Especialistas, sociedade e Poder Público apontam discursos por trás de crimes sexuais contra mulheres

Em 26/08/2016 - 10:08
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*Por Ivanna de Castro

DADOS – O 9° Anuário de Segurança Pública revelou que, em 2014, 47,6 mil casos de violência sexual foram notificados no Brasil. Foto: Francisco Cribari/ Site Flickr/ Cortesia

Um vídeo que viralizou nas redes sociais e chocou os brasileiros com cenas de rapazes se vangloriando por estuprar, coletivamente, uma adolescente de 16 anos expôs mais do que um ato cruel cometido no Rio de Janeiro. A divulgação das imagens – e os comentários a respeito delas – tornou pública uma forma de pensar de parcela significativa da sociedade: a tentativa de justificar a violência sexual cometida contra a mulher absolvendo o agressor e penalizando a vítima.

O levantamento Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde – feito em 2014, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – aponta em números a presença dessa concepção no imaginário da população. Nele, 26% dos 3.180 brasileiros entrevistados afirmaram concordar, total ou parcialmente, com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Na mesma pesquisa, 30% mostraram conformidade com a sentença “Se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros”. No mesmo sentido, o levantamento Violência contra a mulher no ambiente universitário, divulgado em 2015 pelo Instituto Avon em parceria com o Data Popular, revelou que 27% das pessoas consultadas não consideram violência abusar de uma garota se ela estiver alcoolizada.

Denominada ainda nos anos de 1970 por movimentos feministas e de direitos humanos como “cultura do estupro”, essa perspectiva se fundamenta em dois conceitos básicos, segundo a educadora Sílvia Camurça, integrante do SOS Corpo- Instituto Feminista para a Democracia. “A crença de que a mulher é a fonte do pecado e sofre violência porque foi descuidada, somada ao entendimento de que os homens têm, naturalmente, desejos sexuais incontroláveis torna natural uma prática machista e violenta”, analisa.

O 9° Anuário de Segurança Pública, divulgado no ano passado, revelou que, em 2014, 47,6 mil casos de violência sexual foram registrados no Brasil, o que corresponde a uma vítima de estupro a cada 11 minutos. A situação é ainda mais grave: o Ipea estima que os registros representam apenas 10% das ocorrências. Para Maria Wedja, feminista, psicóloga e especialista em gênero e políticas públicas, uma das várias causas dessa realidade é, justamente, a “cultura do estupro”. “A conduta da mulher, a roupa que ela usa ou o lugar em que ela foi agredida quase sempre são usados como desculpas para justificar as práticas violentas”, observa.

Segundo Maria Wedja, tal sistemática passa a ser natural até mesmo para a vítima. “É comum que os agressores manipulem e façam as mulheres se sentirem culpadas pelo que sofrem. Isso dificulta o rompimento da relação violenta, já que as vítimas não conseguem compreender o contexto machista que sustenta a relação e a responsabilidade do agressor”, avalia. Para a especialista, grande parte das mulheres “passa a alimentar a esperança de que um dia os atos de violência podem cessar, à medida que elas se adequem aos comportamentos esperados pelos agressores”, complementa.

Sílvia Camurça aponta outros fatores que interferem no número reduzido de notificações. “Há o mito de que as mulheres não denunciam porque são coniventes com a agressão. Na verdade, muitas temem represália da sociedade, não acreditam na punição dos homens ou estão sob influência de forte estresse pós-traumático. Em localidades menores, existe ainda um outro problema: os agressores, muitas vezes, são amigos do policial, do delegado, e essa proximidade causa insegurança nas mulheres”, acrescenta.

Abordagens feitas em casos recentes por profissionais de segurança pública e representantes do sistema judiciário brasileiro causaram polêmica e podem indicar a presença dessa perspectiva, também, na estrutura do Estado. O delegado responsável pela investigação do estupro coletivo no Rio de Janeiro foi afastado após denúncia de que seu interrogatório foi mal conduzido – ele chegou a questionar se a jovem “costumava fazer sexo em grupo”.

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Patrulha – A Secretaria Estadual da Mulher de Pernambuco possui um programa de capacitação de profissionais do Estado. Denominado de Patrulha Maria da Penha, o projeto promove uma formação sobre questões relacionadas à violência de gênero. “Sensibilizar aqueles que lidam com as mulheres vítimas de violência significa lutar contra a cultura machista e patriarcal”, declara a diretora-geral de Enfrentamento da Violência Doméstica e de Gênero, Bianca Rocha. Segundo ela, seis mil profissionais no Estado já passaram pelo processo de formação desde o lançamento da ação, em 2007. “Enfrentamento à violência sexual não é apenas punição. É preciso um trabalho multidisciplinar e uma rede articulada funcionando em todo o Estado”, avalia.

O desafio de combater a violência sexual torna-se ainda maior quando as vítimas são crianças e adolescentes. O estudo do Ipea revela que esse grupo responde por 70% dos casos e, na maioria das vezes, os agressores são pessoas próximas. Amigos ou conhecidos chegam a 32%; pais ou padrastos somam outros 24%. “A subnotificação nesse grupo é muito elevada, pois as vítimas são ainda mais sensíveis às ameaças”, explica Adenir Soares, gestor do Departamento de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA).

