
Requerimento 277/2023
Texto Completo
Requeremos à Mesa, ouvido o Plenário e cumpridas as formalidades regimentais, seja transcrito nos Anais desta Legislativa a série de seis artigos de título "Supremo Acerto de Contas", de autoria do Exmo. Sr. Conselheiro do Tribunal de Contas de Pernambuco Valdecir Pascoal, publicados no período de 8 de janeiro a 19 de março do corrente, no Jornal do Commercio.
Justificativa
O Jornal do Commercio publicou, quinzenalmente, no período de 8 de janeiro do corrente a 19 de março último, uma série de seis artigos de autoria do conselheiro do Tribunal de Contas de Pernambuco, Dr. Valdecir Pascoal, de título "Supremo Acerto de Contas", que integra a obra "Supremos Acertos: avanços doutrinários a partir da jurisprudência do STF", Editora Casa do Direito, lançado no final de 2022 e organizado por professores da Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de Minas Gerais)(UFMG).
Em face da relevância dessa participação nas páginas do tradicional jornal pernambucano, propomos sua transcrição nos Anais desta Casa legislativa através do presente Requerimento, na certeza de seu acolhimento pelos Nobres Pares.
Na íntegra, os textos em destaque:
“Supremo Acerto de Contas”
Ao longo das próximas quinzenas, publicaremos neste espaço os principais pontos de um ensaio que escrevi para o livro “Supremos Acertos: avanços doutrinários a partir da jurisprudência do STF”, da Editora Casa do Direito, lançado no final de 2022 e organizado por professores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
No texto, trato das principais decisões do STF que, nos últimos 34 anos, alçaram os Tribunais de Contas à condição de verdadeiros guardiões da República e da boa gestão, sem prejuízo de apontar, ao final, desafios e os riscos de eventuais retrocessos jurisprudenciais. Hoje, segue o Capítulo 1: “Dois filhos de Rui Barbosa”.
DOIS FILHOS DE RUI BARBOSA
O ano de 2021 foi emblemático para a história republicana brasileira. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal de Contas da União (TCU) celebraram 130 anos como instituições de estatura e matriz constitucional.
É verdade que o TCU, por meio do D e c r e t o 966–A, havia sido criado, formalmente, um ano antes, em 1890, ainda no governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca. No entanto, o órgão nem chegou a funcionar de fato. A sua história como instituição incumbida do controle externo das contas públicas federais começa, para valer, em 1891, quando passou a angariar, ao lado do STF, o status de órgão constitucional.
Após a criação do TCU, paulatinamente, o novo modelo federativo levou à instituição daquilo que se convencionou chamar de sistema de controle externo, a partir do surgimento dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal e, em alguns Estados e Municípios, da instalação de Tribunais de Contas Municipais.
As duas instituições, portanto, o STF e o TCU, nascem no alvorecer da República, passando a desempenhar relevantes atribuições constitucionais. O STF, com a missão de garantir a máxima efetividade ao novo contrato social instaurado pela Constituição de 1891 (Guardião da Constituição). O TCU, e os demais Tribunais de Contas, com o objetivo de garantir o princípio republicano, que tem como corolários o dever de prestar contas, de ser transparente e de boa gestão de todos aqueles encarregados de aplicar os recursos do povo.
Mas há uma outra ponte a unir umbilicalmente essas duas instituições republicanas: a figura de Rui Barbosa, que pode ser considerado o patrono-mor de ambos os órgãos. O STF e os Tribunais de Contas são verdadeiros filhos de Rui Barbosa. A incansável defesa de Rui Barbosa do papel do STF e dos Tribunais de Contas estão registrados em muitos escritos e discursos. Abaixo, duas passagens históricas em que o ilustre jurista justifica a criação dessas instituições: S T F - “ O Supremo Tribunal Federal é essa força que diz: ‘Até aqui permite a Constituição que vás; daqui não permite a Constituição que passes’. Eis para que se criou o Supremo Tribunal Federal, que não tem empregos para dar, não tem tesouros para comprar dedicações, não tem soldados para invadir estados, não têm meios de firmar a sua autoridade senão no acerto das suas sentenças”;
TCU - “A medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediária à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com atribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional. (…) Convém levantar, entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que, comunicando com a legislatura, e intervindo na administração, seja, não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentárias por um veto oportuno aos atos do executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente discrepem da linha rigorosa das leis de finanças”.
