O Coletivo Liberta Elas é voltado às mulheres em situação de cárcere em Pernambuco. Com uma visão crítica à seletividade (de raça, sexualidade e classe) do sistema penitenciário brasileiro, a proposta é estabelecer contatos de afeto com essas mulheres, afirmando a importância de a sociedade se voltar para elas, observando onde estão, em quais circunstâncias e os motivos. Juliana Trevas é pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco e trabalha com o Coletivo. O programa da TV Alepe Em Discussão entrevistou a professora, que falou sobre o projeto. A seguir, confira trechos da entrevista ou assista na íntegra neste link.
TV Alepe – Juliana, o que é o Coletivo Liberta Elas? Por que vocês criaram esse projeto e como ele atua?
Juliana Trevas – O Coletivo surgiu de uma reunião de amigas que queriam fazer uma ação mais concreta em relação ao sistema prisional do Estado. Isabel Freitas, que atua no Teatro das Oprimidas, me chamou para conversar, porque já tinha tido a experiência na Colônia Penal Feminina do Bom Pastor, no Recife. A gente se reuniu e começou a pensar na possibilidade de fazer uma outra ação nesse presídio. Chamamos mais sete amigas, de diversas áreas, que também tinham vontade de atuar no sistema prisional e pensamos em realizar oficinas, cujo ponto principal era a questão do afeto. Em junho, promovemos diferentes oficinas, diálogo sobre maternidade, ensaio fotográfico com as mulheres que eram mães e lactantes, entre outras ações.
TV Alepe – Por que essa ideia de trabalhar o afeto?
Juliana Trevas – Além de preencher a lacuna material com os kits, queríamos mostrar que ali havia pessoas, cada uma com seus sentimentos e sua complexidade. Não queríamos ficar apenas no apoio jurídico ou no assistencialismo. A gente queria ouvir, conversar, trocar experiências. Isabel sempre fala que a diferença entre aquelas mulheres que estão ali e ela, que é uma mulher negra, é muito tênue, porque ela poderia estar nesse mesmo lugar. Diferente de mim, que sou uma mulher branca.
TV Alepe – Qual o perfil das mulheres que estão na colônia penal?
Juliana Trevas – O perfil é o mesmo em Pernambuco e no Brasil. Aqui no Estado, 88% das mulheres detidas são negras, 30% têm menos de 30 anos, cerca de 75% não chegaram a completar o Ensino Médio, e a maioria está presa por crimes referentes ao tráfico. Tem uma coisa de que eu sempre gosto de falar: cerca de 56% das mulheres que estão no sistema prisional não foram julgadas. Estão lá esperando o Estado se posicionar, se elas são culpadas ou não.
TV Alepe – O Estado brasileiro está capacitado para lidar com as mulheres presas?
Juliana Trevas – Na minha opinião, não. Para mim, o Estado tem uma política de sucesso de encarceramento em massa. Não é à toa que o Brasil está em quarto lugar na população carcerária mundial, e esse percentual só faz crescer. De 2006 até 2016, houve um aumento de mais de 700% nesse número. As encarceradas fazem parte de determinados grupos de mulheres, especificamente negras, que não têm acesso ao trabalho e pertencem a determinados espaços sociais. Além disso, na maioria das unidades prisionais do País não existe creche, espaço para atendimento médico e, muito menos, para visita íntima.
TV Alepe – Como a política antidrogas tem prejudicado as mulheres, principalmente as dos segmentos mais vulneráveis?
Juliana Trevas – As mulheres presas já sofreram violência estrutural em todos os aspectos. O tráfico entra justamente quando não há nenhuma possibilidade de fonte de renda para a mulher, principalmente quando ela precisa cuidar dos filhos. E também há todo o estigma relacionado às mulheres usuárias de drogas. Então, acho que o Estado é omisso.
TV Alepe – Nos presídios masculinos, é comum ver filas nos dias de visita e até quando ocorrem problemas. Em relação às colônias penais femininas, o cenário é parecido?
Juliana Trevas – Diferentemente dos presídios masculinos, onde as mulheres, as famílias, as filhas dão o suporte material e psicológico que o Estado não oferece, nas unidades femininas, as detidas não têm esse respaldo. Quando começamos a visitá-las, percebemos que tinham uma imensa necessidade de falar, de serem escutadas. Acho que solidão e abandono são duas palavras que são uma realidade para as mulheres que se encontram sob custódia do Estado. Das cerca de 355 que estão na Colônia do Bom Pastor, aproximadamente 150 nunca receberam nenhum tipo de visita, seja porque a família tem vergonha, ou é do Interior e não tem condições de vir ao Recife.
