
Parecer 1111/2023
Texto Completo
PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 332/2023
AUTORIA: DEPUTADO DORIEL BARROS
PROPOSIÇÃO QUE ALTERA A LEI Nº 16.272, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2017, QUE INSTITUI O PROGRAMA DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, A FIM DE RESERVAR PERCENTUAL DE BOLSAS A ESTUDANTES INDÍGENAS, PERTENCENTES A COMUNIDADES QUILOMBOLAS OU ORIUNDOS DE FAMÍLIAS VINCULADAS À ATIVIDADE RURAL. MATÉRIA INSERTA NA COMPETÊNCIA DOS ESTADOS-MEMBROS PARA LEGISLAR SOBRE EDUCAÇÃO E MEIOS DE ACESSO AO ENSINO (ART. 23, INCISO V, E ART. 24, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). MODALIDADE DE AÇÃO AFIRMATIVA. COMPATIBILIDADE MATERIAL COM O PRINCÍPIO DA ISONOMIA. PRECEDENTES DO STF. PELA APROVAÇÃO DO SUBSTITUTIVO COM A CONSEQUENTE PREJUDICIALIDADE DA PROPOSIÇÃO PRINCIPAL.
1. RELATÓRIO
Vem a esta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, para análise e emissão de parecer, o Projeto de Lei Ordinária nº 332/2023, de autoria do Deputado Doriel Barros, que altera a Lei nº 16.272, de 22 de dezembro de 2017, que institui o Programa de Acesso ao Ensino Superior, a fim de reservar percentual de bolsas a estudantes indígenas, pertencentes a comunidades quilombolas ou oriundos de famílias vinculadas à atividade rural.
Em síntese, a proposição prevê que, no mínimo, 10% (dez por cento) do quantitativo total de bolsas do Programa de Acesso ao Ensino superior serão destinadas a estudantes que se autodeclararem indígenas ou pertencentes a comunidades quilombolas, bem como a estudantes oriundos de famílias vinculadas à atividade rural, em especial à agricultura familiar. Além disso, o projeto de lei dispõe que a definição dos percentuais aplicáveis a cada categoria e a forma de comprovação do direito às bolsas reservadas serão estabelecidas em regulamento do Poder Executivo. Por fim, a proposta menciona que, em caso de não preenchimento das bolsas reservadas, as remanescentes serão destinadas aos demais estudantes que cumprirem os requisitos legais.
O Projeto de Lei em referência tramita nesta Assembleia Legislativa pelo regime ordinário (art. 253, inciso III, do Regimento Interno).
É o relatório.
2. PARECER DO RELATOR
A proposição em análise encontra guarida no art. 19, caput, da Constituição Estadual e no art. 223, inciso I, do Regimento Interno desta Assembleia Legislativa, não estando no rol de assuntos cuja deflagração do processo legislativo compete privativamente ao Governador do Estado. Infere-se, portanto, quanto à iniciativa, sua constitucionalidade formal subjetiva.
Além disso, pela ótica das competências constitucionais, a matéria versada no Projeto de Lei nº 332/2023 está inserta na esfera de competência material e legislativa dos Estados-membros, conforme estabelecem os arts. 23, inciso V, e 24, inciso IX, da Constituição Federal:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...]
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
Por outro lado, do ponto de vista material, cumpre registrar que a instituição de uma política voltada à reserva de bolsas para parcelas mais vulnerabilizadas da população é uma forma de garantir o seu acesso e permanência em instituições de ensino superior, com a finalidade de compensar o processo histórico-social de exclusão de cidadãos específicos, seja beneficiando minorias, seja assegurando condições mínimas de exercício de direitos.
Com efeito, pelo primado do Estado Democrático de Direito, todos os indivíduos deveriam competir em igualdade de condições na acessibilidade das vagas a cargos públicos, universidades públicas, cargos políticos etc. Todavia, em razão de uma série de fatores, alguns cidadãos acabam alijados da participação do processo concorrencial, oportunidade em que o Estado é instado a corrigir as distorções, tentando proporcionar algum equilíbrio entre os concorrentes.