Passados 133 anos da República, em que se intercalaram governos democráticos e autoritários, constituições outorgadas e promulgadas, é dever reconhecer a importância de ambas as instituições – STF e Tribunais de Contas – para a consolidação dos princípios republicano e democrático e do Estado de Direito em nosso país. No próximo Capítulo: “O STF e a autonomia dos Tribunais de Contas”.
Hoje, o segundo capítulo do ensaio “Supremo Acerto de Contas: a hermenêutica constitucional que consolida os Tribunais de Contas como guardiões da República”.
AUTONOMIA DOS TRIBUNAIS DE CONTAS
Algumas indagações antecedentes. Os Tribunais de Contas constituem um Poder autônomo? Integram o Poder Judiciário? Fazem parte do Poder Legislativo? Ou são instituições autônomas sem vinculação com quaisquer dos Poderes?
A arquitetura institucional dos Tribunais de Contas é tema afeito à sua própria natureza jurídica. Não é raro deparar-se com posicionamentos imprecisos sobre a real topografia constitucional dos Tribunais de Contas em relação aos Poderes da República.
O nome “tribunal”, a competência para “julgar contas” e a equiparação de seus membros (Ministros, Conselheiros e Substitutos) ao regime jurídico dos membros do Judiciário são elementos que podem induzir os mais apressados à conclusão equivocada de que os Tribunais de Contas seriam órgãos do Poder Judiciário.
Há também os que inserem os Tribunais de Contas no âmbito do Poder Legislativo, partindo, igualmente, de premissas superficiais. Alegam que os principais artigos que disciplinam os Tribunais de Contas na Constituição Federal – artigos 70 a 75 – estão inseridos no Capítulo que trata do Poder Legislativo, logo seriam órgãos deste Poder. Em reforço, recorrem a uma exegese míope do caput do artigo 71, que, ao consignar a titularidade do Controle Externo ao Poder Legislativo e, ao mesmo tempo, assinalar as competências do Tribunal de Contas da União, dispõe: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:”. Para alguns, a expressão “com o auxílio” teria o condão de reduzir esses Tribunais à condição de órgãos do Legislativo e, pior, numa posição de subalternidade a esse, porquanto seria dele um mero auxiliar. Uma parcela desses posicionamentos costuma camuflar uma ideia depreciativa em relação ao papel dos Tribunais de Contas.
Carlos Ayres Britto desnuda esses verdadeiros sofismas: “Quando a Constituição diz que o Congresso exercerá o controle externo ‘com o auxílio do TCU’, tenho como certo que está a falar de ‘auxílio’ do mesmo modo como a Constituição fala do Ministério Público perante o Judiciário. (...) Uma só função, com dois diferenciados órgãos a servi-lo. Sem que se possa falar de superioridade de um perante o outro”. Nesta mesma senda é a posição majoritária da doutrina, a exemplo de Celso Antônio Bandeira de Melo, Odete Medauar, Eduardo Gualazzi, José Afonso da Silva e Marçal Justen Filho.
O STF, já em 1984, assinalou: “O Tribunal de Contas não é preposto do Legislativo. A função que exerce recebe diretamente da Constituição Federal, que lhe define atribuições” (Rep. 1.179 - ES). Esse posicionamento do STF foi firmado ainda sob a vigência de ordenamento jurídico anterior à promulgação da CF de 1988, cujo advento só fez ampliar e fortalecer as atribuições dos Tribunais de Contas.
Sob a vigência da nova Carta, a jurisprudência do STF consolidou-se, na mesma senda, com vistas a reconhecer a plena autonomia aos Tribunais de Contas perante os demais Poderes da República, atuando como uma espécie de órgãos de permeio (nem acima, nem abaixo; mas ao lado dos clássicos Poderes), a partir de uma legitimidade extraída diretamente do Texto Constitucional. Posição, diga-se, semelhante à arquitetura institucional conferida ao Ministério Público. Essa autonomia se manifesta, por exemplo, por meio da capacidade de autogoverno (autonomia administrativa), da iniciativa privativa de leis sobre suas competências, processos e organização, da sua independência financeira e orçamentária, da equiparação de seus membros ao regime jurídico do Judiciário, além da previsão de quadro próprio de pessoal.
