
EXPECTATIVA – Milhares de brasileiros acompanhavam as votações da Assembleia Nacional Constituinte no gramado do Congresso Nacional. Foto: Arquivo/Agência Brasil
Edson Alves Jr.
O período compreendido entre os dias 1º de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988 foi intenso para os 512 deputados e 82 senadores que compunham o Congresso Nacional. Foi nesse intervalo que os representantes eleitos pelo povo cumpriram a promessa de elaborar uma nova Constituição Federal para um Brasil em plena redemocratização.
“A saúde é direito de todos e dever do Estado”
Constituição Federal de 1988, Art. 196
Um cidadão cuja vida é salva graças ao atendimento prestado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) pode até não saber, mas a origem do formato atual da saúde pública brasileira – com acesso integral, universal e gratuito – surgiu na chamada “Constituição Cidadã”. Antes dela, o sistema público de saúde prestava assistência apenas aos trabalhadores vinculados à Previdência Social, relegando os demais cidadãos às entidades filantrópicas.
“Essa conquista veio de um movimento de médicos públicos que havia à época”, lembra Maria Lúcia Barbosa, professora de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). “Conseguimos criar diretrizes para a responsabilização do Estado pelos direitos sociais, pois não adianta termos liberdade sem o mínimo de dignidade”, considera.
Também as operações contra a corrupção foram viabilizadas pelo aumento dos poderes do Ministério Público, definido como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. A Carta Magna de 1988 ainda garante a independência funcional do órgão.
“Meu primeiro mandato de deputado federal foi na Constituinte. Era um ambiente muito conflituoso e efervescente”, recorda Joaquim Francisco, ex-governador de Pernambuco e parlamentar, na época, pelo então Partido da Frente Liberal (PFL). “Havia diversos grupos de interesse e manifestações permanentes de servidores públicos, movimentos sociais e indígenas. Entidades empresariais, como as empresas de comunicação, também estabeleciam muita pressão pelos seus interesses”, relata. “Os movimentos sociais faziam um painel dos constituintes, dizendo quem era, na visão deles, a favor do povo ou contra ele, e espalhava essa mensagem em outdoors.”
A participação da sociedade civil organizada também se fez notar na proposição de emendas populares (confira o vídeo abaixo). Para acelerar a reforma agrária, a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) realizou debates e recolheu assinaturas, conta José Francisco da Silva, que presidiu a entidade entre 1968 e 1986. “Fizemos uma mobilização que juntou sindicatos e federações de trabalhadores de todo o Brasil e conseguimos em torno de um milhão de apoiadores”, afirma.
No entanto, a proposta — que determinava “posse imediata dos assentados, com questionamentos sobre a avaliação do preço da terra posteriormente, na Justiça”, conforme o ex-diretor da Contag, Zé Francisco – foi rejeitada pelos constituintes. Apesar da derrota, ele analisa positivamente o legado daquela Assembleia. “Mesmo com a conciliação que houve no final sobre o texto da reforma agrária, conseguimos muitos direitos. No fim, o saldo foi positivo”, ressalta o militante, que também foi prefeito da cidade de Orobó (Agreste Setentrional) entre 1997 e 2004.
Joaquim Francisco concorda. “Apesar dos conflitos, se fizermos uma análise sociológica do processo, podemos ver que prevaleceu a capacidade do nosso sistema político de fazer acordos”, considera. “Mesmo com toda a reviravolta em que setores mais conservadores – reunidos no que ficou conhecido como ‘centrão’– tiveram mais poder na Constituinte, não podemos dizer que os direitos políticos e sociais não foram preservados”, considera o ex-deputado, que preside o Instituto Teotônio Vilela em Pernambuco (ITV-PE), órgão de formação política do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).
Veja mais: O Congresso Nacional disponibilizou um site especial que aborda os 30 anos da Constituição
Legado
Finalizada há três décadas, a experiência da Assembleia Nacional Constituinte ainda repercute. “A saída do período autoritário fez o texto constitucional ter preocupação em garantir direitos sociais para assegurar necessidades básicas. Porém, o deixou permeado de monopólios estatais”, avalia Fernanda Braga Maranhão (confira a entrevista abaixo), integrante da Comissão Federal da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
“Foi uma constituição em que aparece 76 vezes a palavra ‘direito’, mas apenas quatro vezes a palavra dever, como dizia o economista Roberto Campos”, complementa a advogada, que também é procuradora do Estado de Pernambuco. “Excessos de detalhes e intervencionismos foram sendo corrigidos nas diversas emendas dos últimos 30 anos”, comenta. Aprimoramentos, contudo, carecem de consensos políticos que, na avaliação de Fernanda, ainda precisariam ser firmados com a sociedade: “Queremos um governo como foi pensado em 88 ou algo diferente?”, questiona.
A professora Maria Lúcia Barbosa percebe a questão de modo diverso. Para ela, “o aspecto social da Carta Magna tem sido corroído por mudanças como a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que estabelece um teto de gastos e a reforma trabalhista”. “Não acho que o tamanho ou o nível de detalhamento dela sejam problemáticos. No caso dos Estados Unidos, a Constituição é bem mais curta, mas a jurisprudência feita a partir dela é muito complexa e detalhada”, analisa.
“O que importa no texto constitucional é o que escolhemos como prioridade. No caso das comunidades indígenas, por exemplo, deveríamos ter amarrado melhor, o que evitaria a recente condenação que o Brasil sofreu na Corte Interamericana de Direitos Humanos com relação a esse assunto”, acrescenta Maria Lúcia.

PARTICIPAÇÃO – Povos indígenas ocuparam galerias do Congresso Nacional para exigir demarcação de terras. Foto: Arquivo/Senado Federal
Uma nova Constituição?
Depois de 30 anos e 105 emendas, porém, ainda restam sugestões de alterações. Para Maria Lúcia Barbosa, um caminho de reforma constitucional seria aumentar as possibilidades de participação direta da população por meio de plebiscitos e referendos. “Há uma acusação equivocada de que isso possa levar ao autoritarismo, citando o exemplo da Venezuela. Mas as mudanças antidemocráticas só ocorreram lá porque foram chanceladas por um sistema judiciário que descumpriu seu papel, e não pela participação do povo”, opina a professora, que realizou pesquisa de doutorado sobre as constituições promulgadas na Venezuela, no Equador e na Bolívia entre 1999 e 2000.
emendas à Constituição Federal foram promulgadas nos últimos 30 anos.
Por outro lado, Fernanda Braga Maranhão vê com mais cautela o uso de mecanismos plebiscitários. “Esses instrumentos são baseados em voto de maioria, enquanto a representação proporcional tem como objetivo assegurar a representação das minorias. Não é todo e qualquer tema que deve ser decidido sem levar em conta a situação dos segmentos minoritários”, argumenta a advogada.
Joaquim Francisco indica que o papel do Supremo Tribunal Federal deveria ser repensado. Ele ainda defende o fim das medidas provisórias. “Mas isso só seria possível com a redução do número de partidos”, observa o constituinte, propondo uma cláusula de barreira que limite a atuação parlamentar a legendas que alcancem uma porcentagem mínima de votos totais.
Contudo, a questão principal a ser repensada em qualquer reforma, afirma o ex-governador, é o da representatividade política dos cidadãos. “Se o povo não se acha representado pelas pessoas que ele mesmo elegeu, temos uma contradição insanável dentro da democracia brasileira”, conclui.
Veja mais: A história do processo constitucional de 1988 contada pelo Jornal da Constituinte, editado à época pelo Congresso Nacional
*Fotos em destaque (home e Notícias Especiais): Agência Brasil/Arquivo