O declínio da mente

Em 25/10/2018 - 14:10
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Tayza Lima

“Ela desaprendeu a fazer as coisas, deixava o botão do gás aberto”, conta o militar aposentado Gilvan Borges da Silva, 72 anos. Assim como aconteceu com a esposa dele, a cada três segundos, alguém é diagnosticado com demência no mundo. A previsão é de que, em 2050, um novo caso seja descoberto a cada segundo, atingindo mais de 150 milhões de pessoas.

Ouça a reportagem da Rádio Alepe sobre o Alzheimer:

Os dados são da Associação Internacional de Alzheimer, entidade que se dedica a estudar o mal que acomete até 80% dos pacientes com demência. No País, segundo estimativas do Instituto Alzheimer Brasil, já são mais de um milhão de pessoas com a doença, que degenera as células nervosas e faz o corpo parar de obedecer.

80%dos pacientes com demência são acometidos pela doença de Alzheimer.

A patologia neurodegenerativa afeta o funcionamento do cérebro de maneira progressiva, comprometendo funções cognitivas como memória, linguagem e raciocínio lógico. Neurologista do Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife, Paulo Brito atende pessoas com Alzheimer há mais de 30 anos. Ele destaca que a doença pode permanecer silenciosa durante décadas. “No momento em que o sintoma mais comum – o esquecimento, que acontece em 71% dos casos – começa a aparecer, a pessoa já estava há dez, 15 ou 20 anos com a doença. E ainda vai levar de um a três anos para receber um diagnóstico”, estima o especialista. “Assim, progressivamente, ela perderá a capacidade de conviver no dia a dia.”

Diagnóstico

Foto da professora Maria Bethânia sendo entrevistada em uma sala, mostrando a mão da repórter em primeiro plano.

ESQUECIMENTO – Maria Bethânia revela que não deu atenção aos lapsos de memória da mãe: “Eu achava que era normal da idade”. Foto: Sabrina Nóbrega

Foi dessa forma com a mãe da professora Maria Bethânia Gomes de Albuquerque, que mora em Candeias, no município de Jaboatão dos Guararapes (Região Metropolitana do Recife). Ela conta que não deu atenção aos lapsos de memória. “Eu achava que o esquecimento era normal da idade”, revela. “Minha mãe hoje está com 76 anos, mas foi diagnosticada aos 73. Quando ela passou a desperdiçar dinheiro, comecei a perceber que tinha algo errado. Mas não imaginava que era Alzheimer.”

A mãe de Maria Bethânia está na fase inicial da doença: ela consegue andar, falar, tomar banho e comer sozinha. Essa etapa, em que os sintomas se manifestam de maneira mais branda, é essencial para a aceitação do Alzheimer pelo paciente. Porém, de acordo com Paulo Brito, o período pode ser perigoso para pessoas com histórico depressivo: “10% cometem suicídio nesse estágio leve, então a gente tem que ter muito cuidado quando faz um diagnóstico”. O médico explica ainda que, na fase moderada, a pessoa depende de alguém para viver. “Sem ajuda, não faz”, resume. Já o Alzheimer severo é aquele que, mesmo com auxílio, a pessoa não realiza mais tarefas como tomar banho, por exemplo.

Gilvan conhece bem os efeitos do Alzheimer na etapa severa. Cuidador da esposa, que também tem 72 anos, ele ressalta que precisou criar artifícios para facilitar o cotidiano. “Fiz um colar com uma plaquinha com o nome e a doença para ela usar no pescoço. No verso, tem o telefone da filha e do filho”, descreve. “Também criei um quadro para anotar as horas em que ela fazia xixi e evacuava, para poder, no outro dia, saber se estava bem hidratada, com prisão de ventre, porque eu não iria lembrar.”

Parkinson

“Foi um tremor na mão esquerda que eu tentei esconder da família, mas eles perceberam.” O relato do aposentado José Bezerra, 69 anos, diz respeito a outra doença neurodegenerativa: o Mal de Parkinson, patologia que afeta o sistema nervoso e leva, progressivamente, à perda das habilidades motoras. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 1% da população com mais de 65 anos é acometida pela doença, que se manifesta em alterações na fala e na escrita, lentidão dos movimentos, rigidez corporal e tremor, sintoma mais característico.

Ouça a reportagem da Rádio Alepe sobre o Mal de Parkinson:

Morador de Olinda (RMR), José Bezerra foi diagnosticado em 2012, após perceber um tremor na mão. Ele conta que tentou esconder o caso da família. “Primeiro, eu queria saber do que se tratava. Mas meus três filhos se adiantaram e combinaram de marcar uma consulta. Recebi o diagnóstico, e eles ficaram mais preocupados que eu”, recorda.

Ao contrário do que muita gente acredita, a intensidade dos tremores não é proporcional à gravidade da doença, como observa o médico Paulo Brito. “Quem treme muito, geralmente, não tem problema mental – vai permanecer com memória, tudo normal. O outro tipo, em que a pessoa treme pouco e fica endurecida, apresenta uma tendência a sintomas cognitivos: há 50% de chances de depressão, além de outras doenças psicóticas”, afirma o neurologista.

Apesar de ter os idosos como faixa etária vulnerável, o Parkinson não é exclusivo da terceira idade. Os primeiros sinais podem aparecer antes dos 40 anos, como alterações em outros órgãos que o paciente não associa à doença. De acordo com Brito, essas manifestações podem surgir de quatro a seis anos antes dos sintomas motores. “Não sentir o cheiro das coisas, passar a ter prisão de ventre, precisando usar medicação para poder defecar, ter alterações no coração… No exame, detecta-se que a doença já atingiu o nervo que vai para o coração. E quando começam os tremores, não é de vez”, complementa.

