Barreiras do silêncio

Em 26/09/2018 - 10:09
-A A+

Ivanna de Castro

Foto da criança Camilly Lins, que é surda, tocando violino.

MÉTODO – Sem ouvir notas musicais, Camilly Lins percebe som do violino pela vibração do instrumento no ombro dela. Foto: Alepe

Sem conseguir ouvir as notas musicais, é pela vibração do violino sobre os ombros que Camilly Lins, 12 anos, percebe o som emitido pelo instrumento que estuda há pouco mais de nove meses. Aluna do Instituto Sons do Silêncio, no Recife, a menina tem surdez bilateral profunda em decorrência de uma meningite que a acometeu ainda quando bebê. A deficiência, no entanto, não limita os planos futuros da jovem, que quer dividir o tempo entre a profissão de veterinária e a música.

“Meu sonho é que Camilly seja o que ela quiser. A deficiência dela não tem relação com a capacidade cognitiva e não interfere em outras habilidades e funções. Se ela tiver direcionamento e apoio da sociedade, assim como tem da família, realizará tudo o que quiser”, acredita a mãe da estudante, a advogada Maria Carolina Lins. Ela já observa avanços no desenvolvimento da filha: “As aulas de música ajudam na socialização, melhoram a concentração e mostram a Camilly do que ela é capaz”.

Fundador da instituição onde Camilly tem aulas gratuitas de música, o pedagogo Carlos Alberto Alves desenvolveu o método “casa inclusiva”, que consiste em quatro passos para ensinar música a alunos surdos. Primeiro, mostra-se, visualmente, a posição dos dedos no instrumento para emitir a nota. Depois, o aluno sente a vibração do equipamento com as mãos. Em seguida, apresenta-se o sinal da nota na partitura (veja no vídeo) para, finalmente, o aluno experimentar o instrumento.

“Vejo que muitos chegam sem perspectivas de futuro, como fazer uma faculdade ou construir uma família. A música permite que eles voltem a ter planos”, conta Carlos, que deseja formar a primeira banda filarmônica brasileira composta integralmente por surdos. “Percebi, nesse processo, que muitos alunos conseguiam ler a partitura mas não sabiam ler o Português. Então decidi oferecer a eles, também, aulas de Libras [Língua Brasileira de Sinais] e de reforço escolar”, complementa o pedagogo, que faz o trabalho de forma voluntária.

Educação acessível

Coordenador do programa Ciranda Auditiva, da Universidade de Pernambuco (UPE), o professor Luiz Albérico Falcão defende que, assim como faz Carlos Alberto no Instituto Sons do Silêncio, a educação do surdo utilize métodos diferenciados. Isso porque, entende ele, a mera presença da criança na escola e o uso de intérpretes de Libras nas salas de aula – ambos direitos e avanços garantidos pela legislação – não garantem, sozinhos, a inclusão.

“Se o professor não souber lidar com as particularidades do surdo, não vai preparar um material adequado para esse aluno”, observa Falcão. Sem planejamento pedagógico conjunto, será oferecida apenas uma tradução literal dos conteúdos, o que é ineficaz, assegura o autor de livros na área de educação de surdos. “É necessário ofertar ao estudante um suporte metodológico e imagético, porque muito do que ele aprende na escola é abstrato, como o funcionamento das moléculas, por exemplo”, explica o especialista.

Foto da professora Maria Geane Lima se comunicando em Libras.

ENSINO – Escola Estadual Governador Barbosa Lima, no Recife, oferece metodologia diferenciada para atender os 158 alunos surdos, explica a professora Maria Geane Lima. Foto: Roberto Soares

A Escola Estadual Governador Barbosa Lima, no Recife, oferece uma metodologia diferenciada para atender os 158 alunos surdos. Além dos intérpretes nas salas de aula, uma equipe de professores, pedagogos e psicólogos – todos com conhecimento da língua de sinais – usam recursos multimídias, no contraturno escolar, para dar suporte aos alunos. “Na última semana, por exemplo, os estudantes nos pediram auxílio para fazer um trabalho sobre a Revolução Industrial. Nós estudamos o tema junto com eles, por meio de textos, pesquisas na internet, maquetes e imagens”, relata a professora Maria Geane Lima.

Obstáculos

No entanto, profissionais capacitados e metodologia adaptada às necessidades dos estudantes surdos não são a regra. Camilly, por exemplo, ficou um ano fora das salas de aula enquanto a mãe buscava uma escola que ofertasse mais que a presença do intérprete. “Eles precisam, também, de um suporte pedagógico diferenciado. Muitas escolas que procurei me afirmaram não ter condições ou intenção de oferecer”, contou Maria Carolina.

“Em muitos casos, a experiência educacional do surdo é solitária, pois ele se relaciona apenas com o intérprete.”

Sueli Fernandes,  professora do curso Letras Libras da UFPR

“Infelizmente, em muitos casos, a experiência educacional do surdo é solitária, pois ele se relaciona apenas com o intérprete”, verifica a doutora em linguística e professora do curso Letras Libras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Sueli Fernandes. Ela pesquisa o processo de letramento do surdo na Língua Portuguesa, o que ocorre sem o suporte da oralidade.

“O Português é a segunda língua do surdo. Ele aprende gravando visualmente cada palavra, a qual carrega muitos sentidos. Além disso, são múltiplas as relações gramaticais, regras de concordância, elementos de coesão, etc. É impossível memorizar visualmente tantos elementos”, informou a linguista, reforçando a necessidade de diferenciar o processo de ensino e, também, de avaliação desses alunos.

