
Parecer 3167/2020
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 701/2019
AUTORIA: DEPUTADO PROFESSOR PAULO DUTRA
PROPOSIÇÃO QUE Institui a reserva de vagas A ESTUDANTES DE ESCOLAS PÚBLICAS NOS CURSOS TÉCNICOS OFERTADOS POR INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA DO ESTADO DE PERNAMBUCO. VIABILIDADE DA INICIATIBA PARLAMENTAR. MATÉRIA INSERTA NA COMPETÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS PARA LEGISLAR SOBRE EDUCAÇÃO E MEIOS DE ACESSO AO ENSINO (ART. 23, INCISO V, E ART. 24, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). INSTITUIÇÕES INTEGRANTES DO SISTEMA ESTADUAL DE ENSINO (ART. 17, INCISO I E ART. 39, § 2º, INCISOS I E II, DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL). CONSTITUCIONALIDADE DAS COTAS COMO AÇÕES AFIRMATIVAS. PRECEDENTES DO STF. PELA APROVAÇÃO.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 701/2019, de autoria do Deputado Professor Paulo Dutra, que institui a reserva de vagas a estudantes de escolas públicas nos cursos técnicos ofertados por instituições públicas de educação profissional e tecnológica do Estado de Pernambuco.
Em síntese, a proposição determina que as instituições públicas de educação profissional e tecnológica do Estado de Pernambuco instituam a reserva de 80% (oitenta por cento) das vagas oferecidas nos processos seletivos para ingresso em cursos técnicos integrados, concomitantes ou sequenciais em favor de estudantes oriundos de escolas públicas. Além disso, o projeto de lei prevê que 50% das vagas reservadas deverão ser destinadas a estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 (um e meio) salário-mínimo per capita. Outrossim, a proposta estabelece que os editais de processos seletivo indicarão, de forma discriminada, por curso e turno, o número de vagas reservadas. Por fim, a proposição dispõe que, em caso de descumprimento, os dirigentes das instituições públicas de educação profissional e tecnológica ficarão sujeitos à responsabilização administrativa em conformidade com a legislação aplicável.
O Projeto de Lei em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 223, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
Cabe à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, nos termos do art. 94, inciso I, do Regimento Interno desta Casa, manifestar-se sobre a constitucionalidade, legalidade e juridicidade das matérias submetidas a sua apreciação.
A proposição em análise encontra guarida no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 194, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa, não estando no rol de matérias afetas à iniciativa privativa do Governador do Estado. Infere-se, portanto, quanto à iniciativa, sua constitucionalidade formal subjetiva.
Pela ótica das competências constitucionais, a matéria versada no Projeto de Lei nº 701/2019 está inserta na esfera de competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal, conforme estabelece o art. 24, inciso IX (educação, ensino, cultura e desporto), bem como na de competência material comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, segundo prevê o art. 23, inciso V, (proporcionar os meios de acesso à educação), ambos da Constituição Federal:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre:
[...]
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
Além das regras de repartição de competência, a Constituição Federal também possui disciplina própria quanto ao arranjo de competências entre os entes políticos. De fato, a Carta Magna prevê não só a necessidade de atuação conjunta e sistêmica por União, Estados e Municípios, mas também designa funções materiais específicas.
Segue abaixo a transcrição das principais diretrizes:
Art. 211. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino.
§ 1º A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios;
§ 2º Os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil.
§ 3º Os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.
§ 4º Na organização de seus sistemas de ensino, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório.
§ 5º A educação básica pública atenderá prioritariamente ao ensino regular.
Como se observa, o art. 211 da Constituição não prescreve competências meramente estanques, podendo existir atuações de entes distintos numa mesma área de ensino. Assim sendo, o primeiro aspecto que deve ser ressaltado é a atuação em regime de colaboração, havendo um sentido de sistematicidade entre os sistemas de ensino da União, Estados e Municípios. Além disso, importante destacar que, apesar da atuação prioritária dos Municípios na educação infantil e dos Estados no ensino médio, o ensino fundamental encontra-se sob a responsabilidade de ambos os entes.
Ademais, no exercício de sua competência privativa, nos termos do art. 22, inciso XXIV, da Constituição, a União editou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro 1996), a qual trouxe novos elementos ao quadro de competências dos entes federados, desta feita com um viés material. Tirante às novas funções que foram atribuídas, a LDB criou a figura dos sistemas de ensino, que além de constituir uma ordenação articulada dos vários elementos necessários à consecução dos objetivos educacionais preconizados, funciona também para classificar as diversas instituições públicas e privadas. Assim, cada ente, no âmbito do seu respectivo sistema de ensino, pode baixar normas complementares, as quais passam a ser de observância obrigatória por parte das instituições integrantes.