Foto do militar aposentado Gilvan Borges da Silva, sentado em uma cadeira.

DEDICAÇÃO – Cuidador da esposa, Gilvan criou meios de atendê-la melhor. “Zelo também é amor”, acredita. Foto: Sabrina Nóbrega

A evolução da doença de Parkinson foi silenciosa para o recifense Carlos Antônio Medeiros, 72 anos. Sargento aposentado, ele recebeu o diagnóstico há sete anos, após ser socorrido durante o expediente na Guarda Patrimonial do Estado. O maior lamento do militar é ter perdido a autonomia. “Estou andando muito lento, então minhas filhas e minha mulher não me deixam sair sozinho”, diz.

Tratamento

O Mal de Alzheimer ainda não tem causa nem cura. Por isso, é importante identificar os sintomas assim que eles aparecem e procurar ajuda. A descoberta precoce possibilita um tratamento dedicado a atrasar a evolução da doença. A medicação auxilia na produção de acetilcolina, substância responsável pela memória, atenção e comportamento do paciente.

Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde declarou que os medicamentos podem ser retirados gratuitamente na Farmácia do Estado, mediante cadastro, e que dispõe de acompanhamento médico. No entanto, para o neurologista Paulo Brito, o atendimento na rede pública ainda enfrenta desafios. “Com uma quantidade enorme de pessoas para atender, não se pode ter qualidade. Também existe despreparo, de uma forma geral. Reconheço que é um assunto difícil e complexo”, avalia.

De acordo com o Instituto Alzheimer Brasil, não há dados consolidados sobre pacientes no País. A estigmatização e o desconhecimento contribuem para a subnotificação dos casos. Em Pernambuco, um grupo da Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz-PE) atua para levar mais informação e apoio aos cuidadores e parentes de pessoas com a enfermidade. “O foco maior da nossa associação é voltado para as famílias e os cuidadores”, comenta a presidente da entidade no Estado, Cleonice Albuquerque. “Qualquer pessoa pode participar. Ela aprende o que é a doença e como pode cuidar dessas pessoas.”

Foto da presidente da Abraz-PE, Cleonice Albuquerque, sentada numa cadeira.

APOIO – Foco da Abraz-PE é voltado para famílias e cuidadores, conta a presidente Cleonice Albuquerque. Foto: Sabrina Nóbrega

Em 2017, a OMS adotou um Plano Global de Demência, com metas a serem alcançadas até 2025. Entre as áreas de abordagem está o suporte para os cuidadores, que muitas vezes precisam se dedicar de maneira integral ao enfermo. Um trabalho que, para o aposentado Gilvan Borges, deve ser feito com todo o carinho: “O cuidador, independente de ser parente ou não, tem que dar o máximo de si, porque zelo também é amor”.

Saúde pública

O Ministério da Saúde estima que, no Brasil, mais de 200 mil pessoas convivem com o Parkinson. Ainda sem cura conhecida, a enfermidade possui um protocolo para atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 2002 e atualizado em 2017, que estabelece um tratamento multidisciplinar para a doença.

O neurologista Paulo Brito reforça a importância da medicação. “Sem o remédio, os pacientes ficam paralisados. É cruel. Com um comprimido, em 40 minutos, a pessoa se levanta como se estivesse normal. Ela depende daquele medicamento para viver, daí o Governo ter cuidado para não faltar, a fim de evitar um desastre”, pontua.

200 milbrasileiros convivem com o Mal de Parkinson, segundo o Ministério da Saúde.

Em Pernambuco, a rede pública está habilitada para atender pessoas com Parkinson, afirma a Secretaria Estadual de Saúde. O órgão também informou que a Farmácia do Estado fornece mais de dez tipos de remédios.

Além dos medicamentos, quem tem Parkinson também precisa realizar outros procedimentos para impedir a evolução da doença, como fisioterapia e acompanhamento com fonoaudiólogo. O aposentado José Bezerra acredita que o acompanhamento psicológico também é importante para aprender a lidar com o problema. “Às vezes, esse aspecto contribui muito para incrementar os sintomas”, avalia. “Conversar ajuda, é muito importante falar para a pessoa ter condições de lidar com o fato. A doença em si não é terrível; terrível é a gente não estar preparado.”

No Recife, a Associação de Parkinson de Pernambuco (ASP) disponibiliza terapias variadas para os portadores da doença. Por uma taxa mensal de R$ 50, os associados contam com o apoio do espaço, que não tem fins lucrativos. A presidente da ASP, Maria José Melo Santos, conheceu a entidade depois que o marido teve Parkinson. Para ela, o tratamento oferecido vai além da medicina. “É  a convivência, os trabalhos fora, passeios, bloco de Carnaval chamado Treme-Treme… Essa integração é muito importante pra eles, porque, quanto mais tempo ficarem parados, é pior”, crê.

Carlos, o policial aposentado, é associado. Mesmo sem poder andar sozinho, ele afirma que conta com o apoio da família para não faltar às consultas e aos atendimentos da ASP. “Eu não desisto. Se eu desistir, eu acho que morro.”

 

*Fotos em destaque: Pixabay/CC0 (home e topo da página) e Sabrina Nóbrega (Notícias Especiais)