Por Eliza Kobayashi
Um aborto por minuto. Essa é a realidade no Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) 2016. Realizado pela Anis – Instituto de Bioética, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e o Ministério da Saúde, o estudo foi divulgado em dezembro do ano passado, quando coincidiu com dois fatos inéditos que reacenderam o debate sobre o tema: a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de descriminalizar a prática até o terceiro mês de gestação e a autorização do Papa Francisco para ampliar o perdão às mulheres que provocaram a interrupção da gravidez indesejada.
Apesar de proibido pela legislação brasileira ( Decreto-Lei nº 2.848/ 1940) – exceto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e feto anencéfalo –, mais de meio milhão de mulheres recorreram ao procedimento ilegal em 2015, segundo a PNA. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 47 mil morram todos os anos no mundo por complicações relacionadas a abortos clandestinos. No Brasil, um relatório elaborado pelo Governo Federal aponta que essa é a quinta causa de morte materna.
Para o obstetra Olímpio Moraes, gestor executivo do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam) – uma das mais tradicionais maternidades públicas do Recife –, a maior parte dessas mortes poderia ser evitada se a prática não fosse criminalizada. “A mulher não abre mão de fazer um aborto só porque é crime. Ela apenas deixa de procurar ajuda especializada, ficando mais vulnerável a complicações e a uma nova gravidez indesejada”, observa. O especialista ressalta ainda que, por medo de serem hostilizadas ou denunciadas, muitas pacientes acabam omitindo a informação para o médico quando precisam recorrer ao hospital após um procedimento clandestino malsucedido. “Com o diagnóstico errado, o tratamento acaba não sendo eficaz e a mulher pode até morrer”, adverte Moraes.
Em novembro do ano passado, ao julgar um caso ocorrido no Rio de Janeiro, o STF considerou que a prática, quando realizada até o terceiro mês de gestação, não configura crime. Apesar de o entendimento estar restrito a um caso específico, o veredito abre precedente para a descriminalização do aborto no País. A posição é a mesma do Conselho Federal de Medicina (CFM). A entidade defende que tanto a mulher quanto o médico tenham autonomia na decisão sobre uma gravidez de risco ou indesejada.
A representante do Conselho Regional de Medicina de Pernambuco (Cremepe) e presidente da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Pernambuco (Sogope), Maria Luiza Menezes, explica que, até a décima-segunda semana de gestação, a interrupção é considerada segura, “desde que realizada em um ambiente hospitalar e acompanhada por profissionais médicos”. “Isso protege a paciente de ter que recorrer a um procedimento clandestino, podendo pagar muitas vezes com a própria vida”, pontua.
Os argumentos enfrentam resistência de diversos setores no Brasil, especialmente daqueles ligados à Igreja Católica e a algumas correntes evangélicas. Para muitos cristãos, a vida se forma já no momento da concepção, e interromper a gravidez é considerado pecado grave. Na Câmara dos Deputados, parlamentares da chamada “bancada evangélica” prometeram apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para endurecer a legislação relacionada ao tema.
Na Alepe, a decisão do STF também foi criticada. Em Plenário, o deputado Pastor Cleiton Collins (PP) afirmou considerar a sentença inadmissível. “Essa é uma decisão injusta, que vai influenciar juízes de todo o Brasil”, afirma. Para ele, essa discussão extrapola o campo da religião. “É uma questão da vida. Acho que os três Poderes e a sociedade têm que trazer medidas para valorizar a vida e o ser humano.” Já o deputado Rodrigo Novaes (PSD) considerou equivocada a determinação, por estipular um período em que a interrupção pode ser permitida. “Tecnicamente, respeitaria a decisão se o entendimento fosse para o aborto em qualquer situação. Mas imaginar que a vida tem prazo de validade ou tentar ter discernimento de quando há vida no feto é algo que supera a compreensão do homem”, argumenta. O parlamentar acredita que a legislação atual sobre o tema já é equilibrada, opinião que é compartilhada pela deputada Priscila Krause (DEM). Ela classificou a decisão do Judiciário como “usurpação de poder”. “O assunto deve ser debatido de forma ampla com toda a população, e a representação da sociedade está no Congresso Nacional, e não no STF”, defende.
O tema foi abordado pelo Papa Francisco, em dezembro, quando concedeu aos sacerdotes o poder de absolver mulheres cristãs que tenham realizado aborto, prerrogativa antes exclusiva dos bispos. O padre José Severino de Arruda, da Paróquia de São Judas Tadeu, no Recife, interpreta que o ato teve como objetivo apenas simplificar o rito e não sinaliza uma flexibilização da Igreja. “Em relação à doutrina, não mudou nada. A Igreja é defensora da vida e jamais passaria pela cabeça de um papa ser favorável ao aborto, pois sabemos que isso significa matar um inocente sem direito à defesa”, acredita.
A coordenadora da organização não-governamental (ONG) Católicas pelo Direito de Decidir, Rosângela Talib, tem outra avaliação. Para ela, o perdão e a misericórdia são valores que devem ser vividos na prática cristã. “É importante se colocar no lugar da mulher e compreender os motivos que a levaram a optar pelo aborto”, pondera. “Elas devem ter o direito de se utilizar da própria consciência, bem como livre arbítrio para tomar esse tipo de decisão difícil.” Educadora do Instituto Feminista para a Democracia SOS Corpo, Sílvia Camurça defende que a legislação garanta condições iguais para todos, independentemente da fé de cada um. Ela avalia que o País ainda precisa passar por uma mudança cultural profunda para que a mulher conquiste a autonomia de decidir sobre o próprio corpo. “Para a gente conseguir que as mulheres tenham uma vida inteiramente livre e sejam donas do próprio nariz, o direito de ser ou não mãe tem que estar colocado para elas. Mas esse direito é sempre negado”, ressalta.
No ano passado, um estudo divulgado pela OMS mostrou que, nos países onde o aborto é permitido, o número de procedimentos têm diminuído. No Uruguai, por exemplo, onde a prática foi descriminalizada em 2012, a taxa de desistência de mães que pretendiam abortar aumentou em 30%. Assim como a classe médica, essas organizações defendem a educação sexual nas escolas e o acesso irrestrito aos métodos contraceptivos como medidas para, antes de tudo, evitar a gravidez indesejada. O médico Olímpio Moraes explica que um atendimento estruturado, com políticas públicas específicas e acompanhamento psicológico, ajuda na decisão. Além disso, a mulher é bem orientada para não reincidir numa gestação indesejada. “É um serviço que humaniza a relação da sociedade com o ato da gravidez”, conclui Sílvia Camurça, do SOS Corpo.
*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de outubro/2016. Confira a edição completa.