
Parecer 5431/2025
Texto Completo
PROJETO DE LEI Nº 20/2023
AUTORIA: DEPUTADO JOÃO PAULO COSTA
PROPOSIÇÃO QUE VISA DEFINIR penalidades administrativas pela prática de atos discriminatórios por motivo de raça, cor, etnia ou origem, no âmbito do Estado de Pernambuco. CONDUTAS QUE CONFIGURAM PRÁTICA DE DELITO PENAL E ENSEJAM RESPONSABILIZAÇÃO CÍVEL. AFRONTA À COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO PENAL E DIREITO CIVIL (ART. 22, I DA CF/88). VIOLAÇÃO AO PRINCIPIO DO NE BIS IN IDEM. PRECEDENTES DO STF. VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE E ANTIJURIDICIDADE. PELA REJEIÇÃO.
1. RELATÓRIO
É submetido a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária (PLO) nº 20/2023, de autoria do Deputado João Paulo Costa, a fim de definir penalidades administrativas pela prática de atos discriminatórios por motivo de raça, cor, etnia ou origem, no âmbito do Estado de Pernambuco.
O PLO ora em apreciação, em apertada síntese, visa combater os atos de discriminação, “ao contribuir para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de atos discriminatórios, que apenas contribuem para a disseminação do ódio e a desagregação social”, conforme consta na justificativa.
O Projeto em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (Art. 253, III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição vem arrimada no Art. 19, caput, da Constituição Estadual e no Art. 223, I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa.
Inicialmente, convém observar que que a Lei Federal nº 7716/89, em seu art. 20 estabelece pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa para quem praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Além disso, caso haja danos morais ou materiais decorrentes da prática dos citados atos discriminatórios, será cabível, também, a responsabilização civil.
Nesse contexto, o que se observa é que a presente Proposição pretende impor sanções administrativas a atos que já são passíveis de sanção penal e cível. Demonstrar-se-á abaixo, contudo, que tal pretensão afronta o Princípio do Ne Bis In Idem e a competência privativa da União para legislar sobre direito penal e civil (art. 22, I da CF/88).
No que diz respeito à afronta ao Princípio do Ne Bis in Idem, é mister falar sobre a relação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador. A melhor doutrina vêm se posicionando no sentido de que tal relação deve ser regida pelo Princípio da Independência mitigada.
Nesse sentido são esclarecedores os argumentos trazidos pelo Min. Gilmar Mendes e por Bruno Tadeu Buonicore em artigo publicado na IBCCCRIM, transcrito abaixo:
“Diante da existência daquilo que se convencionou chamar de princípio da independência das instâncias, propõe-se aqui clarificar e desenvolver o que denominamos princípio da independência mitigada, especificamente na relação entre Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador – Lopes Jr. e Saboya reconhecem nesta empreitada uma delimitação de ordem paradigmática e “um bom começo” na elucidação das complexas problemáticas dogmáticas e hermenêuticas que surgem da relação entre essas distintas e próximas esferas normativas.
Nessa linha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) estabelece, a partir do paradigmático caso Oztürk, em 1984, um “conceito amplo de direito penal”, que reconhece o Direito Administrativo Sancionador como um “autêntico subsistema” da ordem jurídico-penal. A partir disso, determinados princípios jurídico-penais se estenderiam para o âmbito do Direito Administrativo Sancionador, que pertenceria ao sistema penal em sentido lato.
Confira-se in verbis os apontamentos de Oliveira: “A unidade do jus puniendi do Estado obriga a transposição de garantias constitucionais e penais para o direito administrativo sancionador. As mínimas garantias devem ser: legalidade, proporcionalidade, presunção de inocência e ne bis in idem”.
A assunção desse pressuposto pelo intérprete, principalmente no tocante ao princípio do ne bis in idem, resulta na compreensão que tais princípios devem ser aplicados não somente dentro dos subsistemas, mas também e principalmente na relação entre ambos os subsistemas – trata-se aqui justamente de uma baliza hermenêutica para a qualidade da relação.
A Constituição Federal anuncia, no art. 37, § 4º, uma noção de independência entre as esferas sancionadoras aqui abordadas. Tal independência, contudo, é complexa e deve ser interpretada como uma independência mitigada, sem ignorar a máxima do ne bis in idem.
(...)