É essa a melhor exegese que se extrai de uma interpretação lógica, sistemática e teleológica dos dispositivos constitucionais, afirmados pelos artigos 31, 71 a 75, sem olvidar do artigo 73 da Lei Maior que manda aplicar aos Tribunais de Contas, no que couber, o disposto no seu artigo 96, que trata justamente das balizas essenciais da autonomia do Poder Judiciário. O precedente abaixo ilustra bem a posição do STF: “As Cortes de Contas seguem o exemplo dos tribunais judiciários no que concerne às garantias de independência, sendo também detentoras de autonomia funcional, administrativa e financeira, das quais decorrem, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e funcionamento, conforme interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, II, d, da Constituição Federal (ADI 4.418).
A CF de 1988 conferiu um destaque especial às competências e à composição dos Tribunais de Contas, ao longo dos seus artigos 31, 70 a 75. O artigo 70 estabelece o alcance do poder fiscalizador desses órgãos. O artigo 71 é o núcleo das suas competências constitucionais. Eis as principais atribuições: (a) emitir parecer prévio sobre as contas de governo do Chefe do Poder Executivo; (b) julgar as contas de gestão dos demais administradores de recursos públicos; (c) aplicar sanções e determinar ressarcimentos em casos de dano ao erário. O artigo 73 dispõe sobre as formas e os critérios de composição dos Tribunais.
Analisando a literalidade dos artigos 70 a 74, vê-se que a Lei Maior trata especificamente do Tribunal de Contas da União (TCU), cujo poder fiscalizador alcança a aplicação de recursos federais pelo governo federal, em regra, mas também pelos demais governos estaduais e municipais quando estes aplicam recursos transferidos voluntariamente pelo governo federal. Nada obstante, o artigo 75 determina que todas aquelas competências, forma de composição e organização, além do alcance do controle, devem ser observadas, no que couber, em relação aos Tribunais de Contas dos Estados, do DF e dos Municípios.
Portanto, as regras assinaladas na CF, em matéria de modelo de controle externo, inserem-se nas chamadas “normas de reprodução obrigatória”, sendo, pois, um modelo jurídico cogente, a ser obrigatoriamente observado pelos ordenamentos jurídicos estadual, distrital e municipal. Conclui-se que as competências dos Tribunais de Contas dos Estados, DF e dos Municípios encontram fundamento de validade também na própria Constituição Federal, sendo, ao fim e ao cabo, semelhantes àquelas conferidas ao TCU, mudando-se tão somente a jurisdição.
Com efeito, aos Parlamentos estadual, distrital e municipal restaram muito pouco em matéria de legislar sobre o modelo de controle externo. Sem poder acrescer qualquer competência nova, eles devem se limitar a adequar os dispositivos da Lei Maior à estrutura administrativa e institucional do Estado, do DF e dos Municípios. Logo, se determinada Constituição Estadual ou Lei Orgânica de Município estabelecer competências para os seus Tribunais de Contas além ou aquém do modelo delineado na Constituição Federal, esse dispositivo será inconstitucional.
Nestes 34 anos de vigência do atual ordenamento jurídico, não foram poucas as ocasiões em que o STF foi chamado a garantir a máxima efetividade da aplicação do modelo de controle externo no âmbito dos demais entes federativos. A maioria das ações que culminaram com deliberações do STF em relação ao modelo de controle dizem respeito a tentativas do legislador estadual, seja por meio de dispositivos presentes nas Constituições Estaduais ou em outras leis locais, de subtrair ou mitigar competências dos Tribunais estaduais.
O precedente abaixo reflete a essência da firme Jurisprudência do STF sobre a questão: “O art. 75, caput, da Constituição da República contempla comando expresso de espelhamento obrigatório, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, do modelo nela estabelecido de controle externo da higidez contábil, financeira e orçamentária dos atos administrativos, sendo materialmente inconstitucional a norma de regência da organização ou funcionamento de Tribunal de Contas estadual divorciada do modelo federal de controle externo das contas públicas”. (ADI 5323-RN. 2019. Rel. Min. Rosa Weber).
Esclareça-se, por fim, que, a despeito de o modelo de controle externo federal ser de observância obrigatória pelos demais entes federados, não existe qualquer vinculação entre o TCU e os demais Tribunais de Contas da federação, tanto no aspecto de subordinação administrativa, quanto no aspecto processual. Cada qual atua no limite de sua autonomia e jurisdição, observando, como regra de competência, a origem dos recursos. Uma decisão tomada por um Tribunal de Contas de Estado, por exemplo, não pode ser alterada pelo TCU.
