Pelo direito ao mínimo

Em 12/01/2018 - 08:01
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Luciano Galvão Filho

BENEFÍCIO - Aparecida teme não conseguir se recadastrar para receber o BPC. Foto: Jarbas Araújo

BENEFÍCIO – Aparecida teme não conseguir se recadastrar para receber o BPC. Foto: Jarbas Araújo

A aposentada Aparecida de Oliveira, 69, exibia os documentos na pequena recepção à entrada do Centro de Atenção em Assistência Social (Cras) do Pina, na Zona Sul do Recife. Apesar do mobiliário simples e da visível necessidade de reparos, o espaço abrigava com algum conforto as pessoas que, assim como dona Aparecida, esperavam seguir recebendo o Benefício de Prestação Continuada (BPC) – um auxílio de um salário mínimo pago a quem não tem renda suficiente para se manter nem pode ser amparado pela própria família.

“Eu sou muito nervosa, tenho diabetes e tudo, então fico nesse aperreio”, dizia a aposentada, moradora do bairro, enquanto a atendente lhe explicava que, por conta da demanda superior à capacidade de atendimento, ela teria de voltar ao Cras dois dias depois para concluir o recadastramento. “Seja o que Deus quiser, não é?”

Quase 2 milhões de famílias em Pernambuco podem ver fechados os espaços como aquele em que dona Aparecida recebia atendimento. Em meio à contenção de gastos proposta pelo Governo Federal, um projeto em tramitação no Congresso Nacional pode apertar radicalmente o orçamento dos serviços de assistência social no Brasil. A medida, sugerem especialistas, pode deixar praticamente sem atendimento os mais de 26 milhões de famílias de baixa renda no País.

Os serviços de assistência social pretendem oferecer proteção a quem está em dificuldades – seja por situações inesperadas (como desastres naturais), seja porque os rendimentos da família não suprem as necessidades mais básicas. A mais conhecida dessas políticas é o Bolsa Família, mas as ações envolvem também programas para preservação de laços familiares, enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes, erradicação do trabalho infantil e prevenção ao uso problemático de drogas.

Também estão entre as iniciativas a inclusão social de idosos que sofreram violações de direitos, acompanhamento de pessoas em situação de rua, acolhimento a indivíduos afastados dos seus núcleos familiares, atenção a jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, enfrentamento a calamidades públicas, visitas a locais de difícil acesso e mesmo a promoção de arte, cultura e lazer nas comunidades onde a oferta desse tipo de atividade é precária.

2 mi
de famílias pernambucanas dependem de serviços prestados nos Centros de Atenção em Assistência Social (Cras).

Todas essas ações estão organizadas no Sistema Único de Assistência Social (Suas), que, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS), envolve a União, os estados e os municípios. Na maioria das cidades, no entanto, praticamente todo o custeio dos centros onde a população é atendida depende do dinheiro que chega do Governo Federal.

“Os recursos federais são o grande sustentáculo do Suas”, resume a dirigente do Conselho Regional de Serviço Social de Pernambuco (Cress-PE) Priscila Cordeiro. “Com os cortes propostos, fica ameaçada a proteção a uma parcela da população que vivencia situações de violência, com histórico de vulnerabilidade e em situação de extrema pobreza. São pessoas que nunca tiveram a devida atenção do Estado e que deixarão de acessar uma série de direitos.”

“É uma situação bem delicada para um momento de crise e de desemprego”, alerta a secretária de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do Recife, Ana Rita Suassuna. A gestora estima que, mesmo na capital, que dispõe de um caixa mais confortável em relação às pequenas cidades, deixar de receber repasses da União representaria “um abalo significativo”.

“Podemos retroceder a um paradigma de caridade, de doações pontuais, que não atingem no cerne do problema.”

      Penélope Andrade,      presidente do Colegiado de Gestores Municipais de Assistência Social

“O orçamento do município ficaria comprometido para manter o que temos hoje”, avalia a secretária, que estima em 30% a participação dos recursos federais no custeio da assistência social no Recife. Ela destaca que, longe dos grandes centros urbanos, a realidade é ainda mais severa. “Os municípios de pequeno porte, que são a maioria, vivem unicamente da verba do Suas e, sem ela, devem fechar os serviços. Isso vai quebrar uma rede que atende justamente à população que mais precisa.”

Além do custeio da assistência social, o Suas articula os esforços para a execução da política nacional para o setor. A desmobilização dessa instância, que centraliza as ações, pode criar as condições para a volta de práticas de assistencialismo associadas a grupos políticos locais, pontuam as entrevistadas.

“As pessoas ficam sem alternativa. Podemos deixar de ter ações planejadas de combate à extrema pobreza para retroceder a um paradigma de caridade, de doações pontuais, que não atingem no cerne do problema”, prevê a presidente do Colegiado de Gestores Municipais de Assistência Social de Pernambuco, Penélope Andrade.

“Podemos ver o retorno de costumes muito fortemente ligados a oligarquias, porque quem vai custear a assistência são os antigos ‘coronéis’, e quem vai operacionalizar as ações serão as primeiras-damas. É um cenário muito tenebroso”, analisa Priscila Cordeiro, do Cress-PE.

Reações no Poder Legislativo

O encolhimento nos valores previstos para o Suas pode chegar a 98%. Segundo o projeto da Lei Orçamentária Anual enviado ao Congresso Nacional em agosto, dos mais de R$ 3,5 bilhões à disposição da assistência social em 2017, apenas R$ 78 milhões estariam previstos para a proteção às famílias em situação de vulnerabilidade em 2018.

A severidade dos cortes e a mobilização dos trabalhadores do setor chamaram a atenção de parlamentares. Houve pressão pela recomposição do orçamento da área, e o movimento obteve o compromisso do Ministério do Desenvolvimento Social no sentido de garantir os recursos para 2018 no mesmo montante do ano anterior.

“Estamos conseguindo resultados objetivos com as lutas que nos dispomos a fazer”, comemora o deputado federal Danilo Cabral (PSB-PE), que coordena, na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar em Defesa do Suas. O socialista também apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição, ainda em tramitação, para garantir que 1% das receitas da União seja aplicado na assistência social. “Não estamos preocupados apenas com a recomposição para 2018, mas também com o processo no decorrer dos próximos anos.”

A articulação em torno da questão envolveu o legislativo estadual. Em setembro, a Alepe recebeu ato promovido pelos profissionais da assistência social no Estado. Em outubro, a Casa criou, a requerimento do deputado Aluísio Lessa (PSB), a Frente Parlamentar em Defesa do Suas. O coordenador da iniciativa planeja levar, a todas as regiões do Estado, discussões sobre a importância do tema. “Falta legitimidade ao Governo Federal, e as pessoas mais desfavorecidas não podem pagar o preço”, defende Lessa.