A adoção do princípio da independência mitigada entre as esferas penal e administrativa sancionadora – esta parece ser a posição mais acertada diante dos parâmetros constitucionais reitores do sistema penal, principalmente da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade – na interpretação da lei de improbidade administrativa (Lei 8.429/92), sobretudo do art. 12, nos leva ao entendimento de que a mesma narrativa fático-probatório que dá ensejo a uma decisão de mérito definitiva na esfera penal, que fixa uma tese de inexistência do fato ou de negativa de autoria, não pode provocar novo processo no âmbito do Direito Administrativo Sancionador – círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o bis in idem vedado no que diz respeito à persecução penal e ao Direito Administrativo Sancionador pelos mesmos fatos.”
(A VEDAÇÃO DO BIS IN IDEM NA RELAÇÃO ENTRE DIREITO PENAL E DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR E O PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA MITIGADA. Buonicore, Bruno e Mendes, Gilmar. Boletim IBCCCRIM, ano 29, nº 340, março de 2021).
Além do mais, recentemente, no julgamento da ADI 7715/MC ajuizada contra a Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, o STF reiterou seu entendimento no sentido de que a citada pretensão sancionatória de natureza administrativa finda por invadir a competência privativa da União para legislar sobre Direito Penal (art. 22,I da CF/88):
"Direito penal, licitações e contratos. Referendo na medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso. Competência privativa da União. Art. 22, I e XXVII, da Constituição da República. Concessão da medida cautelar. Referendo. I. Caso em exame 1. Inconstitucionalidade, à luz do art. 21, I e XXVII, da Constituição da República, da Lei do Estado de Mato Grosso nº 12.430/2024, que “disciplina a aplicação de sanções a ocupantes de propriedades privadas rurais e urbanas comprovadamente enquadrados conforme o disposto na Lei Federal n° 4.947, de 6 de abril de 1966, e nos arts. 150 e 161, § 1º, II, do Código Penal no âmbito” daquela unidade da federação. II. Questão em discussão 2. A questão em discussão consiste em saber se há, na espécie, usurpação da competência privativa da União para legislar sobre a matéria (art. 22, I e XXVII, da Constituição Federal). III. Razões de decidir 3. O teor da Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso deixa transparecer o objetivo do legislador estadual de ampliar o rol sancionatório contido no regramento punitivo editado pela União, o que denota indevido ingresso na seara reservada ao direito penal. IV. Dispositivo 5. Concessão da medida cautelar para suspender a eficácia da Lei do Estado de Mato Grosso nº 12.430/2024. (Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 22, I. Jurisprudência relevante citada: ADI 2935, ADI 7200 e ADI 3639). (ADI 7715 MC-Ref, Relator(a): FLÁVIO DINO, Tribunal Pleno, julgado em 14-10-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 18-10-2024 PUBLIC 21-10-2024)
Neste diapasão, face ao seu teor bastante esclarecedor, transcrevo trecho do voto do Relator:
"O diploma estadual atacado traz em seu art. 1º, de forma explícita, que se destina a disciplinar a aplicação de sanções relativas ao cometimento dos tipos penais vertidos nos arts. 150 e 161, § 1º, II, do Código Penal, os quais têm por rubricas laterais a “violação de domicílio” e o “esbulho possessório”.
Entendo que, ao assim inaugurar a Lei nº 12.430/2024 do Estado de Mato Grosso, a redação adotada deixa transparecer o objetivo do legislador estadual de ampliar o rol sancionatório contido no regramento punitivo editado pela União, o que denota indevido ingresso na seara reservada ao direito penal.