Todas as decisões dos Tribunais de Contas – pareceres prévios sobre contas de Chefe do Poder Executivo, julgamento de contas dos demais agentes que aplicam dinheiro público, apreciação da legalidade de atos de pessoal ou de aposentadorias, adoção de medidas cautelares –, na medida em que se concretizam por meio de um processo dialético em que, no mais das vezes, são apontados, no curso de auditorias e inspeções, indícios de irregularidades em atos de governo e de gestão, hão de observar a cláusula constitucional do devido processo legal.
À luz do que preceitua a Constituição, em seu artigo 5º, LIV e LV, respectivamente, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados, em geral são VALDECIR PASCOAL DIVULGAÇÃO TCE assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
É comum inserirem o processo de controle externo no âmbito, ou como espécie, de processo administrativo, para diferenciá-los do processo judicial ou legislativo. É esse, por exemplo, o entendimento de Hely Lopes Meirelles, que denomina de processo administrativo de controle aquele em que a Administração realiza verificações e declara situação, direito, conduta do administrado ou servidor, com caráter vinculante para as partes. Quando neles se deparam irregularidades puníveis, exige-se, para a inteireza do processo, o contraditório e a ampla defesa.
Nada obstante, ganha relevo, a cada dia, uma posição que compreende o processo de controle externo como um processo peculiar e especial. Ayres Britto afirma que “os processos instaurados pelos Tribunais de Contas têm sua própria ontologia. São processos de contas, e não processos parlamentares, nem judiciais, nem administrativos”.
Com efeito, não há como pensar na efetividade das decisões dos Tribunais de Contas sem o respeito ao princípio do devido processo legal. Além de ser fundamental para a qualidade e a justeza da decisão final do órgão de controle, sua inobservância enseja a nulidade do processo, retirando-lhe a efetividade.
Logo, deverão as leis orgânicas dos Tribunais de Contas estabelecer as normas pertinentes à instrução dos processos pelo segmento da auditoria (composta por um quadro de servidores concursados e dotados de independência funcional), prazos para defesa, modalidades de recursos perante o Tribunal, o papel do Parquet de Contas. Esse regramento próprio não afasta a aplicação subsidiária das leis de processo administrativo e do CPC. Ademais, o processo de controle externo para ser legal, devido e justo, entre outros atributos éticos, precisa levar em conta a imparcialidade do julgador.
A obrigação de os Tribunais de Contas seguirem os postulados do Artigo devido processo legal vem sendo ratificada reiteradamente pelo STF. Emblemática essa passagem do MS 23.550: – “Os mais elementares corolários da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa são a ciência dada ao interessado da instauração do processo e a oportunidade de se manifestar e produzir ou requerer a produção de provas; de outro lado, se se impõe a garantia do devido processo legal aos procedimentos administrativos comuns, a fortiori, é irrecusável que a ela há de submeter-se o desempenho de todas as funções de controle do Tribunal de Contas, de colorido quase-jurisdicional. A incidência imediata das garantias constitucionais referidas dispensariam previsão legal expressa de audiência dos interessados; de qualquer modo, nada exclui os procedimentos do Tribunal de Contas da aplicação subsidiária da lei geral de processo administrativo federal (L. 9.784/99), que assegura aos administrados, entre outros, o direito a ‘ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos (art. 3º, II), formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente’. A oportunidade de defesa assegurada ao interessado há de ser prévia à decisão, não lhe suprindo a falta a admissibilidade de recurso, mormente quando o único admissível é o de reexame pelo mesmo plenário do TCU, de que emanou a decisão”.
Malgrado o dever de celebrar essa profícua construção jurisprudencial do STF, para não se dizer que aqui não se tratou de aspectos que demandam críticas e reflexão sobre uma desejada mutação constitucional, pela via interpretativa, do próprio STF, é forçoso consignar que em algumas questões pontuais, a jurisprudência poderia ter seguido a mesma trilha dos posicionamentos históricos que conferiram efetividade máxima ao poder fiscalizador dos Tribunais de Contas, a exemplo da breve amostra aqui já ressaltada neste ensaio.
A primeira diz respeito à competência para julgamento das contas de gestão de prefeitos ordenadores de despesas, à luz do artigo 71, I e II, e 75 da Constituição, combinado com o disposto no artigo 1º, I, “g”, da Lei da Ficha Limpa (LC 64/90). A lei estabelece que se o Chefe do Executivo decidir ser ordenador de despesas, ele terá suas contas julgadas pelo Tribunal de Contas, nos termos do artigo 71, II, da Lei Maior, incidindo, nesse aspecto, em potencial, as regras de inelegibilidade. Nesse caso, o Prefeito se submeteria a um duplo julgamento: 1) suas contas de governo seriam julgadas pelo Legislativo, mediante parecer prévio do Tribunal de Contas (artigo 71, I, da CF); e 2) suas contas de gestão seriam julgadas pelo Tribunal de Contas (artigo 71, II, da CF).
