
Parecer 2834/2024
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 1469/2023
AUTORIA: DEPUTADO LULA CABRAL
PROPOSIÇÃO QUE IMPEDE A UTILIZAÇÃO DA RETENÇÃO DE MERCADORIAS COMO INSTRUMENTO DE COBRANÇA DE ICMS.. INEXISTÊNCIA DE CONTRARIEDADE AO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL. INICIATIVA PARLAMENTAR. POSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA EXPRESSA DOS ESTADOS-MEMBROS. POTENCIAL VIOLAÇÃO AO DIREITO DE PROPRIEDADE DE DEPOSITÁRIOS ALHEIOS À RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA. PRECEDENTES DO STF EM DEFESA DO DIREITO DE PROPRIEDADE. INEXISTÊNCIA DE RENÚNCIA DE RECEITA. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE. NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO DE EMENDA MODIFICATIVA A FIM DE ACRESCENTAR HIPÓTESES DE EXCEÇÃO À VEDAÇÃO DECORRENTES DAS PRÓPRIAS PRERROGATIVAS DA FAZENDA. MANUTENÇÃO DA LÓGICA DO SISTEMA. PELA APROVAÇÃO COM A EMENDA MODIFICATIVA APRESENTADA.
1. RELATÓRIO
Trata-se do Projeto de Lei Ordinária nº 1469/2023, de autoria do Deputado Lula Cabral, que altera a Lei nº 11.514, de 29 de dezembro de 1997, que dispõe sobre infrações, penalidades e procedimentos específicos, na área tributária, e dá outras providências, a fim de restringir a utilização da retenção de mercadorias como instrumento de cobrança indireta do ICMS, e dá outras providências.
Em sua justificativa, o Exmo. Deputado alega que:
“[...] Em simples consulta ao site da Sefaz/PE é possível constatar que a falta de pagamento do imposto ou mesmo o descredenciamento é causa de retenção de mercadorias nas barreiras fiscais. Ou seja, qualquer empresa que esteja em débito com o Fisco – ainda que não concorde com a dívida – passa a sofrer grande restrição de trânsito, sobretudo ao adquirir bens de outros Estados da Federação.
Tal postura vai de encontro aos princípios constitucionais de livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, além de ter nítido caráter antieconômico, por agravar ainda mais as situações de empresas que estão momentaneamente passando por crises de liquidez.
[...]
O Supremo Tribunal Federal (STF) possui entendimento histórico no sentido de que a retenção de mercadorias com a finalidade de cobrar o pagamento de tributos é inconstitucional, por esbarrar no enunciado de Súmula nº. 323. A prática viola os princípios da livre iniciativa, devido processo legal e livre circulação das mercadorias. [ ...]”
O Projeto de Lei em referência tramita sob o regime ordinário.
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 223, I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa, não estando no rol de matérias afetas à iniciativa reservada ao Governador do Estado. Infere-se, portanto, quanto à iniciativa, sua constitucionalidade formal subjetiva.
Do ponto de vista formal orgânico, a matéria não se encontra no rol privativo da União. Mais ainda, o art. 24 da Constituição Federal atribui expressamente aos Estados-membros a competência para legislar sobre direito financeiro:
“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; [...]”
Sobre a competência legislativa dos Estados-membros, assim leciona Pedro Lenza, in verbis:
“7.5.3.2. Competência legislativa
Como a terminologia indica, trata-se de competências, constitucionalmente definidas, para elaborar leis.
Elas foram assim definidas para os Estados-membros:
- Expressa: art. 25, caput > qual seja, como vimos, a capacidade de auto-organização dos Estados-membros, que se regerão pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios da CF/88;
- Residual (remanescente ou reservada): art. 25, § 1.º > toda competência que não for vedada está reservada aos Estados-membros, ou seja, o resíduo que sobrar, o que não for de competência expressa dos outros entes e não houver vedação, caberá aos Estados materializar;
- Delegada pela União: art. 22, parágrafo único > como vimos, a União poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias de sua competência privativa prevista no art. 22 e incisos. Tal autorização dar-se-á por meio de lei complementar;
- Concorrente: art. 24 > a concorrência para legislar dar-se-á entre a União, os Estados e o Distrito Federal, cabendo à União legislar sobre normas gerais e aos Estados, sobre normas específicas;” (LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2012.)
