André Zahar
Na parede da casa de Índia Morena, no bairro da Muribeca, em Jaboatão dos Guararapes (Região Metropolitana do Recife), as fotos do esplendor como artista de circo dividem espaço com rachaduras e infiltrações. Do alto de seus 75 anos – 65 dos quais dedicados à arte –, ela sentencia: o circo está acabando não por falta de público, mas devido à burocracia. Se, como diz Mario Fernando Bolognesi no livro Palhaços, a figura cômica circense tem como essência a inaptidão ao contexto social, talvez essa contradição nunca tenha sido maior, pelo menos no caso dos grupos tradicionais.
Contorcionista, trapezista voadora, acrobata, cantora, ginasta, atriz circense, Índia Morena é Patrimônio Vivo do Estado desde 2006. Ao se referir ao Gran Londres Circo, que comandava desde 1977 e chegou a ter 40 artistas, não se conforma por ter sido obrigada a “jogar o circo no quintal de casa” há três anos.
“Guardei o material num armazém que virou uma favela e não posso entrar lá para tirar. O som e o jogo de luz estão num quarto da minha casa. Lutei muito para fazer um circo de bairro, derramei muitas lágrimas, consegui fazer um circo bonito, mas hoje não tem terrenos e precisa ter laudo de engenheiro, licença de meio ambiente, limpeza urbana, Corpo de Bombeiros… O imposto é de mais de R$ 1 mil e tem que ser pago para onde eu for, mesmo que seja de 15 em 15 dias”, diz.
Fundadora, junto com o marido Maviael Ribeiro de Barros, da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco (Apacepe), ela afirma que apenas os circos grandes estão sobrevivendo e, mesmo assim, com dificuldade. “Nunca houve uma política cultural. O circo não é visto de dentro para fora”, acentua.
Os mesmos problemas são percebidos pelo presidente da Associação Brasileira de Circo (Abracirco), José Wilson Leite, em nível nacional. “Em São Paulo, para cada mudança, mesmo que a estrutura fique montada por 30 dias, temos que apresentar 39 documentos diferentes. É um absurdo. Isso inviabiliza o trabalho”, avalia o diretor do circo Spadoni e dono da Picadeiro Circo Escola.
Leite afirma ainda que, apesar da boa qualidade dos espetáculos atuais, as iniciativas públicas em prol dessa linguagem artística são pontuais e ainda há prefeitos que se recusam a receber os circos. Além disso, segundo ele, os apoios por meio de leis de incentivo acabam atendendo mais às grandes companhias internacionais. E faltam projetos nas escolas para formação de público. “Precisamos criar uma nova geração que vai ao circo. Os pais de hoje não têm interesse em levar as crianças, então elas vão crescer sem conhecer o espetáculo. O povo diz que o circo está acabando, mas precisamos ter uma base que junte a cultura com a educação”, propõe.
Resistência no picadeiro

CONJUNTURA – Para Gilberto Trindade, que encarna o palhaço Cascatinha, a burocracia se soma às dificuldades de transporte e à violência, que afasta o público. Foto: Breno Laprovítera
Diretor do Circo Trindade, com sede no bairro de Aldeia, Camaragibe (Grande Recife), Gilberto Trindade observa que a atual conjuntura política é desfavorável às artes no geral, “mas outras classes são articuladas, estão presentes nas capitais e conseguem ter uma força intelectual e de opinião que o circo, o primo pobre das artes cênicas, não consegue”. Aos problemas burocráticos, ele agrega outros, como os custos de deslocamento, com a alta dos combustíveis, e a violência, que afasta o público.
O pesquisador sobre a transmissão de saberes nas famílias circenses em Pernambuco destaca, porém, as transformações recentes pelas quais o circo passou, como a criação das escolas no século 20 por artistas tradicionais que temiam que a arte se perdesse. “Desde que o mundo é mundo, diz-se que os circos estão acabando. A gente percebe o contrário. As famílias estão aumentando, formando novas trupes”, ressalta Trindade, que respondeu pela Gerência de Circo da Prefeitura do Recife de 2005 a 2011.
De acordo com a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), existem atualmente, no Estado, pelo menos 13 circos instalados. Além disso, há sete escolas e projetos sociais com esse foco em funcionamento e outras 13 trupes. O Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) destina, todos os anos, cerca de R$ 1,3 milhão para espetáculos, pesquisa, capacitação e apoio à itinerância de circos. Já o Prêmio Palhaço Cascudo de incentivo às artes circenses, no valor de R$ 150 mil, foi instituído por um decreto e deve ser lançado em 2019.
