
Parecer 3323/2020
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1205/2020
AUTORIA: DEPUTADO ISALTINO NASCIMENTO
PROPOSIÇÃO QUE DECLARA SER CONTRÁRIO AO INTERESSE PÚBLICO, NO ÂMBITO DO ESTADO DE PERNAMBUCO, POR SEUS PODERES E ENTES DESPERSONALIZADOS, ESTABELECER OU MANTER RELAÇÕES CONTRATUAIS OU INSTITUCIONAIS COM PESSOA FÍSICA OU JURÍDICA QUE PRODUZA, REPRODUZA OU PATROCINE, DIRETA OU INDIRETAMENTE, DESINFORMAÇÃO, NOTÍCIA FALSA, DISTORCIDA, DESCONTEXTUALIZADA, QUE VEICULE DISCURSO DE ÓDIO OU OFENSA DIRETA OU INDIRETA A DIREITOS HUMANOS. MATÉRIA INSERTA NA AUTONOMIA ADMINISTRATIVA DOS ESTADOS-MEMBROS PARA DEFINIR CRITÉRIOS APLICÁVEIS À CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS VINCULADOS A PROGRAMAS ESTADUAIS (ARTS. 18 E 25, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). VIABILIDADE DA INICIATIVA PARLAMENTAR. AUSÊNCIA DE Violação à competência da União para estabelecer normas gerais sobre LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS (art. 22, INCISO xxvii, da Constituição FEDERAL). PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PELA APROVAÇÃO, NOS TERMOS DO SUBSTITUTIVO DESTE COLEGIADO.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020, de autoria do Deputado Isaltino Nascimento, que declara ser contrário ao interesse público, no âmbito do Estado de Pernambuco, por seus Poderes e entes despersonalizados, estabelecer ou manter relações contratuais ou institucionais com pessoa física ou jurídica que produza, reproduza ou patrocine, direta ou indiretamente, desinformação, notícia falsa, distorcida, descontextualizada, ou que veicule discurso de ódio ou ofensa indireta a direitos humanos.
O Projeto de Lei tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 223, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 194, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa.
De início, cumpre esclarecer que o Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020 aborda dois aspectos principais. Por um lado, trata da impossibilidade de o Poder Público estadual manter relações institucionais, notadamente quanto à concessão de benefícios vinculados a programas estaduais, com pessoas que incidiram na prática de fake news ou em ofensa a direitos humanos (art. 4º). De outro, a proposta versa sobre a vedação de contratar publicidade governamental com pessoas físicas e jurídicas que incorreram nessas mesmas práticas (art. 1º).
Em relação ao primeiro aspecto (critérios aplicáveis durante a execução de programas estaduais), verifica-se que a medida, dado seu caráter genérico e abstrato, não se enquadra nas regras que exigem a deflagração do processo legislativo pelo Governador do Estado ou por outros órgãos/autoridades estaduais (arts. 19, § 1º; 20; 45; 68, parágrafo único, e 73-A, todos da Constituição Estadual). Além disso, a proposição encontra amparo na autonomia administrativa dos Estados-membros, em especial quanto à definição de eventuais beneficiários de recursos públicos (arts. 18 e 25, § 1º, c/c art. 24, inciso I, da Constituição Federal). Logo, não se cogita de vício de inconstitucionalidade formal neste particular.
No que tange ao segundo aspecto (impossibilidade de licitar e contratar serviços de publicidade com a Administração Pública), não se vislumbra óbice à iniciativa processo legislativo por meio de proposta oriunda de parlamentar. Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF afirma que a reserva de iniciativa do Poder Executivo não abrange o tema de licitações e contratos administrativos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. LEI Nº 11.871/02, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, QUE INSTITUI, NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA REGIONAL, PREFERÊNCIA ABSTRATA PELA AQUISIÇÃO DE SOFTWARES LIVRES OU SEM RESTRIÇÕES PROPRIETÁRIAS. EXERCÍCIO REGULAR DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PELO ESTADO-MEMBRO. INEXISTÊNCIA DE USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA LEGIFERANTE RESERVADA À UNIÃO PARA PRODUZIR NORMAS GERAIS EM TEMA DE LICITAÇÃO. LEGISLAÇÃO COMPATÍVEL COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES, DA IMPESSOALIDADE, DA EFICIÊNCIA E DA ECONOMICIDADE. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. 1. A competência legislativa do Estado-membro para dispor sobre licitações e contratos administrativos respalda a fixação por lei de preferência para a aquisição de softwares livres pela Administração Pública regional, sem que se configure usurpação da competência legislativa da União para fixar normas gerais sobre o tema (CRFB, art. 22, XXVII).
