
Parecer 1175/2023
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 34/2023
AUTORIA: DEPUTADO JOÃO PAULO COSTA
PROPOSIÇÃO QUE PROÍBE A COBRANÇA DE TARIFA DE ESTACIONAMENTO AOS ENTREGADORES DE ALIMENTOS, MERCADORIAS E DOCUMENTOS (SERVIÇOS DE DELIVERY), NOS TERMOS QUE INDICA. ESTACIONAMENTO PRIVADOS. MATÉRIA INSERTA NA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO CIVIL (ART. 22, INCISO I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ESTACIONAMENTOS PÚBLICOS. INGERÊNCIA NA GESTÃO PATRIMONIAL DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. afronta aoS princípioS da separação dos poderes E DA RESERVA DA ADMINISTRAÇÃO. PELA REJEIÇÃO.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 34/2023, de autoria do Deputado João Paulo Costa, que proíbe a cobrança de tarifa de estacionamento aos entregadores de alimentos, mercadorias e documentos (serviço de delivery), nos termos que indica.
Em síntese, a proposição veda cobrança de tarifa por uso de estacionamento público ou privado de entregadores ou motoristas de transporte de passageiros quando estiverem exercendo suas atividades no imóvel onde está situado o estacionamento. Além disso, o projeto de lei prevê que o tempo máximo de permanência será de 20 (vinte) minutos, salvo em caso de atraso por caso fortuito, força maior ou responsabilidade da pessoa física ou jurídica que solicitou o serviço. Por fim, a proposta estabelece, na hipótese de seu descumprimento, a responsabilização administrativa dos dirigentes de instituições públicas e a imposição das penalidades de advertência e multa quando o infrator for pessoa física ou jurídica de direito privado.
O Projeto de Lei em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 253, inciso III, Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição vem arrimada no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 223, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa.
Entretanto, apesar de louvável iniciativa em prol das atividades realizadas por entregadores e motoristas de aplicativos, o Projeto de Lei nº 34/2023 apresenta vícios de inconstitucionalidade que impedem sua aprovação no âmbito desta Comissão.
Inicialmente, cumpre esclarecer que a proposta, a pretexto de suspender a cobrança de estacionamento por período de tempo para o exercício de atividades de delivery e transporte de passageiros, impõe uma forma de gratuidade temporária em estabelecimentos particulares e públicos.
Nesse contexto, em relação aos estacionamentos privados, verifica-se que a matéria está abarcada pela competência privativa da União para legislar sobre direito civil, a teor do art. 22, inciso I, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal revela-se refratária à possibilidade de a legislação estadual limitar a cobrança pelo uso de estacionamentos, sob o risco de usurpação da competência privativa da União. Nesse sentido, colacionam-se os seguintes precedentes:
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI DISTRITAL QUE REGULOU PREÇO COBRADO POR ESTACIONAMENTO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL. 1. O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que a regulação de preço de estacionamento é matéria de direito civil, inserindo-se na competência privativa da União para legislar (CF/88, art. 22, I). Inconstitucionalidade formal. Precedentes: ADI 4.862, rel. Min. Gilmar Mendes; AgR-RE 730.856, rel. Min Marco Aurélio; ADI 1.623, rel. Min. Joaquim Barbosa. 2. Ressalva de entendimento pessoal do relator, no sentido de que a regulação de preço na hipótese configura violação ao princípio da livre iniciativa (CF/88, art. 170). Inconstitucionalidade material. 3. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da norma. (ADI 4008, Rel. Min. Roberto Barroso; DJe 291, Public 18-12-2017)
EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Lei 16.785, de 11 de janeiro de 2011, do Estado do Paraná. 3. Cobrança proporcional ao tempo efetivamente utilizado por serviços de estacionamento privado. Inconstitucionalidade configurada. 4. Ação direta julgada procedente. (ADI 4862, Rel. Min. Gilmar Mendes; DJe 023, Public 07-02-2017)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 2º, CAPUT E §§ 1º E 2º, DA LEI Nº 4.711/92 DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. ESTACIONAMENTO DE VEÍCULOS EM ÁREAS PARTICULARES. LEI ESTADUAL QUE LIMITA O VALOR DAS QUANTIAS COBRADAS PELO SEU USO. DIREITO CIVIL. INVASÃO DE COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO. 1. Hipótese de inconstitucionalidade formal por invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito civil (CF, artigo 22, I). 2. Enquanto a União regula o direito de propriedade e estabelece as regras substantivas de intervenção no domínio econômico, os outros níveis de governo apenas exercem o policiamento administrativo do uso da propriedade e da atividade econômica dos particulares, tendo em vista, sempre, as normas substantivas editadas pela União. Ação julgada procedente. (ADI 1918, Rel. Min. Maurício Correa; DJ 01.08.2001).
EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. AÇÃO DIRETA DA INCONSTITUCIONALIDADE DA EXPRESSÃO "OU PARTICULARES" CONSTANTE DO ART. 1º DA LEI Nº 2.702, DE 04/04/2001, DO DISTRITO FEDERAL, DESTE TEOR: "FICA PROIBIDA A COBRANÇA, SOB QUALQUER PRETEXTO, PELA UTILIZAÇÃO DE ESTACIONAMENTO DE VEÍCULOS EM ÁREAS PERTENCENTES A INSTITUIÇÕES DE ENSINO FUNDAMENTAL, MÉDIO E SUPERIOR, PÚBLICAS OU PARTICULARES". ALEGAÇÃO DE QUE SUA INCLUSÃO, NO TEXTO, IMPLICA VIOLAÇÃO ÀS NORMAS DOS ARTIGOS 22, I, 5º, XXII, XXIV e LIV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. QUESTÃO PRELIMINAR SUSCITADA PELA CÂMARA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL: a) DE DESCABIMENTO DA ADI, POR TER CARÁTER MUNICIPAL A LEI EM QUESTÃO; b) DE ILEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM". 1. Não procede a preliminar de descabimento da ADI sob a alegação de ter o ato normativo impugnado natureza de direito municipal. Argüição idêntica já foi repelida por esta Corte, na ADIMC nº 1.472-2, e na qual se impugnava o art. 1º da Lei Distrital nº 1.094, de 31 de maio de 1996. 2. Não colhe, igualmente, a alegação de ilegitimidade passiva "ad causam", pois a Câmara Distrital, como órgão, de que emanou o ato normativo impugnado, deve prestar informações no processo da A.D.I., nos termos dos artigos 6° e 10 da Lei n° 9.868, de 10.11.1999. 3. Não compete ao Distrito Federal, mas, sim, à União legislar sobre Direito Civil, como, por exemplo, cobrança de preço de estacionamento de veículos em áreas pertencentes a instituições particulares de ensino fundamental, médio e superior, matéria que envolve, também, direito decorrente de propriedade. 4. Ação Direta julgada procedente, com a declaração de inconstitucionalidade da expressão "ou particulares", contida no art. 1° da Lei n° 2.702, de 04.4.2001, do Distrito Federal. (ADI 2448, rel. Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, DJ 13.06.2003)
Dessa forma, conclui-se que o Projeto de Lei Ordinária nº 34/2023, neste particular, invade a esfera de competência legislativa da União (art. 22, inciso I, da Constituição Federal), incorrendo em vício de inconstitucionalidade formal orgânica, consoante a lição de Carvalho:
A inconstitucionalidade orgânica decorre da inobservância da regra de competência para a edição do ato, ou do vício de competência do órgão de que promana o ato normativo, como, por exemplo, a edição, pelo Estado-Membro, de lei em matéria penal, que viola a regra de competência privativa da União (art. 22, I, da Constituição Federal) [...] (CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição. 20 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, v.1. p. 404)
Por outro lado, no que tange aos estacionamentos disponibilizados por órgãos e entidades públicos, a proposição em apreço viola os princípios da separação de poderes (art. 2º da Constituição Federal) e da reserva da administração (art. 84, inciso II, da Constituição de 1988 c/c art. 37, inciso II, da Constituição Estadual), tendo em vista a ingerência normativa do Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa de outros órgãos independentes ou autônomos.