No mais, fazendo-se a análise material da proposta, inexistem em suas disposições quaisquer vícios de inconstitucionalidade ou ilegalidade.
Superados os questionamentos acerca da constitucionalidade formal orgânica da proposição, necessário analisar a compatibilidade da matéria com a Constituição Federal, ou seja, a constitucionalidade material do PLO. De início, imperioso destacar a situação das transportadoras de cargas, citadas tanto em dispositivo contido no Projeto quanto na Justificativa apresentada pelo nobre parlamentar. Tais pessoas jurídicas são alheias à relação jurídico-tributária existente entre o Fisco e os contribuintes de ICMS, que são, em regra, os vendedores da mercadoria, nos termos do que preceitua a Lei Kandir (Lei Complementar Federal nº 87, de 13 de setembro de 1996. Vejamos a redação legal:
“Art. 4º Contribuinte é qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.”
Ora, em relação às mercadorias que foram comercializadas e estão sendo transportadas, a relação jurídico-tributária é alheia à transportadora, que não foi a responsável por praticar o fato gerador da exação.
Da mesma forma, a prática de, eventualmente, responsabilizar, sem qualquer contrapartida, as transportadoras pela guarda e depósito de bens que elas estivessem transportando, mas que não tenham tido os tributos incidentes sobre a comercialização adimplidos (frise-se, novamente, que o adimplemento a que nos referimos não deve ficar a cargo da transportadora, mas, sim, do contribuinte responsável pela comercialização da mercadoria), viola, evidentemente, o direito de propriedade, pois impõe à transportadora o ônus de cuidar da carga, com todos os consectários legais que a posição de depositário acarreta.
Com efeito, é transferido a particular (transportadora) uma obrigação (zelar pelo bom estado de conservação de bens apreendidos) que deve ser exercida, a nosso sentir, pelo próprio Estado ou por particular que aceite colaborar com o Fisco, mediante a devida contrapartida pecuniária por parte da Fazenda Estadual.
Não é demais lembrar que o direito de propriedade tem estatura constitucional e é, por óbvio, defendido pelo Supremo Tribunal Federal em situações nas quais a ação estatal seja tendente a violá-lo. Vejamos:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes
[...]
XXII - é garantido o direito de propriedade;”
“A inexistência de qualquer indenização sobre a parcela de cobertura vegetal sujeita a preservação permanente implica violação aos postulados que asseguram o direito de propriedade e a justa indenização (CF, art. 5º, XXII e XXIV). [RE 267.817, rel. min. Maurício Corrêa, j. 29-10-2002, 2ª T, DJ de 29-11-2002.]
O direito fundamental de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII) repugna o disposto no art. 1º-F da Lei 9.494/1997, com a redação dada pela Lei 11.960/2009, porquanto a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina. [RE 870.947, rel. min. Luiz Fux, j. 20-9-2017, P, DJE de 20-11-2017, Tema 810.]
Avançando na análise, cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência histórica, materializada na Súmula 323, no sentido de que “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. Também podemos citar outras Súmula da Corte:
Súmula 547 do STF: Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Súmula 70 do STF: É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Outros precedentes da Suprema Corte no mesmo sentido:
“II - É inconstitucional a restrição ilegítima ao livre exercício de atividade econômica ou profissional, quando imposta como meio de cobrança indireta de tributos.”
[Tese definida no ARE 914.045 RG, rel. min. Edson Fachin, P, j. 15-10-2015, DJE 232 de 19-11-2015, Tema 856.]
“É inconstitucional o uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo – “sanção política” –, tal qual ocorre com a exigência, pela Administração Tributária, de fiança, garantia real ou fidejussória como condição para impressão de notas fiscais de contribuintes com débitos tributários.”
[Tese definida no RE 565.048, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 29-5-2014, DJE 197 de 9-10-2014, Tema 31.]