2. A matéria atinente às licitações e aos contratos administrativos não foi expressamente incluída no rol submetido à iniciativa legislativa exclusiva do Chefe do Poder Executivo (CRFB, art. 61, §1º, II), sendo, portanto, plenamente suscetível de regramento por lei oriunda de projeto iniciado por qualquer dos membros do Poder Legislativo.
[...]
(ADI 3059, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-085 DIVULG 07-05-2015 PUBLIC 08-05-2015)
Nesse ponto, ressalte-se que a Lei nº 8.666/93 (Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos) - a qual, inegavelmente, cria inúmeras obrigações para a administração pública e, inclusive, exige a publicação de resumo dos contratos firmados pelo Poder Público posteriormente a sua assinatura (art. 61, parágrafo único) - originou-se de proposição legislativa do então Deputado Luís Roberto Ponte, sem que isso influísse em sua regularidade formal em face da Constituição Federal.
(ADI 2444, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 06/11/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 30-01-2015 PUBLIC 02-02-2015)
Em relação à possibilidade de exercício da atribuição legislativa em âmbito estadual, entende-se que, a priori, o Projeto de Lei ora analisado tem fundamento no regime de repartição de competências adotado pela Constituição Federal. Com efeito, o art. 22, inciso XXVII, da Carta Magna estabelece:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
[...]
XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Embora o referido dispositivo constitucional disponha sobre a competência privativa da União, trata-se de campo reservado tão somente à edição de “normas gerais”. Ou seja, reconhece-se, de forma implícita, a competência suplementar dos demais entes federativos para legislar sobre licitações e contratos administrativos em questões específicas, com fundamento no art. 24, §§ 3° e 4º, da Constituição Federal.
A propósito do assunto, destaca-se a lição de Rafael Carvalho Rezende Oliveira:
Na forma do art. 22, XXVII, da CRFB, compete à União legislar sobre normas gerais de licitações e contratos. É importante frisar que o texto constitucional estabeleceu a competência privativa apenas em relação às normas gerais, razão pela qual é possível concluir que todos os Entes Federados podem legislar sobre normas específicas.
Desta forma, em relação à competência legislativa, é possível estabelecer a seguinte regra:
a) União: competência privativa para elaborar normas gerais (nacionais), aplicáveis a todos os Entes Federados.
b) União, Estados, DF e Municípios: competência autônoma para elaboração de normas específicas (federais, estaduais, distritais e municipais), com o objetivo de atenderem as peculiaridades socioeconômicas, respeitadas as normas gerais.
A dificuldade, no entanto, está justamente na definição das denominadas “normas gerais”, pois se trata de conceito jurídico indeterminado que acarreta dificuldades interpretativas. Isso não afasta, todavia, a importância da definição das normas gerais, em virtude das consequências em relação à competência legislativa.” (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos. 4º ed., Rio de Janeiro: Forense).
Dessa forma, conclui-se que a atividade legislativa estadual em matéria de licitações e contratos é possível desde que não afronte as normas gerais editadas pela União e tenha por finalidade a complementação ou suplementação de lacunas, sem corresponder à generalidade.
Contudo, o problema reside na identificação das referidas normas gerais, pois as leis editadas pela União (em especial as Leis Federais nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e nº 10.520, de 17 de julho de 2002) contemplam, indistintamente, normas gerais – aplicáveis a todos os entes federativos – e normas federais propriamente ditas – aplicáveis tão somente à União.
Nada obstante essa dificuldade, no bojo da ADI nº 3735/MS, o STF traçou os parâmetros que devem orientar o intérprete durante a delimitação do espaço para exercício da competência legislativa estadual:
[...] é necessário ter presente que a competência legislativa dos Estados-membros para criar requisitos de participação em licitações não pode comprometer a competência federal para fazer o mesmo, pois esta última tem clara precedência (art. 22, XXVII). A definição que se impõe, nesses circunstâncias, é a respeito das consequências dessa posição de preferência da lei nacional.
