
Parecer 2848/2020
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1049/2020
AUTORIA: DEPUTADO GUILHERME UCHOA
A PROPOSIÇÃO INSTITUI PROGRAMA DE SEGURANÇA ALIMENTAR PARA ATENDIMENTO DAS POPULAÇÕES MAIS VULNERÁVEIS, DURANTE O ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA DECORRENTE DA PANDEMIA COVID-19, NO ESTADO DE PERNAMBUCO. LEI AUTORIZATIVA. CONFIGURAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E DE VÍCIO DE ANTIJURIDICIDADE, CONFORME ORIENTAÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL. INGERÊNCIA NA ATRIBUIÇÃO DO CHEFE DO EXECUTIVO PARA EXERCER A DIREÇÃO SUPERIOR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO. MATÉRIA DE INICIATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO (ART. 19, § 1º, INCISOS II E VI, DA CE/89). PELA REJEIÇÃO.
1. RELATÓRIO
É submetido a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 1049/2020, de autoria do Deputado Guilherme Uchoa, que busca autorizar o Governo do Estado de Pernambuco a instituir o Programa de Segurança Alimentar, para atendimento das populações mais vulneráveis durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia por COVID-19, bem como enquanto perdurarem seus efeitos econômicos negativos.
O Projeto de Lei em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 223, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
Cabe à Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, nos termos do art. 94, inciso I, do Regimento Interno desta Casa, manifestar-se sobre a constitucionalidade, legalidade e juridicidade das matérias submetidas à sua apreciação.
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 194, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa, haja vista que o deputado estadual detém competência para propor projetos de lei ordinária.
Apesar de elogiável a iniciativa em prol da saúde e do fornecimento de alimentação para as famílias necessitadas, o Projeto de Lei Ordinária nº 1049/2020 apresenta vícios que impedem sua aprovação no âmbito desta Comissão.
Inicialmente, verifica-se que em toda a proposição ora examinada prevalece o termo “autoriza” o Poder Executivo a instituir o Programa de Segurança Alimentar e “autoriza” aquele poder a adotar várias ações para pôr em prática o referido programa. Todavia, tal redação caracteriza a denominada “lei autorizativa”, cuja constitucionalidade é questionada pela doutrina e pelos tribunais pátrios.
Com efeito, consideram-se “autorizativas” as leis de iniciativa parlamentar que têm como objeto uma permissão ao Poder Executivo para executar atos que já são de sua competência constitucional. Segundo Fernandes, os projetos de lei autorizativos apresentam vícios de constitucionalidade e de juridicidade, in verbis:
(...), projeto de lei de iniciativa parlamentar que trate de algum assunto mencionado no citado art. 61, §1°, da Carta Magna, será considerado inconstitucional, de plano, sob o ângulo formal, por conter vício de iniciativa. Tal vício não pode ser sanado sequer pela sanção presidencial posterior, eivando de nulidade o diploma legal assim produzido, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal.
A violação à regra constitucional da iniciativa do processo legislativo representa indevida afronta ao princípio da separação dos poderes. Assim, quando um membro do Congresso Nacional apresenta projeto de lei contrário ao disposto no art. 61, §1°, da Constituição, está, na verdade, tentando usurpar competência deferida privativamente ao Chefe do Poder Executivo pela Carta Magna.
Nesse sentido, a apresentação de projetos de lei autorizativos por parlamentares visa, em regra, contornar tal inconstitucionalidade, fazendo com que seja aprovado comando legal que não obrigue, mas apenas autorize o Poder Executivo a praticar uma determinada ação.
Embora não haja obrigação de cumprimento, é certo que a Constituição não menciona que a iniciativa privativa do Presidente da República restringe-se às leis impositivas. Dessa forma, qualquer projeto que viole o disposto no art. 61, §1°, da Constituição, como os projetos autorizativos, é inconstitucional, obrigando ou não o Poder Executivo.
(...)
Além disso, os projetos de lei autorizativos de iniciativa parlamentar são injurídicos, na medida em que não veiculam norma a ser cumprida por outrem, mas mera faculdade (não solicitada por quem de direito) que pode ou não ser exercida por quem a recebe.
O projeto autorizativo nada acrescenta ao ordenamento jurídico, pois não possui caráter obrigatório para aquele a quem é dirigido. Apenas autoriza o Poder Executivo a fazer aquilo que já lhe compete fazer, mas não atribui dever ao Poder Executivo de usar a autorização, nem atribui direito ao Poder Legislativo de cobrar tal uso.
A lei, portanto, deve conter comando impositivo àquele a quem se dirige, o que não ocorre nos projetos autorizativos, nos quais o eventual descumprimento da autorização concedida não acarretará qualquer sanção ao Poder Executivo, que é o destinatário final desse tipo de norma jurídica.
