
Parecer 6056/2025
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 634/2023
AUTORIA: DEPUTADO ABIMAEL SANTOS
PROPOSIÇÃO QUE ESTABELECE PENALIDADES ADMINISTRATIVAS AOS AGENTES PÚBLICOS QUE COMETEREM ATOS DE CORRUPÇÃO E IMPROBIDADE ENVOLVENDO RECURSOS E BENS DESTINADOS AO ENFRENTAMENTO DE PANDEMIAS E/OU CALAMIDADES PÚBLICAS. INGERÊNCIA NO EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO. MATÉRIA SUJEITA À INICIATIVA PRIVATIVA GOVERNADOR DO ESTADO PARA DISPOR SOBRE REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES (ART. 19, § 1º, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL). AFRONTA ÀS REGRAS DE INICIATIVA RESERVADA DE CADA PODER E ÓRGÃO AUTÔNOMO (ARTS. 73,75, 93, 96 E 128, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ART. 73-A DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL). DESCONFIGURAÇÃO DO REGIME DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS AGENTES POLÍTICOS. VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE. PELA REJEIÇÃO.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 634/2023, de autoria do Deputado Abimael Santos, que estabelece penalidades administrativas aos agentes públicos que cometerem atos de corrupção e improbidade envolvendo recursos e bens destinados ao enfrentamento de pandemias e/ou calamidades públicas.
Em síntese, a proposição dispõe que o agente público vinculado a qualquer ente da administração direta ou indireta dos Poderes do Estado de Pernambuco que praticar atos de improbidade administrativa, malversando bens ou recursos destinados ao enfrentamento de pandemias e/ou estados de calamidade pública, ficará sujeito às penalidades administrativas de: 1) multa, no valor de até 10 (dez) vezes da multa civil prevista na Lei Federal nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e/ou 2) impedimento, pelo prazo de 10 (dez) anos, de ocupar qualquer cargo público ou de participar de qualquer contratação no âmbito da administração pública estadual.
O Projeto de Lei tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 253, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 223, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa. Entretanto, apesar do louvável desígnio da autora, o Projeto de Lei Ordinária nº 634/2023 incorre em vícios de inconstitucionalidade que impedem sua aprovação por esta Comissão.
Com efeito, a proposta, a pretexto de instituir penalidades administrativas aplicáveis a agentes públicos no âmbito do Estado de Pernambuco, inaugura sistema de responsabilização paralelo ao regime jurídico dos servidores públicos e dos agentes políticos. Vale dizer: as sanções administrativas previstas na proposição imiscuem-se no poder disciplinar a ser exercido por cada Poder ou órgão autônomo.
Cumpre ressaltar que, sob o prisma subjetivo, o Projeto de Lei Ordinária ora analisado vincula somente pessoas que mantêm um vínculo especial com Estado, tais como: servidores públicos latu sensu (estatutários, empregados públicos e temporários, militares, membros da Magistratura, Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública) e agentes políticos (Governador, Secretários de Estado e Deputados Estaduais).
Ademais, sob o aspecto objetivo, as sanções administrativas previstas na proposição decorrem da violação ao dever de probidade, inerente à atuação de todos os agentes públicos. De fato, segundo a lição de Dirley da Cunha Júnior:
“O dever de probidade decorre do princípio constitucional da moralidade administrativa. Com efeito, consoante o conteúdo jurídico deste princípio, a Administração Pública deve agir com probidade, isto é, com ética, honestidade, lealdade, decoro e boa-fé.
A Constituição Federal de 1988, além de haver consagrado a moralidade administrativa entre os princípios expressos da Administração Pública, previu que os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Ademais, a Lei nº 8.429/92 catalogou os atos de improbidade, dividindo-os em três tipos: 1) os atos de importam enriquecimento ilícito (art. 9º); 2) os atos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e 3) os atos de atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11).
Assim, à vista do referido diploma legal, pode-se concluir que o dever de probidade é a obrigação de o gestor público agir com retidão e exação no desempenho de suas atribuições, não procedendo de modo a implicar em enriquecimento ilícito, causar prejuízo ao erário ou atentar contra os princípios da Administração Pública.” (CUNHA JUNIOR, Dirley da. Curso de Direito Administrativo. 14 ed. Editora JusPodivm, 2015, p. 71-72).
Firmadas essas premissas, embora se reconheça a incomunicabilidade de instâncias, a seara administrativa já estabelece as sanções aplicáveis aos agentes públicos que incorrerem em atos de improbidade. Nesse contexto, não se justifica a imposição de novas penalidades, com fulcro em um pretenso poder de polícia, sob pena de ingerência na atribuição disciplinar de cada órgão independente ou autônomo, em afronta aos princípios do Ne Bis in Idem, da Separação de Poderes (art. 2º da Constituição Federal) e da Reserva da Administração (art. 84, inciso II, da Constituição Federal c/c art. 37, inciso II, da Constituição Estadual).