Uma das consequências certamente está relacionada com o âmbito material de regulação da norma local. É que somente a lei federal poderá, em âmbito geral, estabelecer desequiparações entre os concorrentes e assim restringir o direito de participar de licitações em condições de igualdade. Ao direito estadual (ou municipal) somente será legítimo inovar neste particular se tiver como objetivo estabelecer condições específicas, nomeadamente quando relacionadas a uma classe de objetos a serem contratados ou a peculiares circunstâncias de interesse local. É o que pode suceder com obras de infra estrutura de alta complexidade ou fornecimento de bens em grande escala, por exemplo. A aprovação de diplomas locais com esses desígnios tem o benfazejo efeito de padronizar as exigências rotineiramente praticadas pela administração estadual em licitações específicas, estabilizando as expectativas dos respectivos participantes. – grifos acrescidos
Firmadas essas premissas, depreende-se que a proposta ora analisada institui uma hipótese de impedimento de licitar e contratar serviços publicidade governamental em face de pessoas físicas ou jurídicas que produzam fake news ou que veiculem discursos atentatórios a direitos humanos. Trata-se, na linha de entendimento do STF, de uma condição específica, condizente com o objeto da contratação (serviços de publicidade).
Isto posto, inexistem vícios de inconstitucionalidade que possam comprometer a validade da proposição em apreço.
Todavia, faz-se necessário o aperfeiçoamento do texto do Projeto de Lei para evitar alguns problemas quanto a sua aplicabilidade. Sem embargo, considerando que o ordenamento jurídico pátrio não contempla um ilícito civil ou penal pela prática de fake news, a melhor solução consiste em prever que o impedimento de licitar ou contratar decorra de condenação judicial definitiva, proveniente de ação indenizatória ou penal na qual seja reconhecido que o ilícito tenha sido cometido mediante a produção ou reprodução de notícia falsa, distorcida ou descontextualizada. Com isso, evita-se a formulação de um juízo meramente administrativo quanto a sua caracterização, assegurando, assim, maior objetividade e segurança jurídica à atuação do Poder Público e o interesse da coletividade em geral.
Portanto, com o intuito de promover as adequações necessárias, propõe-se a aprovação do seguinte substitutivo:
SUBSTITUTIVO N° /2020
AO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1205/2020
Altera integralmente a redação do Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020.
Artigo único. O Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020 passa a ter a seguinte redação:
“Proíbe a contratação de serviços de publicidade governamental e a concessão de benefícios financeiros, sociais ou econômicos em favor de pessoas físicas e jurídicas que produzam ou disseminem notícias falsas ou que pratiquem, induzam ou incitem atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, no âmbito do Estado de Pernambuco.
Art. 1° Os órgãos e entidades da Administração Pública do Estado de Pernambuco ficam impedidos de licitar ou contratar serviços de publicidade governamental com pessoa física ou jurídica que:
I - tenha sido condenada, em decisão judicial transitada em julgado, a pagar indenização por danos materiais ou morais em razão da produção ou reprodução de notícia falsa, distorcida ou descontextualizada; e/ou
II - tenha sido condenada, em decisão judicial transitada em julgado, por crime ou contravenção penal cometido mediante produção ou reprodução de notícia falsa, distorcida ou descontextualizada, ou, por praticar, induzir ou incitar atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, nos termos da Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, ou de outra lei que vier a substituí-la.
§ 1º O impedimento para licitar e contratar de que trata o caput será aplicável:
I - pelo prazo de até 2 (dois) anos, contados da data do trânsito em julgado, na hipótese do inciso I; e
II - enquanto perdurar os efeitos da condenação criminal, na hipótese do inciso II.
§ 2º Caso seja constatada a ocorrência da condenação durante a execução do contrato, o órgão ou entidade da Administração Pública poderá determinar a rescisão unilateral, com fundamento no inciso XII do art. 78 e no inciso I do art. 79 da Lei Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
§ 3º Os órgãos e entidades da Administração Pública farão constar nos editais dos procedimentos licitatórios e nos instrumentos contratuais, bem como nos aditivos celebrados aos contratos já em execução, a obrigatoriedade de observância do disposto nesta Lei.
Art. 2º É vedada a concessão de qualquer benefício financeiro, social ou econômico, oriundo de programas mantidos por órgãos ou entidades da Administração Pública do Estado de Pernambuco, em favor de pessoa física ou jurídica que tenha incorrido nas hipóteses mencionadas nos incisos I ou II do art. 1º.
Art. 3º Qualquer pessoa poderá comunicar às autoridades públicas competentes do Estado de Pernambuco o conhecimento de casos que se enquadrem nos arts. 1º e 2º a fim de que sejam adotadas as providências cabíveis.
Art. 4º A imposição das penalidades de que trata esta Lei deverá ser apurada em processo administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa do interessado.
Art. 5º Caberá ao Poder Executivo regulamentar a presente Lei em todos os aspectos necessários para a sua efetiva aplicação.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Diante do exposto, opina-se pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020, de autoria do Deputado Isaltino Nascimento, nos termos do Substitutivo acima proposto.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 1205/2020, de autoria do Deputado Isaltino Nascimento, nos termos do Substitutivo deste Colegiado.
Histórico