Reforçam a compreensão de que, na hipótese, a lei do Estado de Mato Grosso sinaliza conter o vício da inconstitucionalidade, por usurpação da competência privativa de que trata o art. 22, I, da Lei Maior, os seguintes precedentes desta Casa:
“EMENTA PENAL. PROCESSUAL PENAL. PENITENCIÁRIO. FINANCEIRO. CONSTITUCIONAL. LEI COMPLEMENTAR N. 68 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. DESTINAÇÃO DOS RECURSOS PROVENIENTES DAS PENAS DE MULTA. MATÉRIA DE DIREITO PENAL. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO (CF, ART. 22, I). MODULAÇÃO DE EFEITOS. EFICÁCIA EX NUNC. 1. A destinação dos recursos financeiros originados do pagamento das penas de multa se insere no âmbito do direito penal. Por isso, é da União a competência privativa para legislar sobre a matéria (CF, art. 22, I). 2. O Estado do Espírito Santo, no art. 2º, I, da Lei Complementar n. 68/1995, ao dispor sobre os recursos oriundos das penas de multa, endereçando-os ao fundo penitenciário estadual, invadiu a competência privativa da União, a configurar vício de inconstitucionalidade formal. 3. Por motivos de segurança jurídica, emprestam-se efeitos prospectivos à decisão, a serem observados a partir da publicação da ata de julgamento. 4. Ação conhecida e pedido julgado procedente.” (ADI 2935, Relator(a): NUNES MARQUES, Tribunal Pleno, julgado em 21-11-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 15-12-2023 PUBLIC 18-12- 2023)
“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE VEDA A DESTRUIÇÃO E INUTILIZAÇÃO DE BENS PARTICULARES APREENDIDOS EM OPERAÇÕES AMBIENTAIS. 1. Ação direta contra a Lei nº 1.701/2022, do Estado de Roraima, que proíbe os órgãos ambientais de fiscalização e a Polícia Militar de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos nas operações e fiscalizações ambientais. 2. Ao proibir a destruição de instrumentos utilizados na prática de infrações ambientais, a lei questionada incorre em inconstitucionalidade formal. Usurpação de competência da União para legislar sobre direito penal e processual penal, bem como para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988). 3. De igual modo, a norma questionada vulnera o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988). Isso porque a proibição de destruir instrumentos utilizados em infrações ambientais acaba permitindo a prática de novos ilícitos, inviabilizando a plenitude do exercício poder de polícia ambiental. 4. A manutenção dos efeitos da norma estadual pode acarretar prejuízo para a devida repressão à prática de ilícitos ambientais, com potenciais danos irreparáveis ao meio ambiente e às populações indígenas no Estado de Roraima. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.701, de 5.7.2022, do Estado de Roraima, com a seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional lei estadual que proíbe os órgãos policiais e ambientais de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos em operações, por violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal e processual penal, para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988) e por afronta ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988)”.” (ADI 7200, Relator(a): ROBERTO BARROSO,Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-
2023)
“Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE VEDA A DESTRUIÇÃO E INUTILIZAÇÃO DE BENS PARTICULARES APREENDIDOS EM OPERAÇÕES AMBIENTAIS. 1. Ação direta contra a Lei nº 1.701/2022, do Estado de Roraima, que proíbe os órgãos ambientais de fiscalização e a Polícia Militar de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos nas operações e fiscalizações ambientais. 2. Ao proibir a destruição de instrumentos utilizados na prática de infrações ambientais, a lei questionada incorre em inconstitucionalidade formal. Usurpação de competência da União para legislar sobre direito penal e processual penal, bem como para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988). 3. De igual modo, a norma questionada vulnera o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988). Isso porque a proibição de destruir instrumentos utilizados em infrações ambientais acaba permitindo a prática de novos ilícitos, inviabilizando a plenitude do exercício poder de polícia ambiental. 4. A manutenção dos efeitos da norma estadual pode acarretar prejuízo para a devida repressão à prática de ilícitos ambientais, com potenciais danos irreparáveis ao meio ambiente e às populações indígenas no Estado de Roraima. 5. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 1.701, de 5.7.2022, do Estado de Roraima, com a seguinte tese de julgamento: “É inconstitucional lei estadual que proíbe os órgãos policiais e ambientais de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos em operações, por violação da competência privativa da União para legislar sobre direito penal e processual penal, para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente (arts. 22, I, e 24, VI e § 1º, da CF/1988) e por afronta ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, da CF/1988)”.” (ADI 7200, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 22-02-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 16-03-2023 PUBLIC 17-03-2023)
(…)
Por seu turno, compreendo que a incidência de uma espécie de “Direito Penal Estadual” abala as regras estruturantes da nossa Federação e cria grave insegurança jurídica, inclusive em virtude do risco de multiplicação de normas similares de “Direito Penal”. (…)"
Ademais, cumpre salientar que, ainda que se argumentasse que a sanção administrativa tem natureza reparadora, não haveria como prosperar a presente Proposição tendo em vista que cabe à União, privativamente, legislar sobre direito civil.
Diante de tais argumentos, forçoso é concluir que o Projeto de Lei em análise padece de vícios de inconstitucionalidade e antijuridicidade.
Destaque-se, por fim, que há precedentes desta Comissão de Justiça no sentido de aprovar leis que instituíram sanções administrativas decorrentes de fatos tipificados como crime ou contravenção penal. Todavia, diante dos reiterados posicionamentos recentes do STF sobre a matéria, bem como da doutrina mais abalizada, não resta outro entendimento a esta Comissão a não ser opinar pela inconstitucionalidade de Projetos de Lei que tratam de tal matéria.
Diante do exposto, opina-se pela rejeição, por vício de inconstitucionalidade e antijuridicidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 20/2023, de autoria do Deputado João Paulo Costa.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Ante o exposto, tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela rejeição do Projeto de Lei Ordinária nº 20/2023, de iniciativa do Deputado João Paulo Costa.
Histórico