Sobre a indisponibilidade de terrenos, o órgão diz que a atribuição é das prefeituras e “compete aos Estados a sensibilização por meio do diálogo com os dirigentes municipais”. “Está em curso a elaboração da campanha ‘Pernambuco Recebe o Circo de Braços Abertos’. A iniciativa contempla confecção de uma cartilha, a ser distribuída entre os circenses, e articulação com os dirigentes municipais”, avisa a Fundarpe, em nota.
No plano federal, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) deixou de realizar, em 2014 e 2015 respectivamente, os prêmios Artes Cênicas na Rua e Palhaço Carequinha. Entretanto, lançou em abril deste ano o Prêmio Funarte para Circulação de Espetáculos Circenses.
“Em muitas ocasiões, nem cobramos impostos. Eles chegam com tanta dificuldade que pedem até o dinheiro do combustível para voltar.”
Tânia Maria, prefeita de Brejinho
Desde 2001, quando a Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou a Lei nº 12.120, de autoria do deputado Sérgio Leite (PSC), Pernambuco celebra, em 27 de março, o Dia Estadual do Circo e do Artista Circense. Em 2016, quando foi instituído o Conselho Estadual de Política Cultural, um assento foi destinado para a linguagem circense. Atualmente o posto é ocupado pelo gestor público e pesquisador Williams Sant’Anna, que é encenador e há 20 anos encarna o palhaço Chicó.
Na avaliação dele, a presença da família de circo (que não inclui apenas parentes consanguíneos) se mantém, embora venha se fragilizando. “Hoje em dia, a gente não vê um circo de médio porte. Somente os pequenos, os minúsculos e os grandes, porque é muito difícil manter um circo no País. Há poucas cidades com uma legislação específica e uma imensa burocracia. Ficamos na dependência da sensibilidade e do gosto de cada gestor. Ainda funciona um pouco na clandestinidade”, observa.
Circo na cidade
Do outro lado do balcão, prefeitos também relatam as próprias dificuldades, principalmente por falta de áreas públicas. “Nós não temos problema em receber. Mas o dono do circo precisa ir com antecedência conversar com os comerciantes”, destaca Ivanildo Bezerra, gestor de Taquaritinga do Norte (Agreste). “Em Floresta (Sertão), os circos se instalam em área particular, e a prefeitura concede o alvará”, explica o prefeito Ricardo Ferraz, que reconhece a falta de legislação específica.
Em Amaraji (Mata Sul), os circos se instalam nos terrenos das vaquejadas, conforme explica Rildo Gouveia. “A gente quer o circo lá como mais um entretenimento para a população, mas tem dificuldades porque a maioria deles é desorganizada em termos de segurança e acessibilidade”, avalia o gestor. “A gente sempre dá apoio. Tem espaço na sede do município e no distrito. Mas fazemos exigência com relação aos animais, que precisam de autorização do Ibama, e de segurança para as pessoas”, emenda José Torres, de Iguaracy (Sertão).

REVOLTA – Índia Morena não se conforma por ter sido obrigada a “jogar o Gran Londres Circo no quintal de casa” há três anos. “Guardei o material num armazém que virou uma favela e não posso entrar lá para tirar”, conta. Foto: Sabrina Nóbrega
Prefeita de Brejinho (Sertão), Tânia Maria confirma o velho ditado circense que fala em vender o almoço para comer o jantar. “Em muitas ocasiões, nem cobramos tarifas de impostos, pois eles chegam com tanta dificuldade que pedem até o dinheiro do combustível para voltar. Às vezes, a gente compra ingressos para as crianças para ajudar”, conta.
Vavá Rufino, prefeito de Moreno (RMR), pondera que a atividade circense tem se degradado. Ele identifica dificuldades com relação à infraestrutura, requisitos de segurança e vigilância sanitária. “A gente sempre procura ver uma maneira para se apresentarem, mas não é uma coisa simples. Quando não acontece nenhum problema, está tudo bem, mas se acontecer, a responsabilidade terá que ser apurada. A gente não pode simplesmente fechar os olhos às coisas exigíveis”, observa.
Nesse cenário, entre lembranças e saudades, Índia Morena confessa sua dor e encontra consolo por meio da poesia: “No circo é como na vida: palhaços, bailarinas, equilibristas e mágicos riem, vivem e amam. Às vezes, choram e se desesperam. Eternos personagens. Mesmo nos dias mais cinzentos, quando tudo parece sem esperança, quando as lantejoulas perdem o brilho e a gargalhada não tem eco, somos obrigados a vestir nossas máscaras e fantasias para mais um espetáculo. A vida dos saltimbancos é emocionante, instável, cheia de conflito. Entre palmas e vaias, luzes e sombras, teimam em preservar tradições, indo de encontro à realidade agressiva das grandes cidades”, escreve.
*Fotos em destaque: Breno Laprovitera (home e topo da página) e Sabrina Nóbrega (Notícias Especiais)