A trabalhadora doméstica Luzia Nascimento, de 51 anos, mantém há décadas o hábito de jogar medicamentos vencidos no vaso sanitário e no lixo comum de casa. Ela sempre se preocupou em evitar que crianças tivessem contato com os produtos por acidente, situação que ela mesma viveu na infância. Aos nove anos, Luzia encontrou comprimidos coloridos no chão e pensou que eram doces. “Me chamou a atenção porque eram uns comprimidos vermelhos parecendo chocolate, aí eu coloquei na boca, era docinho, aí eu fui comendo, comendo, e depois eu me senti mal, muito mal… Senti uma dor muito forte no estômago. E fiquei passando mal, minha vizinha perguntou o que era, eu disse que tinha comido uns comprimidos, mostrei a ela dizendo que era chocolate, e ela falou ‘não, isso é comprimido, isso é remédio’.”
Luzia, assim como muitos brasileiros, nunca foi orientada a fazer a chamada “logística reversa”, prática que consiste em devolver os produtos vencidos às farmácias. Essa conduta é fundamentada em pesquisas científicas que relacionam o descarte inadequado dos fármacos a danos ambientais como intoxicação humana e animal, contaminação do solo e dos lençóis freáticos, e a poluição de rios e mares. Na década de 1990, o estudo pioneiro do biólogo britânico John Stumper alertou que peixes machos num afluente do rio Tâmisa tinham adquirido características femininas. A resposta para essa mutação veio das águas fluviais misturadas à urina do esgoto, onde Stumper identificou traços de hormônios encontrados em anticoncepcionais.
Uma pesquisa mais recente, realizada em 2013 na Suécia, concluiu que peixes colocados em tanques contendo uma baixa concentração do ansiolítico oxazepam – na mesma dosagem encontrada nos rios – tornaram-se mais agressivos e comilões, uma ameaça para a reprodução e sobrevivência da espécie. Na atualidade, certezas científicas convivem com o perigo de uma população desinformada. O diretor de Controle de Fontes Poluidoras da CPRH, Hellder Nogueira, admite que o descarte doméstico de medicamentos vencidos é o ponto cego da fiscalização ambiental. “A maior dificuldade que eu acho que é um passo que ainda está ao estudo, nem em estudo, ainda está em fase de discussão, é como fazer um… Como é que conseguimos chegar nas residências para verificar como a população, com aqueles medicamentos, ela não descarte diretamente em qualquer situação e daí fossem enviados para os locais corretos, e não fossem colocados no resíduo comum que, infelizmente, é o que acontece hoje em dia.”
Prestes a completar um ano, a regulamentação da Política Nacional de Resíduos Sólidos prevê acordos setoriais para concretizar a logística reversa das cadeias produtivas. Mas o pacto relativo ao segmento farmacêutico ainda não foi assinado. A diretora do Conselho Regional de Farmácia de Pernambuco, Joyce Nunes, sugere critérios para esse acordo. “Eu defendo que toda farmácia, ela deveria ter um ponto de coleta para descarte de medicamento, e que o Estado teria a responsabilidade pelo custo pela coleta e destinação correta dos resíduos químicos. Até porque a responsabilidade do meio ambiente é do estado, e as empresas já pagam suas taxas para liberação das suas licenças ambientais.”
Indústrias e redes de farmácias fazem a sua parte ao criar projetos de recolhimento dos produtos vencidos. Um exemplo é o Programa Descarte Consciente. Com 970 pontos de coleta espalhados em 13 estados brasileiros, é o maior do gênero no país. A coordenadora da iniciativa, Luciana Siqueiros, pede o engajamento da iniciativa privada. “O Programa Descarte Consciente ele é uma parceria da BHS com o setor de varejo farmacêutico, de algumas redes, aí a gente tem um ponto coletor, que é uma farmácia, uma drogaria Carrefour que faz essa coleta, e a ideia é que a gente possa continuar expandindo, mas isso também depende de toda parceria, então, do próprio interesse do setor de varejo, das farmácias e drogarias, de estar aceitando ter um coletor na sua farmácia para receber esse tipo de medicamento.”
Que tal começar ainda hoje uma relação mais saudável com os medicamentos? Basta separar comprimidos, líquidos, sprays e pomadas fora do prazo de validade e levar à farmácia ou à unidade de saúde mais próxima da sua casa onde funcionam pontos de coleta.