
OLINDA – Em 2006, a Nação Xambá, da comunidade do Portão do Gelo, foi reconhecida como o primeiro quilombo urbano do Nordeste. Foto: Rinaldo Marques
Tayza Lima
O município de Bom Conselho, a 287 quilômetros da capital pernambucana, no Agreste Meridional, abriga uma das mais antigas comunidades quilombolas do Estado: os Macacos do Sítio Escorrego. A memória dos moradores mais antigos indica que o povoado se formou no final do século 17, com o desmantelamento do famoso Quilombo dos Palmares.
Em junho de 2005, a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, emitiu o certificado que atesta que ali vivem herdeiros, descendentes de uma história de luta contra a escravidão. O professor de história Vitor Gomes é uma dessas pessoas, e explica como é o processo de se reconhecer quilombola.
“Coletividade. Na cultura africana, esse traço coletivo é bastante forte, ele parte de maneira natural da história não-oficial do município. Sempre costumam dizer: ‘Lá no Escorrego era o lugar dos negros’. Então há aquele boato, aquela espécie de história oral, e que com o tempo as pessoas vão mastigando, vão entendendo que ali tem uma memória quilombola, uma memória africana.”
Em Pernambuco, mais de 150 grupos se reconhecem como pertencentes a um território com raízes africanas. A maioria dessas áreas se localiza na zona rural, mas também existem os chamados quilombos urbanos. Em 2006, a Nação Xambá, da comunidade do Portão do Gelo, em Olinda, foi reconhecida como o primeiro quilombo urbano do Nordeste.

DIFICULDADES – Segundo Guitinho da Xambá, os obstáculos existem até mesmo para os quilombos urbanos. Foto: Rinaldo Marques
Geograficamente mais perto da sede do Governo do Estado, o Terreiro tem mais acesso a políticas sociais e de infraestrutura, mas como relata um dos integrantes da Nação, Guitinho da Xambá, as dificuldades existem. “Há um imaginário no Brasil de que a questão indígena e negra é cultural. E às vezes, até para consertar uma canaleta, por exemplo, a gente tem que ir pela Secretaria de Cultura. Então de certa forma, as políticas chegam, mas chegam meio capengas.”
Em 2016, o Governo do Estado lançou o plano Pernambuco Quilombola, com o objetivo de promover e acompanhar ações de fortalecimento e preservação do povo de quilombo. Para o coordenador do programa na Secretaria de Desenvolvimento Social de Pernambuco, Antônio Crioulo, o maior problema ainda é a demarcação. “A maior dificuldade das comunidades parte de um eixo estruturante, que é a questão do acesso à terra. Se as comunidades têm acesso ao seu território, elas conseguem lutar pela questão da educação diferenciada, da agricultura.”
O Governo de Pernambuco tem uma parceria com o Incra para a titulação e demarcação de áreas quilombolas. O antropólogo do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do órgão, Johnny Cantarelli, afirma que, atualmente, há oito processos em andamento, sendo o mais avançado o da comunidade de Castainho, em Garanhuns, Agreste Meridional.
“Algumas propriedades privadas já foram desapropriadas, e as terras que pertencem ao Estado de Pernambuco estão para se regularizar. Com relação aos demais processos e comunidades, a gente está dialogando para, em um momento possível, iniciar os trabalhos efetivos”, acrescentou Cantarelli.
Mas esse “momento possível” pode demorar ainda mais a chegar. A CPI da Funai e do Incra, instalada pela Câmara dos Deputados em 2015 e renovada em 2016, apresentou o relatório final dos trabalhos no início de maio deste ano. O documento prevê o indiciamento de 88 pessoas e propostas de novas políticas de demarcação de territórios de povos tradicionais.
Para quilombolas, enquanto a opressão contra o povo negro persistir, quilombo vai ser sinônimo de luta e resistência
A antropóloga Isabel Rodrigues, do Incra no Recife, explica qual o impacto da aprovação do relatório para as comunidades quilombolas. “O suporte jurídico que fundamentava essa política está sendo questionado. Até mesmo no que diz respeito ao conceito do próprio quilombola, do que seria o remanescente de quilombo. Vai ser muito difícil a gente conseguir reverter esse quadro se essas mudanças vierem a acontecer.”
Além do território, uma das reivindicações constantes dos quilombolas se refere à educação. Apesar do currículo escolar afro-brasileiro já ser lei, as comunidades se organizam internamente para ensinar aos mais novos o passado do seu povo e dos heróis negros, como conta Guitinho, da Nação Xambá. “A gente mostra a história e as músicas contando o cotidiano da comunidade. Possibilitamos o conhecimento das tradições de matriz africana, o que deveria ser feito na escola. O moleque estando aqui, no Centro Cultural da Xambá, sabe muito bem o quanto a gente tem importância nesse País.”
O termo quilombo, no dicionário, significa acampamento, esconderijo no mato onde se refugiavam escravos. Mas para quilombolas como Guitinho e Vitor, enquanto a opressão contra o povo negro persistir, quilombo vai ser sinônimo de luta e resistência.