TV Alepe – No caso das colônias penais femininas, reproduz-se aquele problema da superlotação?
Juliana Trevas – Percebemos isso. Uma coisa que foi bastante falada por elas foi a dificuldade para dormir nas celas, porque é muita gente, então quando uma se vira, quer trocar de lado, tem que acordar todas.
TV Alepe – Em relação às mulheres que são mães? Ele têm mais dificuldades?
Juliana Trevas – Têm sim. Primeiro, a própria legislação não é cumprida. Vimos no começo do ano uma decisão do STF que é baseada na Lei da Primeira Infância. Caso a mulher seja mãe e esteja grávida ou tenha filhos menores de 11 anos, e não tenha cometido crimes de alta violência, ela poderia aguardar o julgamento em prisão domiciliar, mas isso não é cumprido. Então, o Judiciário e o Ministério Público pecam, negligenciam as mulheres. Na realidade do Bom Pastor, as que estão grávidas ficam no pátio maior. As lactantes, que acabaram de ter bebê, ficam num local que a gente classificou de uma prisão dentro da prisão.
TV Alepe – A função primordial do sistema prisional deveria ser a ressocialização. No caso do sistema que atende as mulheres, você acha que essa missão vem sendo cumprida?
Juliana Trevas – De jeito nenhum. Não existe direito à saúde, são poucos médicos. Acho que no Bom Pastor é uma médica para cuidar de mais de 500 mulheres. Uma reclamação constante que ouvimos foi sobre a dificuldade de se manter até o equilíbrio psicológico. Imagine estar confinada com muitas mulheres o tempo inteiro. Também existe uma dificuldade de a sociedade civil chegar a esses espaços. Existe toda uma burocracia para se chegar e, por exemplo, realizar oficinas lá.
TV Alepe – Após o cumprimento da pena, essas mulheres têm dificuldade de se reinserir no convívio social, no mercado de trabalho, na própria família?
Juliana Trevas – Procuramos dar uma assessoria jurídica popular às mulheres, mas a gente sempre pensa: “O que será delas ao saírem da prisão”? Porque a estrutura não muda, a falta de emprego continua. As mulheres vão para o sistema prisional justamente depois de sofrerem várias violências estruturais e, quando saem, nada muda.
TV Alepe – Há uma maior severidade nos julgamentos das mulheres que cometem crimes?
Juliana Trevas – Acredito que sim. O Judiciário, para mim, é um dos grandes responsáveis por essa superlotação no sistema prisional. Utiliza a lei de drogas como instrumento para aprisionar pessoas que estão à margem da sociedade. Então, em muitos processos, vemos que o inquérito policial, a denúncia do Ministério Público e a sentença do juiz são narrativas criadas. São elementos extralegais que se encontram no processo. Por exemplo, vão logo acusando a mulher de ser promíscua, usuária de drogas etc. Toda uma narrativa que é criada, que não diz muito a respeito do crime, vai se agregando. Quando chega na hora de sentenciar, o juiz se utiliza de uma estrutura racista, sexista, LGBTfóbica e acaba condenando a mulher.
TV Alepe – Preocupa-me a questão das mulheres lésbicas e das mulheres trans nas colônias penais. Há também violação de direitos?
Juliana Trevas – Acredito que há, sim. Vivemos num Estado que prioriza relacionamentos heterossexuais. A mulher trans, por exemplo, não vai estar no sistema prisional feminino, mas sim, no masculino. Se a gente pensar: “Quem são as pessoas que julgam?” Geralmente, os membros Judiciário e do Ministério Público são homens, brancos, heteronormativos, que vão julgar outros corpos. Então vem toda essa carga do racismo, do sexismo, da LGBTfobia institucional, que pesa.
TV Alepe – É possível pensar em pontos específicos que ajudem a humanizar a passagem dessas mulheres pelo sistema prisional?
Juliana Trevas – Eu consigo pensar que o Estado deve fazer valer a lei constitucional de presunção de inocência. As mulheres que entram no sistema já são culpadas até que se prove o contrário. Se se pudesse valer esse direito constitucional, acho que a população carcerária seria menor. A gente também poderia pensar numa forma de humanizar o sistema, com creches, locais para visita íntima, lugares em que possam ser desenvolvidos trabalhos. Assim, tudo isso e os direitos mais básicos, como saúde e educação, melhorariam o sistema.