Acerca do sistema de ensino estadual, a LDB dispõe que todas as instituições mantidas pelo Poder Público estadual integram o referido sistema, o que abrange as instituições públicas estaduais de educação profissional e tecnológica, voltadas à preparação do estudante para o mercado de trabalho, nos termos dos arts. 17, inciso I e 39, § 2º, incisos I e II, da Lei Federal 9.394/96:
Art. 17. Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal compreendem:
I - as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e pelo Distrito Federal;
Art. 39. A educação profissional e tecnológica, no cumprimento dos objetivos da educação nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia. (Redação dada pela Lei nº 11.741, de 2008)
§ 1o Os cursos de educação profissional e tecnológica poderão ser organizados por eixos tecnológicos, possibilitando a construção de diferentes itinerários formativos, observadas as normas do respectivo sistema e nível de ensino. (Incluído pela Lei nº 11.741, de 2008)
§ 2o A educação profissional e tecnológica abrangerá os seguintes cursos: (Incluído pela Lei nº 11.741, de 2008)
I – de formação inicial e continuada ou qualificação profissional; (Incluído pela Lei nº 11.741, de 2008)
II – de educação profissional técnica de nível médio; (Incluído pela Lei nº 11.741, de 2008)
III – de educação profissional tecnológica de graduação e pós-graduação. (Incluído pela Lei nº 11.741, de 2008)
Logo, no que tange ao campo de aplicação, fica reconhecida a possibilidade de exercício da competência legislativa em âmbito estadual na forma preconizada pelo Projeto de Lei nº 701/2019.
Por outro lado, do ponto de vista material, cumpre registrar que a política de cotas é uma forma de garantir o acesso a determinada vaga (vestibular, concurso, emprego, benefício etc.) que tem por finalidade minorar um processo histórico-social de exclusão de cidadãos específicos, seja beneficiando minorias, seja assegurando condições mínimas de exercício de direitos.
Pelo primado do Estado Democrático de Direito, todos os indivíduos deveriam competir em igualdade de condições na acessibilidade das vagas a cargos públicos, universidades públicas, cargos políticos etc. Todavia, por uma série de fatores possíveis, alguns cidadãos acabam alijados da participação do processo concorrencial, oportunidade em que o Estado é instado a minorar as distorções, tentando proporcionar algum equilíbrio entre os concorrentes.
Nesse contexto estão as discriminações positivas ou affirmative actions (ações afirmativas), que têm amparo no princípio da isonomia material (e não meramente formal), segundo a qual os cidadãos desiguais devem ser tratados de modo desigual, na medida da sua desigualdade. (vide: MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa “affirmative action” no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; e BARBOSA, Rui. Oração aos moços: edição comemorativa do centenário de nascimento do grande brasileiro. São Paulo: Reitoria da Universidade de São Paulo, 1949).
Segundo David Araújo e Nunes Júnior, “o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições”. (ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006).
Há de ressaltar, contudo, que não é qualquer política de cota que se mostra compatível com os preceitos constitucionais. Em verdade, a análise deve ser feita caso a caso, sob pena de o ordenamento jurídico passar a promover discriminações negativas – e não positivas –, conferindo vantagem a cidadãos que não se encontram em situação de inferioridade ou vulnerabilidade.
Na hipótese ora analisada, verifica-se que o Projeto de Lei nº 701/2019 prevê a reserva de 80% de vagas de cursos técnicos ofertados por instituições públicas de educação profissional para estudantes que tenham cursado integralmente as séries finais do ensino fundamental ou o ensino médio em escolas públicas, conforme o tipo de curso (integrado, concomitante ou sequencial). Ainda, estabelece a destinação 50% dessas vagas, preferencialmente, a alunos de baixa renda.
Impende destacar que, em âmbito federal, já existe norma similar que reserva vagas em instituições federais de ensino técnico de nível médio em favor de estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas. Trata-se do art. 4º da Lei Federal nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências:
Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.
Em casos análogos, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de julgar a matéria, entendendo pela plena constitucionalidade dos sistemas de cotas adotados em universidades federais:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. POLÍTICA DE AÇÕES AFIRMATIVAS. INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR. USO DE CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL. AUTOIDENTIFICAÇÃO. RESERVA DE VAGA OU ESTABELECIMENTO DE COTAS. CONSTITUCIONALIDADE. RECURSO IMPROVIDO. I – Recurso extraordinário a que se nega provimento.
(RE 597285, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-053 DIVULG 17-03-2014 PUBLIC 18-03-2014)
Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.
IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.
(ADPF 186, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014)
Portanto, a priori, a previsão de cota a alunos de escolas revela-se consentânea com a situação de exclusão vivenciada por aqueles que, em regra, possuem dificuldades para o acesso a uma formação adequada para o mercado de trabalho.
Desse modo, inexistem vícios de inconstitucionalidade ou de ilegalidade que possam comprometer a validade do Projeto de Lei ora analisado.
Por fim, registra-se que caberá às Comissões responsáveis pela análise de mérito, avaliar a adequação dos critérios elencados na proposição, em especial o percentual e a pertinência dos grupos beneficiados.
Diante do exposto, opina-se pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 701/2019, de autoria do Deputado Professor Paulo Dutra.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, o parecer desta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, é pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 701/2019, de autoria do Deputado Professor Paulo Dutra.
Histórico