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Parecer 5449/2025

Texto Completo

PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1610/2024

AUTORIA: DEPUTADO ADALTO SANTOS

 

PROPOSIÇÃO QUE Estabelece penalidade pecuniária à pessoa física ou jurídica que disponibilizar para crianças ou adolescentes, mesmo que de forma gratuita, cigarros, dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), cigarros eletrônicos ou dispositivos similares, no âmbito do Estado de Pernambuco. CONDUTA JÁ TIPIFICADA COMO DELITO PENAL E QUE ENSEJA RESPONSABILIZAÇÃO CÍVEL. AFRONTA À COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PENAL E CIVIL (ART. 22, I). VIOLAÇÃO AO PRINCIPIO DO NE BIS IN IDEM. PRECEDENTES DO STF.VÍCIOS DE INCONSTITUCIONALIDADE E ANTIJURIDICIDADE. PELA REJEIÇÃO.

 

1. RELATÓRIO

 

É submetido a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, Projeto de Lei Ordinária nº 1610/2024, de autoria do Deputado Adalto Santos, que “estabelece penalidade pecuniária à pessoa física ou jurídica que disponibilizar para crianças ou adolescentes, mesmo que de forma gratuita, cigarros, dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), cigarros eletrônicos ou dispositivos similares, além de seus acessórios, no âmbito do Estado de Pernambuco”.

O parágrafo único do art. 1º especifica as substâncias e modalidades de cigarros atingidas pela vedação.

O Projeto de Lei em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (Art. 253, III, Regimento Interno).

É o relatório.

2. PARECER DO RELATOR

A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 223, II, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa.

Inicialmente, convém observar que que o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 243, tipifica como crime, imputando pena de detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa, vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica. Além disso, caso haja danos morais ou materiais decorrentes de tais atos,  caberá, ainda, a responsabilização civil.

 

Nesse contexto, o que se observa é que a presente Proposição pretende impor  sanções administrativas a atos que já são passíveis de sanção penal e cível. Demonstrar-se-á abaixo, contudo, que tal pretensão afronta o Princípio do Ne Bis In Idem e a competência privativa da União para legislar sobre direito penal e civil (art. 22, I da CF/88).

 

No que diz respeito à afronta ao Princípio do Ne Bis in Idem, é mister falar sobre a relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. A melhor doutrina vêm se posicionando no sentido de que tal relação deve ser regida pelo Princípio da Independência mitigada.

 

Nesse sentido são esclarecedores os argumentos trazidos pelo Min. Gilmar Mendes e por Bruno Tadeu Buonicore em artigo publicado na IBCCCRIM, transcrito abaixo:

 

“Diante  da  existência  daquilo  que  se  convencionou  chamar  de  princípio da independência das instâncias, propõe-se aqui clarificar e  desenvolver  o  que  denominamos  princípio  da  independência  mitigada,  especificamente na  relação  entre  Direito  Penal  e  Direito  Administrativo  Sancionador  –  Lopes  Jr.  e  Saboya  reconhecem  nesta  empreitada  uma  delimitação  de  ordem  paradigmática  e  “um  bom  começo”  na  elucidação  das  complexas  problemáticas  dogmáticas  e  hermenêuticas  que  surgem  da  relação  entre  essas  distintas e próximas esferas normativas.

Nessa  linha,  o  Tribunal  Europeu  de  Direitos  Humanos  (TEDH)  estabelece,   a   partir   do   paradigmático   caso   Oztürk,   em   1984,   um  “conceito  amplo  de  direito  penal”,  que  reconhece  o  Direito  Administrativo  Sancionador  como  um  “autêntico  subsistema”  da  ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais  se  estenderiam  para  o  âmbito  do  Direito  Administrativo  Sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato.

Confira-se in verbis os apontamentos de Oliveira: “A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias constitucionais e  penais  para  o  direito  administrativo  sancionador.  As  mínimas  garantias  devem  ser:  legalidade,  proporcionalidade,  presunção  de  inocência e ne bis in idem”.

A  assunção  desse  pressuposto  pelo  intérprete,  principalmente  no  tocante  ao  princípio  do  ne  bis  in  idem,  resulta  na  compreensão  que  tais  princípios  devem  ser  aplicados  não  somente  dentro  dos  subsistemas,   mas   também   e   principalmente   na   relação   entre   ambos  os  subsistemas  –  trata-se  aqui  justamente  de  uma  baliza  hermenêutica para a qualidade da relação.

A  Constituição  Federal  anuncia,  no  art.  37,  §  4º,  uma  noção  de  independência  entre  as  esferas  sancionadoras  aqui  abordadas.  Tal  independência, contudo, é complexa e deve ser interpretada como uma independência mitigada, sem ignorar a máxima do ne bis in idem.

(...)

