liberal? Quando se associa ao Paulo Guedes. É um fenômeno mundial o crescimento de lideranças que criticam determinados aspectos de governos de esquerda – que terminaram fracassando nesse período –, assim como também outros elementos mais liberais. Então, por exemplo, a gente tem também a ascensão de Marine Le Pen, na França, e do governo de ultra-direita de Viktor Orbán, na Hungria. É interessante o seguinte: de um lado, há uma pauta conservadora e de outro, uma pauta liberal no estilo econômico, mas não no sentido político. Os liberais clássicos, no cunho político, são contra o Estado se intrometer na vida dos indivíduos. Ou seja, qualquer tipo de regulação em termos de como as pessoas devem se comportar deve ser rechaçada. Não é função do Estado se meter praticamente nessas áreas. Mas o que a gente tá vendo é, na verdade, um outro tipo de movimento: uma pauta mais conservadora associada à ascensão do neopentecostalismo de terceira onda ,que tem também uma pauta dos costumes. Esse recente vaivém de ministros está atrelado a isso. Não é um movimento independente de ideologia. Na verdade ele tem uma ideologia, mas diferente. A gente estava acostumado com a retórica de esquerda, mas não estava acostumado à retórica de direita.