Trabalho escravo não é coisa do passado

Em 09/09/2016 - 13:09
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BRASIL - Nas últimas duas décadas, quase 50 mil pessoas foram libertadas de serviços que ferem a dignidade humana. Atividade canavieira é responsável por um quarto dos casos. Foto: Fernando Ferreira/Arquivo Alepe

BRASIL – Nas últimas duas décadas, quase 50 mil pessoas foram libertadas de serviços que ferem a dignidade humana. Atividade canavieira é responsável por um quarto dos casos. Foto: Fernando Ferreira/Arquivo Alepe

Ivanna de Castro

Pensar sobre trabalho escravo no Brasil não nos remete, necessariamente, a um passado distante. Apesar de a assinatura da Lei Áurea ter ocorrido há mais de 120 anos e de muitos avanços na legislação trabalhista terem se tornado reais desde então,  ainda se encontra essa prática degradante no País. Para afirmar isso, basta compreender que o conceito contemporâneo de escravidão inclui, além da existência de senzalas ou chibatas, a submissão de trabalhadores a situações que ferem sua condição de ser humano.

“A escravidão moderna ocorre quando uma pessoa controla a outra com a intenção de explorá-la. Nesse processo, é retirada do trabalhador a sua condição de sujeito de direito e ele passa a ser tratado como um bem particular”, define Plácido Júnior, agente da Comissão Pastoral da Terra em Pernambuco (CPT-PE), entidade que atua em defesa dos trabalhadores.

Dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) revelam que, no Brasil, 49.816 pessoas foram libertadas de condições análogas à escravidão entre 1995 – ano em que o Governo Federal reconheceu a questão –  e 2015. Essas pessoas foram resgatadas pelo Poder Público por serem submetidas a pelo menos uma das quatro situações estabelecidas pelo Código Penal brasileiro para caracterizar a escravidão: trabalhos forçados, jornada exaustiva, servidão por dívida ou condições degradantes.

A procuradora do Ministério Público do Trabalho em Pernambuco (MPT-PE) Débora Tito relaciona esse processo à dinâmica imposta pelo sistema capitalista. “O que sustenta a escravidão contemporânea é a ganância e a indiferença. O empregador passa a não se preocupar com as condições em que a outra pessoa está trabalhando. O que ele quer é diminuir os custos para aumentar seu lucro”, acredita.

A pesquisa Perfil dos Principais Atores Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil, divulgada em 2011 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), descreve aqueles que fazem uso desse tipo de mão de obra no País. O levantamento –  de caráter qualitativo – aponta que os exploradores são, em geral, brancos, donos de médias ou grandes propriedades e têm escolaridade elevada. Na outra ponta, dados do MTPS mostram que os indivíduos escravizados se encontram em condições de extrema vulnerabilidade social.

“Muitas vezes, resgatamos pessoas tão fragilizadas, que não têm consciência da sua condição de escravo. Esses indivíduos acreditam que não há outra forma de trabalhar, senão aquela degradante, pois já nasceram em uma realidade de exploração, e a vulnerabilidade foi sendo transmitida de geração para geração”, relata o auditor fiscal do trabalho em Pernambuco Edilberto Medeiros.

Processo construído – Doutora em História Social, a professora Beatriz Brusantin explica que esse processo é resultado do descaso histórico do Estado com a parcela mais carente da socie-dade. “Depois da abolição, os antigos donos de escravos puderam continuar explorando os trabalhadores. As condições sociais eram tão precárias que, certamente, criou-se uma fila de libertos precisando de abrigo, serviço e um prato de comida. Essa realidade desigual, ainda existente, serve como base para a continuidade do sistema escravista”, elucida.

Segundo a pesquisadora, cujos estudos focam a escravidão na Zona da Mata pernambucana, “a estrutura fundiária vigente no Brasil e em Pernambuco – latifundiária e de monocultura – agrava a desigualdade social e, portanto, a precarização do trabalho”. Não à toa, o meio rural reúne o maior número de casos de escravidão contemporânea, sendo a atividade canavieira – uma das mais relevantes para a economia do Estado – responsável por um quarto dos casos registrados no País (ver gráfico).

Para o representante da Comissão Pastoral da Terra, o enfrentamento ao trabalho escravo moderno passa por ações sociais articuladas do Poder Público. “Não basta libertar as pessoas. É preciso extirpar raízes mais profundas: miséria, ganância, impunidade e concentração da terra”, acredita Plácido.

Presidente da Comissão de Agricultura da Assembleia, o deputado Miguel Coelho (PSB) reconhece a necessidade de o Estado se debruçar sobre o tema. “Precisamos discutir a questão nas diferentes Comissões da Casa para pensarmos em políticas sociais de combate e, principalmente, de prevenção ao trabalho escravo em Pernambuco e no País. Se as pessoas se submetem a essas atividades em pleno século 21, é porque falta a presença do Poder Público na vida delas”, concluiu.

Obstáculos – Marcel Gomes, secretário-executivo da ONG Repórter Brasil – entidade que atua no combate ao trabalho escravo –, indica dois pontos que atualmente se apresentam como “ameaças de retrocesso” na política de enfrentamento à escravidão contemporânea: a desestruturação das equipes de fiscalização e a tramitação de propostas de alteração das leis que tratam do problema.

“A fiscalização está andando a passos muito lentos. Não há concursos para novos auditores do trabalho, e o dinheiro de custeio das equipes diminuiu.” Sobre o segundo ponto, Gomes explica que está em curso uma tentativa articulada de setores mais conservadores do Congresso Nacional para reduzir a atual definição de escravidão. “Alegam que o termo ‘condições degradantes’ é abstrato. O pedido não se justifica, pois o processo administrativo avalia situações que não deixam margem para dúvidas.”

A procuradora Débora Tito aponta um outro desafio: fazer com que a punição atinja todos os que se beneficiam da prática. “É necessário atuar em toda a cadeia produtiva. Se as grandes marcas e indústrias que lucram com a exploração também sofrerem penalidades, elas vão parar de comprar de produtores que utilizam mão de obra escrava”, assegura. Para ela, seria preciso avançar na responsabilização criminal dos empregadores, “ainda muito tímida e lenta no País”.

*Esta matéria faz parte do jornal Tribuna Parlamentar de agosto/2016.  Confira a edição completa.