O STF, ainda em 2012, no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 29 e 30, considerou constitucional o referido dispositivo da Lei da Ficha Limpa. No entanto, em 2016, julgando repercussão geral no RE 848.826, o STF, por maioria de um voto, firmou a tese de que, para fins de elegibilidade, o prefeito, ainda que assuma a função (facultativa, diga-se) de ordenador de despesas, terá essas contas julgadas pelo Legislativo, cabendo ao Tribunal de Contas a emissão de parecer prévio.
Embora respeitável, a tese aprovada pelo STF mitiga sobremaneira a atuação dos Tribunais de Contas, na medida em que, ao não compreender a natureza dual das contas - “governo” x “gestão” - transforma em julgamento político, pelo Legislativo, aquilo que deveria ser objeto de julgamento pelo órgão técnico do controle externo, os Tribunais de Contas. Além do que, essa decisão aumenta o risco de esvaziamento das competências para imputar débitos, aplicar sanções, conceder medidas cautelares em desfavor daquele chefe de executivo que, por vontade própria, decidiu centralizar a gestão e assumir o papel de ordenador de despesas. Oxalá o decantar do tempo propicie uma nova mutação interpretativa do Supremo, desta vez restaurando o caminho da máxima efetividade do controle nesse aspecto.
Já por meio da ADI 4776, em que estava em julgamento a aplicação do modelo federativo dos Tribunais de Contas – quanto à sua composição – ao Tribunal de Contas do Município de São Paulo, em razão das peculiaridades históricas deste TCM, o STF acabou abrindo uma exceção à jurisprudência cristalizada, admitindo, por exemplo, que o seu órgão decisório máximo, o Pleno, continuasse sendo composto por apenas cinco Conselheiros, sem a obrigação de assegurar assentos ao auditor (conselheiro substituto) e ao membro do Ministério Público de Contas, o que acaba fragilizando o caráter multidisciplinar da função de julgamento e o próprio princípio federativo.
Um último aspecto na seara dos desafios jurisprudenciais é aquele atinente à Súmula 347 do STF, que confere aos Tribunais de Contas a competência para “apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos do Poder Público”. Adotada ainda sob a égide da Constituição de 1946, a tese sumular seguiu sendo ratificada pelo STF, até que, em decisões monocráticas, alguns membros começaram a lançar dúvidas quanto à sua vigência, após a CF de 1988. Conquanto ainda não tenha havido uma inflexão definitiva quanto à vigência formal da referida Súmula, até pelas peculiaridades dos casos concretos examinados, trata-se de uma outra relevante questão que, se consumada a mudança, pode vir a fragilizar a efetividade do controle externo, à medida em que, no limite, ainda que o órgão de controle se depare com atos de gestão manifestamente inconstitucionais, no curso das auditorias, não poderá afastá-los, no caso concreto.
PS.: Registre-se que após a publicação desse ensaio, o STF tomou duas decisões emblemáticas para o fortalecimento dos Tribunais de Contas. Por meio da ADI 6655, assinalou que os cargos que compõem a estrutura finalística da auditoria desses Tribunais, incluindo os de coordenação, devem ser ocupados por servidores concursados da carreira de controle externo. Noutras ADIs, a exemplo da 6946, o STF consagrou a simetria do regime remuneratório dos Ministros e Conselheiros Substitutos com os membros equivalentes do Judiciário.
A Constituição de 1988 fortaleceu os Tribunais de Contas como instituições incumbidas de exercer, ao lado do Parlamento, o controle externo da administração pública. É fato que o titular formal do chamado Controle Externo, à luz do que estatui o artigo 71 da Lei Maior, é o Poder Legislativo, que, legitimamente, representa o povo, de onde emana todos os Poderes. Mas foi esta mesma Constituição que acabou delegando a maior parte das competências fiscalizadoras, em matéria de controle externo, aos Tribunais de Contas. A Carta não teve a ousadia, é verdade, de alçar os Tribunais de Contas ao status de um Poder da República, mas também não os inseriu sob o guarda-chuva formal de quaisquer deles.