Além disso, é preciso atentar que o regime de responsabilização administrativa dos agentes públicos deve obediência às regras de iniciativa reservada previstas na legislação, conforme o órgão em que as funções são exercidas e o tipo de vínculo mantido.
Em relação aos servidores estatutários, a improbidade administrativa constitui uma das hipóteses de demissão (art. 204, inciso XV, da Lei nº 6.123, de 20 de julho de 1968), de modo que a imposição de outras penalidades a esses agentes exige a deflagração do processo legislativo pelo Governador do Estado, nos termos do art. 19, § 1º, inciso IV, da Constituição Estadual:
Art. 19. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador, ao Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Contas, ao Procurador-Geral da Justiça, ao Defensor Público-Geral do Estado e aos cidadãos, nos casos e formas previstos nesta Constituição.
§ 1º É da competência privativa do Governador a iniciativa das leis que disponham sobre:
[...]
IV - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos públicos, estabilidade e aposentadoria de funcionários civis, reforma e transferência de integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar para a inatividade; (Redação alterada pelo art. 1º da Emenda Constitucional n° 4, de 22 de julho de 1994).
Da mesma maneira, no que tange a membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública Estadual, cabe, respectivamente, ao Supremo Tribunal Federal, ao Procurador-Geral de Justiça e ao Defensor Público-Geral, a iniciativa de leis que disponham sobre estatutos funcionais e as sanções aplicáveis pelo seu descumprimento (arts. 93 e 128, § 5º, da Constituição Federal e art. 73-A da Constituição Estadual). Outrossim, apesar de não existir norma expressa, a iniciativa reservada para dispor sobre o regime disciplinar de Conselheiros e Conselheiros Substitutos decorre da autonomia reconhecida ao Tribunal de Contas estadual, por interpretação sistemática dos arts. 73, 75 e 96, da Constituição Federal (ADI nº 4643, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 15.05.2019).
Logo, a presente proposição, de origem parlamentar, também está maculada por vício de inconstitucionalidade subjetiva em face da usurpação à iniciativa de cada Poder ou órgão autônomo para prever penalidades administrativas relacionadas ao exercício das atribuições funcionais.
Por fim, frisa-se que os agentes políticos (Governador, Secretários de Estado e Deputados) encontram-se submetidos a um regime peculiar de dupla responsabilização, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Ementa: Direito Constitucional. Agravo Regimental em Petição. Sujeição dos Agentes Políticos a Duplo Regime Sancionatório em Matéria de Improbidade. Impossibilidade de Extensão do Foro por Prerrogativa de Função à Ação de Improbidade Administrativa. 1. Os agentes políticos, com exceção do Presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, de modo que se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa, quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade. Não há qualquer impedimento à concorrência de esferas de responsabilização distintas, de modo que carece de fundamento constitucional a tentativa de imunizar os agentes políticos das sanções da ação de improbidade administrativa, a pretexto de que estas seriam absorvidas pelo crime de responsabilidade. A única exceção ao duplo regime sancionatório em matéria de improbidade se refere aos atos praticados pelo Presidente da República, conforme previsão do art. 85, V, da Constituição. 2. O foro especial por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal em relação às infrações penais comuns não é extensível às ações de improbidade administrativa, de natureza civil. Em primeiro lugar, o foro privilegiado é destinado a abarcar apenas as infrações penais. A suposta gravidade das sanções previstas no art. 37, § 4º, da Constituição, não reveste a ação de improbidade administrativa de natureza penal. Em segundo lugar, o foro privilegiado submete-se a regime de direito estrito, já que representa exceção aos princípios estruturantes da igualdade e da república. Não comporta, portanto, ampliação a hipóteses não expressamente previstas no texto constitucional. E isso especialmente porque, na hipótese, não há lacuna constitucional, mas legítima opção do poder constituinte originário em não instituir foro privilegiado para o processo e julgamento de agentes políticos pela prática de atos de improbidade na esfera civil. Por fim, a fixação de competência para julgar a ação de improbidade no 1o grau de jurisdição, além de constituir fórmula mais republicana, é atenta às capacidades institucionais dos diferentes graus de jurisdição para a realização da instrução processual, de modo a promover maior eficiência no combate à corrupção e na proteção à moralidade administrativa. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(Pet 3240 AgR, Relator(a): TEORI ZAVASCKI, Relator(a) p/ Acórdão: ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-171 DIVULG 21-08-2018 PUBLIC 22-08-2018).
Isto posto, não se revela compatível com o ordenamento jurídico pátrio a imposição de sanções de caráter meramente administrativo, especialmente quando as penalidades da proposta em apreço sobrepõem-se – inclusive de forma mais gravosa – às penas constantes no art. 12 da Lei Federal nº 8.429/1992.
Diante do exposto, opina-se pela rejeição, por vício de inconstitucionalidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 634/2023, de autoria do Deputado Abimael Santos.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, o parecer desta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, é pela rejeição, por vício de inconstitucionalidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 634/2023, de autoria do Deputado Abimael Santos.
Histórico