Tirar direitos do papel

Em 31/08/2017 - 19:08
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AUDIÊNCIA PÚBLICA – Taciana venceu o medo e discursou na tribuna. Foto: Henrique Genecy

André Zahar

Taciana Maria Belo da Silva, de 14 anos, não disfarçou o nervosismo ao subir na tribuna do Plenário do Palácio Joaquim Nabuco pela primeira vez. Foi numa audiência pública da Comissão de Meio Ambiente, convocada para tratar do assoreamento do Rio Tejipió (Região Metropolitana do Recife), em abril. Ela foi a porta-voz de um grupo de estudantes da Escola Estadual Edwirges de Sá Pereira.

Superada a hesitação inicial, a jovem apresentou com as próprias palavras questões levantadas por técnicos, ambientalistas e autoridades: “Eu moro ali vai fazer 15 anos. Antes era limpo, agora está uma imundície horrível. Teve enchente, a casa de uma vizinha desabou. Um self-service fechou por causa do cheiro, as pessoas não conseguiam comer lá. Para ir à escola, tem que passar ligeiro, por causa da catinga do rio. Tem muito lixo. Queria que vocês fizessem alguma coisa”.

A fala da estudante é um exemplo do exercício de um direito previsto em normas brasileiras e internacionais: a participação de crianças e adolescentes nas discussões e decisões políticas. Desde 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelece que os estados nacionais devem assegurar-lhes o direito de expressar opiniões sobre os assuntos a elas relacionados.

Legislação

No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei Federal nº 8.069/1990) garante participação na vida familiar, comunitária e política. Já o Estatuto da Juventude ( Lei Federal nº 12.852/2013) fala do “envolvimento ativo dos jovens em ações de políticas públicas que tenham por objetivo o próprio benefício, o de suas comunidades, cidades e regiões e o do País” e da “efetiva inclusão” deles nos “espaços públicos de decisão com direito a voz e voto”.

Para especialistas, entretanto, ainda falta reconhecê-los como sujeitos plenos. Gabriela Goulart Mora, oficial do programa Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), avalia que, apesar da implantação de alguns mecanismos com essa finalidade, “não há uma cultura de fomentar a escuta de crianças e adolescentes sobre políticas públicas”. O órgão estimula esse segmento, que representa quase um terço da população brasileira, a envolver-se na gestão pública por meio de programas como Cidades Amigas das Crianças e Plataforma dos Centros Urbanos.

“Eles trazem histórias reais e experiências que traduzem, na prática, se as ações governamentais estão ou não funcionando. Ouvi-los é valioso para o gestor”, enfatiza Gabriela. “É fundamental garantir a participação de crianças e adolescentes nos conselhos, mas, às vezes, as instâncias formais não conseguem dar conta de outros formatos de participação. Por isso, deve-se dialogar com manifestações culturais, esportivas e sociais para garantir que essas vozes sejam escutadas.”

Iniciativas

Algumas iniciativas já foram instituídas de forma não-sistemática pelo Poder Público, como planos locais, prefeitos e conselhos-mirins e orçamento participativo específico. Nas casas legislativas, além das audiências públicas, existem programas de aproximação dos jovens, a exemplo da Aula de Cidadania, realizada periodicamente pela Alepe.

Apenas 16% dos jovens de 16 e 17 anos cadastraram-se para votar em 2014, enquanto 41% tiraram o título de eleitor em 2012.”

Fonte: “Agenda pela Infância 2015-2018”, do Unicef

Psicólogo e doutorando em Ciência Política, Leonardo Barros Soares participou da implantação do orçamento participativo de Fortaleza (CE), que teve atividades específicas para crianças e adolescentes. Autor de estudo sobre essa experiência, ele considera que os projetos introduzidos no Brasil sofrem com a descontinuidade quando há a mudança de gestores, uma vez que não se consolidam como políticas de Estado. Esses instrumentos requerem parceria entre estabelecimentos de ensino, governos e sociedade civil, avalia.

“É nas escolas que crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo, então são parceiras fundamentais e sem as quais políticas de participação para esse público terão alcance muito limitado. A democratização dessas instituições seria o primeiro passo para formar não apenas indivíduos, mas cidadãos aptos a participarem ativamente da vida comunitária”, afirma o pesquisador.

Nesse sentido, o movimento internacional Cidades Educadoras discute a criação de mecanismos locais para crianças e adolescentes vivenciarem plenamente a cidadania. Gestora do programa no Brasil, Raiana Ribeiro sugere que a escola, como centro de liderança local, busque outras instituições para avançar na garantia do desenvolvimento integral desses sujeitos. “A participação deles revela como é possível pensar as cidades a partir de uma outra escala – a humana – e como a massificação e padronização das políticas pode estar excluindo em lugar de incluir”, ressalta. “O importante é respeitar as linguagens, expressões e tempos dessa faixa etária, o que demanda um reposicionamento do adulto na escuta.”

Exemplo

Referência para estudiosos do tema, a Escola da Ponte, de Portugal, adota currículos que valorizam as necessidades individuais e comunitárias dos alunos, os quais elaboram os próprios roteiros de pesquisa. No mestrado em Gestão e Desenvolvimento pela Universidade de Pernambuco (UPE), Brian Lima foi ao país europeu conhecer esse modelo de educação pública. “Com a participação ativa dos professores, alunos e pais, a Escola da Ponte consegue entregar para a sociedade sujeitos mais humanos, autônomos e cidadãos, ou seja, mais preparados para enfrentar os desafios da vida”, relata Lima.

O pesquisador discutiu a construção de uma proposta similar numa escola municipal de Nazaré da Mata, na Zona da Mata Norte. Porém, adaptar os conceitos à realidade local esbarra no grau de desenvolvimento social e humano do País, além de demandar a sensibilização de agentes públicos e da sociedade civil, o que precisaria ser feito pela própria comunidade escolar. “Cabe aos cidadãos lutar por recursos para a educação e para que essas verbas sejam aplicadas nos projetos que eles aprovam. Se a comunidade participa da gestão escolar, muitas mudanças são possíveis”, acredita.