“Tributo - Arrecadação - Sanção Política. Discrepa, a não mais poder, da Carta Federal a sanção política objetivando a cobrança de tributos - Verbetes 70, 323 e 547 da Súmula do Supremo. Tributo - Débito - Notas Fiscais - Caução - Sanção Política. Impropriedade. Consubstancia sanção política visando o recolhimento de tributo condicionar a expedição de notas fiscais a fiança, garantia real ou fidejussória por parte do contribuinte. Inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 42 da Lei 8.820/89, do Estado do Rio Grande do Sul.”
[RE 565048, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 29-5-2014, DJE 197 de 9-10-2014,Tema 31.]
Vale destacar, ainda, que a medida não configura hipótese de renúncia de receita, nos termos do art. 14, da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que não estabelece hipótese de “anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições”.
Não obstante todo o exposto, entendemos necessária apresentação de Emenda Modificativa a fim de alterar incisos do parágrafo único. Este veicula as hipóteses de exceção à regra, ou seja, casos em que a vedação à retenção não será aplicada, permitindo-se, portanto que se realize a retenção da mercadoria.
A primeira das mudanças que pretendemos realizar diz respeito ao inciso II, que hoje tem a seguinte redação: “apreensão de mercadorias, com fundamento no art. 31 e seguintes, da Lei nº 10.654, de 27 de novembro de 1991; e”. Por meio de nossa emenda iremos acrescentar a menção ao artigo 29 da lei já citada no dispositivo, artigo que versa sobre o Termo de Início de Fiscalização – TIF, instrumento preliminar ao auto de infração, ao auto de apreensão ou ao auto de lançamento sem penalidade e que pode se converter na medida principal. O TIF, portanto, é também um instrumento de apreensão de mercadorias e que se aplica às mesmas hipóteses previstas para o auto de apreensão, conforme se observa na própria legislação. Em suma, há situações em que o TIF se apresenta como medida prévia, como etapa procedimental antecedente ao auto de apreensão. Ora, se o PLO permite a retenção no caso de auto de apreensão, é lógico que esta retenção também possa ocorrer nos casos do TIF, que, por vezes, será etapa necessária à lavratura do auto da apreensão, e que tem as mesmas hipóteses de incidência que o auto de apreensão.
Logo, entendemos que haveria falha na técnica legislativa adotada se o artigo 19-A ora proposto estabelecesse a possibilidade de retenção (apreensão) de mercadorias, bens, livros e equipamentos para as hipóteses de utilização do auto de apreensão e não fizesse o mesmo para as hipóteses de lavratura do TIF, visto que são as mesmas situações.
A segunda alteração (modificação no inciso III) consiste apenas na supressão de parte do texto, pois a "retenção para averiguação" continua fazendo parte das prerrogativas da Fazenda Pública do Estado e decorre do exercício normal da sua competência constitucional. O texto, portanto, se não ajustado, impediria o exercício dos poderes de investigação típicos da Fazenda do Estado, em outras ações de fiscalização, que estariam só autorizadas diante de devedores contumazes.
Assim sendo, apresentamos a seguinte Emenda Modificativa:
EMENDA MODIFICATIVA Nº /2024 AO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA N° 1469/2023
Altera o artigo 1° do Projeto de Lei Ordinária n° 1469/2023, que modifica a Lei n° 11.514, de 29 de dezembro de 1997, a fim de restringir a utilização da retenção de mercadorias como instrumento de cobrança indireta do ICMS.
Artigo único. Fica alterado o artigo 1° do Projeto de Lei Ordinária n° 1469/2023, a fim de modificar os incisos II e III do parágrafo único do artigo 19-A da Lei n° 11.514, de 1997, que passam a ter seguinte redação:
“Parágrafo único. ..................................................................................
.....................................................
II - apreensão de mercadorias, com fundamento nos arts. 29, 31 e seguintes, da Lei nº 10.654, de 27 de novembro de 1991; e (AC)
III - retenção aplicada a devedor contumaz submetido ao sistema especial de controle, fiscalização e pagamento." (AC)
Diante do exposto, opino pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 1469/2023, de autoria do Deputado Lula Cabral, com a Emenda Modificativa apresentada.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Ante o exposto, tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, a Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, opina pela aprovação do Projeto de Lei Ordinária nº 1469/2023, de autoria do Deputado Lula Cabral, com a Emenda Modificativa apresentada.
Histórico
Comissão de Constituição, Legislação e Justiça