A  adoção  do  princípio  da  independência  mitigada  entre  as  esferas  penal e administrativa sancionadora – esta parece ser a posição mais acertada diante dos parâmetros constitucionais reitores do sistema penal, principalmente da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade – na interpretação da lei de improbidade administrativa (Lei  8.429/92),  sobretudo  do  art.  12,  nos  leva  ao  entendimento  de  que  a  mesma  narrativa  fático-probatório  que  dá  ensejo  a  uma  decisão  de  mérito  definitiva  na  esfera  penal,  que  fixa  uma  tese  de  inexistência  do  fato  ou  de  negativa  de  autoria,  não  pode  provocar novo  processo  no  âmbito  do  Direito  Administrativo  Sancionador  – círculos  concêntricos  de  ilicitude  não  podem  levar  a  uma  dupla  persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o  bis  in  idem  vedado  no  que  diz  respeito  à  persecução  penal  e  ao  Direito Administrativo Sancionador pelos mesmos fatos.”

(A VEDAÇÃO DO BIS IN IDEM NA RELAÇÃO ENTRE DIREITO PENAL E DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E O PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA MITIGADA. Buonicore, Bruno e Mendes, Gilmar. Boletim IBCCCRIM, ano 29, nº 340, março de 2021).

 

Além do mais, recentemente, no julgamento da ADI 7715/MC ajuizada contra a Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, o STF reiterou seu entendimento no sentido de que a citada pretensão sancionatória de natureza administrativa finda por invadir a competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal (art. 22,I da CF/88):

 

"Direito penal, licitações e contratos. Referendo na medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso. Competência privativa da União. Art. 22, I e XXVII, da Constituição da República. Concessão da medida cautelar. Referendo. I. Caso em exame 1. Inconstitucionalidade, à luz do art. 21, I e XXVII, da Constituição da República, da Lei do Estado de Mato Grosso nº 12.430/2024, que “disciplina a aplicação de sanções a ocupantes de propriedades privadas rurais e urbanas comprovadamente enquadrados conforme o disposto na Lei Federal n° 4.947, de 6 de abril de 1966, e nos arts. 150 e 161, § 1º, II, do Código Penal no âmbito” daquela unidade da federação. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em saber se há, na espécie, usurpação da competência privativa da União para legislar sobre a matéria (art. 22, I e XXVII, da Constituição Federal). III. Razões de decidir 3. O teor da Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso deixa transparecer o objetivo do legislador estadual de ampliar o rol sancionatório contido no regramento punitivo editado pela União, o que denota indevido ingresso na seara reservada ao direito penal. IV. Dispositivo 5. Concessão da medida cautelar para suspender a eficácia da Lei do Estado de Mato Grosso nº 12.430/2024. (Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 22, I. Jurisprudência relevante citada: ADI 2935, ADI 7200 e ADI 3639). (ADI 7715 MC-Ref, Relator(a): FLÁVIO DINO, Tribunal Pleno, julgado em 14-10-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 18-10-2024  PUBLIC 21-10-2024)

Neste diapasão, face ao seu teor bastante esclarecedor, transcrevo trecho do voto do Relator:

"O diploma estadual atacado traz em seu art. 1º, de forma explícita, que se destina a disciplinar a aplicação de sanções relativas ao cometimento dos tipos penais vertidos nos arts. 150 e 161, § 1º, II, do Código Penal, os quais têm por rubricas laterais a “violação de domicílio” e o “esbulho possessório”.

Entendo que, ao assim inaugurar a Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, a redação adotada deixa transparecer o objetivo do legislador estadual de ampliar o rol sancionatório contido no regramento punitivo editado pela União, o que denota indevido ingresso na seara reservada ao direito penal.

Reforçam a compreensão de que, na hipótese, a lei do Estado de Mato Grosso sinaliza conter o vício da inconstitucionalidade, por usurpação da competência privativa de que trata o art. 22, I, da Lei Maior, os seguintes precedentes desta Casa:

“EMENTA PENAL. PROCESSUAL PENAL. PENITENCIÁRIO. FINANCEIRO. CONSTITUCIONAL. LEI COMPLEMENTAR N. 68 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. DESTINAÇÃO DOS RECURSOS PROVENIENTES DAS PENAS DE MULTA. MATÉRIA DE DIREITO PENAL. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO (CF, ART. 22, I). MODULAÇÃO DE EFEITOS. EFICÁCIA EX NUNC. 1. A destinação dos recursos financeiros originados do pagamento das penas de multa se insere no âmbito do direito penal. Por isso, é da União a competência privativa para legislar sobre a matéria (CF, art. 22, I). 2. O Estado do Espírito Santo, no art. 2º, I, da Lei Complementar n. 68/1995, ao dispor sobre os recursos oriundos das penas de multa, endereçando-os ao fundo penitenciário estadual, invadiu a competência privativa da União, a configurar vício de inconstitucionalidade formal. 3. Por motivos de segurança jurídica, emprestam-se efeitos prospectivos à decisão, a serem observados a partir da publicação da ata de julgamento. 4. Ação conhecida e pedido  julgado procedente.” (ADI 2935, Relator(a): NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 21-11-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15-12-2023 PUBLIC 18-12- 2023)