De fato, o art. 2º da Constituição de 1988 consagra a existência de Poderes independentes e harmônicos e pressupõe o reconhecimento de autonomia administrativa, financeira e funcional para cada um dos respectivos órgãos exercerem suas funções constitucionais.
Por sua vez, a reserva da administração constitui construção doutrinária e jurisprudencial e tem por finalidade evitar a incursão do Poder Legislativo em matérias sujeitas à discricionariedade dos demais Poderes ou órgãos dotados de autonomia administrativa. O referido princípio encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na linha dos seguintes precedentes:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO RECURSO DE AGRAVO - DECISÃO QUE SE AJUSTA À JURISPRUDÊNCIA PREVALECENTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - CONSEQÜENTE INVIABILIDADE DO RECURSO QUE A IMPUGNA - SUBSISTÊNCIA DOS FUNDAMENTOS QUE DÃO SUPORTE À DECISÃO RECORRIDA - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. - O princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo. Precedentes. Não cabe, desse modo, ao Poder Legislativo, sob pena de grave desrespeito ao postulado da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que tenham sido editados pelo Poder Executivo, no estrito desempenho de suas privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada, subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa em atuação “ultra vires” do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas institucionais.
(RE 427574 ED, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-030 DIVULG 10-02-2012 PUBLIC 13-02-2012 RT v. 101, n. 922, 2012, p. 736-741)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 3.449/04 DO DISTRITO FEDERAL. PROIBIÇÃO DE COBRANÇA DE ASSINATURA BÁSICA NOS SERVIÇOS DE ÁGUA, LUZ, GÁS, TV A CABO E TELEFONIA. INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA LEGISLAR E PRESTAR OS SERVIÇOS PÚBLICOS DE TELECOMUNICAÇÕES E ENERGIA ELÉTRICA (CF, ART. 21, XI E XII, ‘b’, E 22, IV). FIXAÇÃO DA POLÍTICA TARIFÁRIA COMO PRERROGATIVA INERENTE À TITULARIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO (CF, ART. 175, PARÁGRAFO ÚNICO, III). AFASTAMENTO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE DO ESTADO-MEMBRO PARA LEGISLAR SOBRE CONSUMO (CF, ART. 24, V E VII). USUÁRIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS CUJO REGIME GUARDA DISTINÇÃO COM A FIGURA DO CONSUMIDOR (CF, ART. 175, PARÁGRAFO ÚNICO, II). PRECEDENTES. SERVIÇOS DE FORNECIMENTO DE ÁGUA E GÁS. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES. RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO (CF, ART. 2º). PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
[...]
4. Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da margem de apreciação do Chefe do Poder Executivo Distrital na condução da Administração Pública, no que se inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente.
(ADI 3343, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2011, DJe-221 DIVULG 21-11-2011 PUBLIC 22-11-2011 EMENT VOL-02630-01 PP-00001)
Assim, sob a perspectiva dos mencionados princípios constitucionais, percebe-se a caracterização de inconstitucionalidade material, uma vez que cabe a cada Poder ou órgão autônomo definir a melhor maneira de gerir o seu patrimônio. Vale dizer: uma lei de iniciativa de membro do Poder Legislativo não pode suprimir o legítimo espaço decisório reconhecido a outros entes públicos, notadamente quanto a critérios de acesso e permanência de terceiros nos imóveis afetados à prestação de serviços públicos.
Diante do exposto, opina-se pela rejeição, por vício de inconstitucionalidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 34/2023, de autoria do Deputado João Paulo Costa.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, o parecer desta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, é pela rejeição, por vício de inconstitucionalidade, do Projeto de Lei Ordinária nº 34/2023, de autoria do Deputado João Paulo Costa.
Histórico