Fernandes orienta o melhor caminho para a educação dos surdos. “Muitas crianças não sabem Libras, especialmente quando são filhas de pais oralizados. É importante garantir a elas o aprendizado nos anos iniciais, pois a língua de sinais será a mediadora no aprendizado do Português”, explica. “Depois, o aluno deve ir para a experiência inclusiva coletiva das escolas bilíngues, nas quais os professores dominem Libras e os estudantes ouvintes tenham acesso a esse conhecimento”, acrescenta.

Foto do professor Carlos Alberto com sete alunos do Instituto Sons do Silêncio. Todos sorriem e seguram seus instrumentos musicais.

DEDICAÇÃO – No Instituto Sons do Silêncio, o pedagogo Carlos Alberto Alves utiliza o método “casa inclusiva” para ensinar música a alunos surdos. Foto: Alepe

 

Mercado de trabalho

Os relatos de Mariana Hora, servidora do Tribunal de Justiça de Pernambuco, revelam que as barreiras para inclusão dos surdos se estendem ao ambiente de trabalho. “Minha participação em reuniões da equipe é limitada porque preciso fazer leitura labial e nem sempre consigo acompanhar. Também já deixei de assistir a palestras e cursos importantes para a minha formação porque não havia intérprete”, lamentou a assistente social, que perdeu a audição após ser alfabetizada. Além dos obstáculos de comunicação, Mariana revela enfrentar dificuldades atitudinais no cotidiano profissional, ou seja, relacionadas ao comportamento das pessoas. “Em geral, me tratam bem, mas há um mascaramento do preconceito e da reprodução do modelo médico da deficiência ao não promover a adaptação do ambiente às minhas condições enquanto surda. Querem que eu me adapte ou aceite as barreiras da instituição”, afirma.

9,7 mi
de pessoas são surdas no Brasil, segundo último censo do IBGE.

Já a dona de casa Hanna Gabriela Gouveia teme que a filha de 9 anos, Sophia Cavalcanti, não consiga se realizar profissionalmente. “Fico apreensiva com a perspectiva de futuro dela. Observo que muitas empresas contratam surdos para cumprir a lei que reserva vagas de empregos aos deficientes. No entanto, a maioria dos postos oferecidos a eles é para realizar serviços mecânicos, mesmo quando o profissional tem uma maior formação”, lamenta. Ela se refere à Lei Federal nº 8213/1991, que obriga a iniciativa privada a incluir pessoas com deficiência nos quadros profissionais.

Hanna Gabriela e Mariana consideram essa e outras normas, como a Lei Brasileira de Inclusão, avanços para surdos e pessoas com deficiência auditiva no Brasil, que somam, segundo o censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 9,7 milhões de pessoas. Elas defendem, no entanto, uma fiscalização mais eficiente do Poder Público no cumprimento das regras. “São necessários, também, investimentos em políticas sociais articuladas, garantindo uma rede que ofereça serviços com acessibilidade”, pontua Mariana.

Difusão da Libras

O coordenador do programa Ciranda Auditiva defende a popularização da Libras como uma das principais políticas de inclusão dos surdos. Entre as ações da iniciativa desenvolvida na UPE está, justamente, a oferta gratuita de cursos que ensinam a língua de sinais. “O primeiro passo para tirar a criança surda do isolamento é garantir que elas e suas respectivas famílias aprendam a Libras”, entende Luiz Albérico Falcão. “Depois, precisamos trabalhar para que haja pessoas capacitadas em Libras em todos os espaços, como escolas, hospitais, mercados e outros serviços.”

A Libras é reconhecida como língua oficial do Brasil desde a publicação da Lei Federal n° 10.436, em 2002. No entanto, o desconhecimento por grande parte da população e o uso restrito dela fora da comunidade surda são barreiras enfrentadas cotidianamente por quem não ouve. “Já aconteceu muitas vezes de estar em algum lugar aguardando atendimento e, apesar de avisar que sou surda, perder minha vez porque o funcionário ficou me chamando oralmente. Isso acontece muito em clínicas médicas ou laboratórios”, relata Mariana Hora.

Uma legislação que estabeleça a presença de pessoas capacitadas em Libras nos diferentes espaços públicos e a sensibilização da sociedade para aderir a um esforço conjunto de inclusão são caminhos apontados. Atualmente, o Decreto nº 5626/2005 obriga que os órgãos da administração pública federal disponham de, pelo menos, 5% de funcionários capacitados para o uso e interpretação da Libras. Ainda não há, em Pernambuco, norma que traga este dever para os órgãos da administração estadual.

Segundo o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência, a pauta mais urgente que vem sendo defendida pela entidade é justamente esta: “garantir as informações para as pessoas surdas por meio de intérprete de Libras, onde quer que elas cheguem”, afirmou a secretária executiva, Martha Guaraná. Ela pontuou, ainda, o reforço na contratação destes profissionais para as escolas estaduais.

Foto de crianças assistindo aula com intérprete de Libras na Escola Estadual Governador Barbosa Lima.

PAUTA – Para Conselho da Pessoa com Deficiência, é urgente “garantir as informações para as pessoas surdas por meio de intérprete de Libras, onde quer que elas cheguem”. Foto: Roberto Soares

Já a sensibilização da sociedade passa, de acordo com a professora Sueli Fernandes, pelo estabelecimento de uma “política linguística” pelo Estado, que promova a democratização da língua de sinais nas mais diferentes áreas, como educação, lazer e infraestrutura. “Hoje, isso existe de forma pontual, sem um planejamento articulado. Se isso passar a ser uma política de Estado, será necessário intervir em várias instâncias para efetivar a Libras como uma língua da nossa cultura e, assim, assumir ações de letramento da população”, concluiu a especialista.

 

*Fotos em destaque: Alepe (home) e Roberto Soares (especial)

 

Veja também: A luta pela inclusão (Tribuna Parlamentar de novembro/2017)