“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE VEDA A DESTRUIÇÃO E INUTILIZAÇÃO DE BENS PARTICULARES APREENDIDOS EM OPERAÇÕES AMBIENTAIS. 1. Ação direta contra a Lei nº 1.701/2022, do Estado de Roraima, que proíbe os órgãos ambientais de fiscalização e a Polícia Militar de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos nas operações e fiscalizações ambientais. 2. Ao proibir a destruição de instrumentos utilizados na prática de infrações ambientais, a lei questionada incorre em inconstitucionalidade formal. Usurpação de competência da União para legislar sobre direito penal e processual penal, bem como para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988). 3. De igual modo, a norma questionada vulnera o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988). Isso porque a proibição de destruir instrumentos utilizados em infrações ambientais acaba permitindo a prática de novos ilícitos, inviabilizando a plenitude do exercício poder de polícia ambiental. 4. A manutenção dos efeitos da norma estadual pode acarretar prejuízo para a devida repressão à prática de ilícitos ambientais, com potenciais danos irreparáveis ao meio ambiente e às populações indígenas no Estado de Roraima. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.701, de 5.7.2022, do Estado de Roraima, com a seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional lei estadual que proíbe os órgãos policiais e ambientais de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos em operações, por violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal e processual penal, para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988) e por afronta ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988)”.” (ADI 7200, Relator(a): ROBERTO BARROSO,Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-

2023)

“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE VEDA A DESTRUIÇÃO E INUTILIZAÇÃO DE BENS PARTICULARES APREENDIDOS EM OPERAÇÕES AMBIENTAIS. 1. Ação direta contra a Lei nº 1.701/2022, do Estado de Roraima, que proíbe os órgãos ambientais de fiscalização e a Polícia Militar de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos nas operações e fiscalizações ambientais. 2. Ao proibir a destruição de instrumentos utilizados na prática de infrações ambientais, a lei questionada incorre em inconstitucionalidade formal. Usurpação de competência da União para legislar sobre direito penal e processual penal, bem como para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988). 3. De igual modo, a norma questionada vulnera o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988). Isso porque a proibição de destruir instrumentos utilizados em infrações ambientais acaba permitindo a prática de novos ilícitos, inviabilizando a plenitude do exercício poder de polícia ambiental. 4. A manutenção dos efeitos da norma estadual pode acarretar prejuízo para a devida repressão à prática de ilícitos ambientais, com potenciais danos irreparáveis ao meio ambiente e às populações indígenas no Estado de Roraima. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.701, de 5.7.2022, do Estado de Roraima, com a seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional lei estadual que proíbe os órgãos policiais e ambientais de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos em operações, por violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal e processual penal, para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988) e por afronta ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988)”.” (ADI 7200, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023)

(…)

Por seu turno, compreendo que a incidência de uma espécie de Direito Penal Estadualabala as regras estruturantes da nossa Federação e cria grave insegurança jurídica, inclusive em virtude do risco de multiplicação de normas similares de Direito Penal”. (…)"

Ainda que se argumentasse que a sanção administrativa tem natureza reparadora, não haveria como prosperar a presente Proposição tendo em vista que cabe à União, privativamente, legislar sobre direito civil.

Diante de tais argumentos, forçoso é concluir que o Projeto de Lei em análise padece de vícios de inconstitucionalidade e antijuridicidade.

Vale salientar, por fim, que há precedentes desta Comissão de Justiça no sentido de aprovar leis que instituíram sanções administrativas decorrentes de fatos tipificados como crime ou contravenção penal. Todavia, diante dos reiterados posicionamentos recentes do STF sobre a matéria, bem como da doutrina mais abalizada, não resta outro entendimento a esta Comissão a não ser opinar pela inconstitucionalidade de Projetos de Lei que tratam de tal matéria.

Diante do exposto, opina-se pela rejeição do Projeto de Lei Ordinária nº 1610/2024, de autoria do Deputado Adalto Santos, nos termos do substitutivo acima apresentado

É o Parecer do Relator.

3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO

Ante o exposto, tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela rejeição do Projeto de Lei Ordinária nº 1610/2024, de autoria do Deputado Adalto Santos, nos termos do substitutivo apresentado pelo relator, constante do presente Parecer, doravante de autoria deste Colegiado.

Histórico

[18/03/2025 14:15:54] ENVIADA P/ SGMD
[18/03/2025 18:47:41] ENVIADO PARA COMUNICA��O
[18/03/2025 18:48:05] ENVIADO P/ PUBLICAÇÃO
[19/03/2025 09:50:59] PUBLICADO
[19/03/2025 20:08:32] ARQUIVADO





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