A experiência do profissional à frente do órgão mostra que o envolvimento emocional e o fator econômico, frequentemente, dificultam as denúncias. “A todo momento, recebemos casos de vítimas que chegam até nós porque um vizinho ou um professor intercederam. Muitas vezes, a mãe da criança não acredita que seu companheiro é capaz do ato e, em outras situações, ela se omite porque depende financeiramente do parceiro. O empoderamento dessas mulheres, para o ganho de independência, é uma questão urgente”, afirma.

Em Pernambuco, crianças e adolescentes menores de 18 anos representam 68,1% das vítimas registradas entre janeiro de 2014 e maio deste ano. Dessas, 31,7% sofreram abuso sexual antes de completar 11 anos. Mulheres de cor parda são as vítimas mais recorrentes no Estado (ver arte).

Origens – “A colonização no Brasil foi baseada em um processo de colonização de corpos”, afirma a historiadora, professora e feminista Bruna Benning. “Historiadores homens romantizaram, mais tarde, o estupro de índias e negras como um processo positivo de miscigenação dos povos. Na verdade, o que houve foram tribos inteiras sendo exterminadas, mulheres indígenas servindo como escravas sexuais e, depois, negras que foram tratadas como propriedade dos seus senhores”, registra.

Bruna lembra, no entanto, que esse não foi um processo surgido no País. “Tal concepção veio da época medieval, quando os senhores de terras eram considerados donos de tudo o que havia dentro de sua propriedade, o que incluía plantações, animais e também pessoas”. Para ela, confrontar essa realidade passa, primeiramente, por quebrar a naturalização desse discurso. “É preciso problematizar a questão, para que a população que hoje vê o abuso da mulher como algo natural entenda que isso foi construído socialmente e é continuamente alimentado com um intuito: preservar o poder patriarcal”, avalia.

Esse também é o entendimento da representante do SOS Corpo. “Os setores conservadores não querem perder seus privilégios materiais e sexuais, logo não buscam promover a revisão da cultura do estupro. Em razão disso, ainda vemos veículos de comunicação defenderem e valorizarem o papel da mulher ‘bela, recatada e do lar’”, analisa Sílvia Camurça.

DEBATES – Deputadas têm promovido reuniões em cidades do Interior para ouvir demandas da população feminina. Foto: Rinaldo Marques

Educação  – Enfrentar esse pensamento passa, de acordo com todos os especialistas consultados, pela educação. “É essencial continuar debatendo a temática de gênero nas escolas, pois não é possível combater a violência contra a mulher desvinculando-a das desigualdades historicamente construídas nas relações entre os sexos”, sentencia Maria Wedja. Presidente da Comissão de Defesa da Mulher da Alepe, a deputada Simone Santana (PSB) compartilha do mesmo entendimento. “Medidas punitivas são muito importantes, mas o que vai mudar realmente essa triste realidade é a educação. O tema tem que ser discutido nas famílias, nas escolas e em todos os ambientes sociais”, argumenta. “Impedir debates desse tipo dentro das salas de aula é um retrocesso.”

O colegiado presidido pela parlamentar vem promovendo visitas a diferentes cidades do Estado, com o intuito de aproximar a Assembleia das mulheres pernambucanas, que passam a ter a possibilidade de expor suas demandas. A chamada Comissão Itinerante da Mulher já esteve em Condado, na Mata Norte, e em Petrolândia, no Sertão. Outras dez cidades serão visitadas.

“Em Condado, o debate foi focado nas demandas por mais estruturas de enfrentamento à violência contra a mulher, enquanto as participantes em Petrolândia abordaram formas de empoderamento feminino”, relata Simone. Para a deputada, a conscientização das vítimas é uma arma de libertação. “Muitas mulheres não entendem que, além da violência física, podem estar sendo submetidas a violências psicológica, verbal e patrimonial. Isso ocorre porque a cultura machista a coloca como propriedade do homem: primeiro do pai, depois do marido”, emenda.

A educação também é a saída apontada pelo líder da bancada evangélica na Alepe, deputado Pastor Cleiton Collins (PP). No entanto, o parlamentar acredita que a abordagem do tema deve ser de competência exclusiva das famílias. “A criança precisa chegar à escola com seu caráter formado, e essa é uma responsabilidade da família. O que o Estado deve fazer é ajudar os pais a orientar seus filhos e oferecer uma estrutura de saúde para as crianças que precisem de acompanhamento. Não é o professor quem tem que orientar isso”, defende.

O deputado discorda do termo “cultura do estupro”. Para ele, o que existe é uma crise nos valores morais da sociedade. “Infelizmente, a gente tem no Brasil a cultura da sensualidade, da libertinagem e do desrespeito. Isso leva ao aumento dos casos de estupros e da marginalidade. O que importa é a mulher se cuidar e se valorizar”, opina. O parlamentar defende leis mais rígidas para punir os agressores. Collins é autor de uma proposta de criação de vagão exclusivo para mulheres no Metrô, a exemplo de outros Estados, para tentar coibir o assédio no transporte público.

A restrição do trabalho das escolas é criticada por Sílvia Camurça. “Precisamos de parâmetros curriculares que alarguem as perspectivas de diversidade, com o objetivo de tornar nossa sociedade menos racista e machista.” Também defensora da participação da escola, Bruna Benning entende que as discordâncias e os debates têm, no entanto, saldo positivo.

*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de Julho/2016. Confira a edição completa.

**Grafite da capa do artista Boris,  fotografado em um muro no bairro do Totó, no Recife.