A autorização em projeto de lei consiste em mera sugestão dirigida a outro Poder, o que não se coaduna com o sentido jurídico de lei, acima exposto. Tal projeto é, portanto, injurídico. Essa injuridicidade independe da matéria veiculada no projeto, e não se prende à iniciativa privativa prevista no art. 61, §1°, da Constituição. (FERNANDES, Márcio Silva. “Inconstitucionalidade de projetos de lei autorizativos”. Disponível em: <http://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1375/inconstitucionalidade_projetos_fernandes.pdf?sequence=4>. Acesso em: 27.03.2020)
No mesmo sentido, a jurisprudência pátria repele a utilização de leis autorizativas:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MUNICÍPIO DE HERVAL. LEI AUTORIZATIVA. MATÉRIA QUE VERSA SOBRE ORGANIZAÇÃO E O FUNCIONAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO. INICIATIVA PRIVATIVA DO PODER LEGISLATIVO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. 1. Padece de inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, a Lei Municipal nº 1.101/2013, do Município de Herval, que dispõe sobre o transporte para locomoção de alunos de Herval para Arroio Grande/RS, por tratar de matéria cuja competência privativa para legislar é do Chefe do Executivo. 2. A expressão "fica o Poder Executivo Municipal autorizado a viabilizar transporte...", em que pese a louvável intenção do legislador, não significa mera concessão de faculdade ao Prefeito para que assim proceda, possuindo evidente caráter impositivo. 3. Violação ao disposto nos artigos 8º, 10, 60, inciso II, e 82, inciso VII, todos da Constituição Estadual. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. UNÂNIME. (Ação Direta de Inconstitucionalidade Nº 70055716161, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em 28/10/2013). (grifos acrescidos)
Ação direta de inconstitucionalidade. Lei municipal que “institui a Semana Municipal do Egresso e dá outras providências”. Lei autorizativa. Norma de iniciativa parlamentar que interfere na prática de atos de gestão administrativa. Separação dos poderes. Inconstitucionalidade configurada. Ação julgada procedente. (Direta de Inconstitucionalidade nº 2003549-62.2015.8.26.0000, Tribunal de Justiça de São Paulo, Órgão Especial do TJ/SP, relator Marcio Bartoli) (grifos acrescidos).
EMENTA: AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA. ARTIGO 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NORMA AUTORIZATIVA. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A implantação de campus universitário sem que a iniciativa legislativa tenha partido do próprio estabelecimento de ensino envolvido caracteriza, em princípio, ofensa à autonomia universitária (CF, artigo 207). Plausibilidade da tese sustentada. 2. Lei autorizativa oriunda de emenda parlamentar. Impossibilidade. Medida liminar deferida. (ADI 2367 MC/SP – São Paulo. Medida Cautelar na Ação Direito de Inconstitucionalidade. Relator: Min. Maurício Corrêa. Julgamento: 05/04/2001 – Tribunal Pleno – DJ 05/04/2004).
Nesse contexto, é possível deduzir que a mera autorização prevista no texto do Projeto de Lei nº 1049/2020 compromete sua validade, seja pela ocorrência de vício formal de iniciativa, seja pela ausência de juridicidade.
Nada obstante, mesmo que desconsiderada a questão da autorização, a adoção de um comando cogente no sentido de tornar obrigatória a instituição do Programa de Segurança Alimentar pelo Poder Executivo também ensejaria a inconstitucionalidade da proposição.
Em uma primeira abordagem, a medida violaria os princípios da separação dos poderes (art. 2º da Constituição Federal) e da reserva da administração (art. 84, inciso II, da Constituição de 1988 c/c art. 37, inciso II, da Constituição Estadual), tendo em vista a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo.
Sem embargo, o art. 2º da Constituição de 1988 consagra a existência de Poderes independentes e harmônicos e pressupõe o reconhecimento de autonomia administrativa, financeira e funcional para cada um dos respectivos órgãos exercerem suas funções constitucionais.
Ademais, a Reserva da Administração constitui construção doutrinária e jurisprudencial e tem por finalidade evitar a incursão do Poder Legislativo em matérias sujeitas à discricionariedade administrativa dos demais Poderes.
Desta feita, sob a perspectiva dos mencionados princípios constitucionais, percebe-se a caracterização de inconstitucionalidade material em face da incompatibilidade do Projeto de Lei em comento perante a Constituição Federal.
Por outro lado, constata-se, também, a incidência de vício de iniciativa (inconstitucionalidade formal subjetiva), pois o ordenamento jurídico estadual afirma que a deflagração do processo legislativo é privativa do Governador do Estado no que tange à criação de despesas e de novas atribuições ao Poder Executivo, tal como se daria caso esta proposição deixasse de ser autorizativa. De fato, o art. 19, § 1º, incisos II e VI, da Constituição Estadual, prescreve:
Art. 19. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador, ao Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Contas, ao Procurador-Geral da Justiça, ao Defensor Público-Geral do Estado e aos cidadãos, nos casos e formas previstos nesta Constituição.
§ 1º É da competência privativa do Governador a iniciativa das leis que disponham sobre:
[...]
II - criação e extinção de cargos, funções, empregos públicos na administração direta, autárquica e fundacional, ou aumento de despesa pública, no âmbito do Poder Executivo;
[...]
VI - criação, estruturação e atribuições das Secretarias de Estado, de órgãos e de entidades da administração pública.
Diante do exposto, opina-se pela rejeição, por vícios de inconstitucionalidade e de antijuridicidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 1049/2020, de autoria do Deputado Guilherme Uchoa.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, o parecer desta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, é pela rejeição, por vícios de inconstitucionalidade e de antijuridicidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 1049/2020, de autoria do Deputado Guilherme Uchoa.
Histórico