Em suma: o Tribunal de Contas não é o titular do controle externo, mas é quem detém, por vontade da Constituição, as suas mais relevantes atribuições. Outro aspecto a lhe conferir legitimidade: igualmente ao Supremo, os Tribunais de Contas são frutos ontológicos da vontade de um poder constituinte democrático. Há mais pontos que consubstanciam essa sintonia entre os Tribunais de Contas e a democracia. Eles fiscalizam a correta aplicação dos recursos públicos (do povo). Agem, portanto, a serviço do cidadão, na defesa da legalidade e da boa qualidade das políticas públicas, sem olvidar o seu papel quando, por meio de julgamentos, ajuda a qualificar a democracia, contribuindo para proteger a gestão dos maus gestores (lei da ficha limpa) e também auxiliando o cidadão na escolha dos seus representantes, a partir da transparência de sua atuação.
Como visto neste ensaio, essa legitimidade social vem sendo consolidada a partir de uma profícua atuação do STF, que construiu uma robusta jurisprudência constitucional, conferindo, preponderantemente, máxima efetividade ao poder fiscalizador dos Tribunais de Contas. Pode-se dizer mesmo que o STF tem sido um guardião desses órgãos.
A propósito da democracia, é indubitável a constatação de que ela vive, em escala mundial, uma de suas maiores crises, como atesta, ano a ano, o Democracy Index, compilado pela revista The Economist. Uma nova nebulosa populista e autoritária, catalisada pelo que chamo de algoritmocracia, “e-manada” das milícias digitais, cobre os quatro cantos do mundo. Vivemos uma espécie de quarentena democrática. Tendo o país testemunhado o movimento pelas “Diretas Já” (1984), seguido da promulgação da Carta Cidadã (1988), esperava- -se que aquela inflexão democrática seria uma conquista civilizatória imune a retrocessos. Ledo engano. Os perigos da esquina, semelhantes aos tenebrosos anos 30 e 40 do século passado, estão à espreita.
A respeito da relatividade do relógio da história e do risco permanente de movimentos que fragilizam a democracia, recomenda-se a leitura do alerta de Umberto Eco, na magistral palestra proferida na Columbia University, em 1995. Moral da prosa: a tal “nebulosa”, camaleonicamente, estará sempre de tocaia e a democracia não é dádiva sagrada, precisa ser regada a cada sol.
As instituições, por sua vez, estão a serviço da democracia e também não funcionam plenamente sem ela. O grau de accountability de uma Nação pressupõe, na lição de Guillermo O’Donnell, eleições e imprensa livres, canais de participação cidadã e a existência de agências de contrapesos – Judiciário, Legislativo, Tribunais de Contas, Ministérios Públicos, Controladorias… – incumbidas da Artigo preservação do Estado Democrático de Direito. A percepção hoje é que as instituições brasileiras, a exemplo do STF e dos Tribunais de Contas, embora não estejam totalmente blindadas da vertigem destrutiva dessa nova era de extremos, vêm, no geral, resistindo às tentativas de desconstrução.
Como vaticinado na alegoria do “rio mutante” (Heráclito), todas as instituições republicanas e democráticas devem buscar o aprimoramento contínuo. O STF e os Tribunais de Contas do Brasil estão imbuídos desse propósito existencial. O STF, na trincheira guardiã das liberdades, dos direitos e garantias fundamentais, tendo, muitas vezes, que atuar de forma contramajoritária, na preservação do Estado Democrático de Direito. Os Tribunais de Contas, zelando pela correta aplicação dos recursos do povo, reconhecendo e valorizando todos os avanços dos últimos anos – conquistados, inclusive, como se viu, a partir da jurisprudência do STF –, mas, ao mesmo tempo, atentos, vigilantes e abertos aos ventos republicanos que permitam necessárias mudanças.
Eis a maior missão dessas instituições: honrar o legado do seu patrono-mor, Rui Barbosa. O STF, guardando a Constituição; os Tribunais de Contas, guardando a República. Ambos, a serviço da democracia, do cidadão e do Estado de Direito.”
Histórico
Joaquim Lira
Deputado
Informações Complementares
Status | |
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Situação do Trâmite: | ENVIADO_PARA_COMUNICACAO |
Localização: | SECRETARIA GERAL DA MESA DIRETORA (SEGMD) |
Tramitação | |||
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1ª Publicação: | 22/03/2023 | D.P.L.: | 18 |
1ª Inserção na O.D.: |