Nesse contexto encontram-se as discriminações positivas ou affirmative actions (ações afirmativas), que têm amparo no princípio da isonomia material (e não meramente formal), segundo a qual os cidadãos desiguais devem ser tratados de modo desigual, na medida da sua desigualdade. (vide: MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa “affirmative action” no direito norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001; e BARBOSA, Rui. Oração aos moços: edição comemorativa do centenário de nascimento do grande brasileiro. São Paulo: Reitoria da Universidade de São Paulo, 1949).
Há de se ressaltar, contudo, que não é qualquer ação afirmativa que se mostra compatível com os preceitos constitucionais. Em verdade, a análise deve ser feita caso a caso, sob pena de o ordenamento jurídico passar a promover discriminações negativas – e não positivas –, conferindo vantagem a cidadãos que não se encontram em situação de inferioridade ou vulnerabilidade.
Na hipótese ora analisada, verifica-se que o Projeto de Lei nº 332/2023 prevê a reserva de bolsas para estudantes indígenas, pertencentes a comunidades quilombolas ou oriundos de famílias vinculadas à atividade rural, que, concomitantemente, tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas da rede estadual e possuam renda familiar igual ou inferior a três salários mínimos.
Conforme bem destacado na justificativa da proposição, trata-se de grupos vulneráveis uma vez que “os indígenas e quilombolas são povos e comunidades historicamente lesados pela discriminação social e necessitam estar inseridos nas políticas educacionais de maneira mais efetiva. Por sua vez, as atividades rurais são desempenhadas, na maior parte dos casos, em localidades distantes ou de difícil acesso, comprometendo a assiduidade do aluno e a qualidade do ensino.”
Portanto, a priori, a previsão de reserva de bolsas a esses alunos revela-se consentânea com a situação de exclusão vivenciada por aqueles que, em regra, possuem dificuldades de acesso e permanência no ensino superior.
Em casos análogos, inclusive, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de julgar a matéria relativa a ações de caráter afirmativo, entendendo pela plena constitucionalidade, por exemplo, dos sistemas de cotas adotados em universidades federais:
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. POLÍTICA DE AÇÕES AFIRMATIVAS. INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR. USO DE CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL. AUTOIDENTIFICAÇÃO. RESERVA DE VAGA OU ESTABELECIMENTO DE COTAS. CONSTITUCIONALIDADE. RECURSO IMPROVIDO. I – Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 597285, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 09/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-053 DIVULG 17-03-2014 PUBLIC 18-03-2014)
Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.
IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente. (ADPF 186, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014)
Desse modo, inexistem vícios de inconstitucionalidade ou de ilegalidade que possam comprometer a validade do Projeto de Lei ora analisado.
Nada obstante, considerando as recentes modificações realizadas na Lei nº 16.272/2017, faz-se necessária a adequação do texto do Projeto de Lei nº 332/2023 a fim de ajustá-lo às regras de técnica legislativa.
Isto posto, propõe-se a aprovação do seguinte substitutivo:
SUBSTITUTIVO Nº ______/2023
AO PROJETO DE LEI ORDINÁRIA Nº 332/2023
Altera integralmente a redação do Projeto de Lei Ordinária nº 332/2023.
Artigo único. O Projeto de Lei Ordinária nº 332/2023 passa a ter a seguinte redação:
“Altera a Lei nº 16.272, de 22 de dezembro de 2017, que institui o Programa de Acesso ao Ensino Superior, a fim de reservar percentual de bolsas a estudantes vinculados à atividade rural em regime de economia familiar ou pertencentes a povos ou comunidades indígenas e quilombolas.
Art. 1º O art. 2º-A da Lei nº 16.272, de 22 de dezembro de 2017, passa a vigorar com as seguintes alterações:
‘Art. 2º-A ..................................................................................
..................................................................................................
III - pessoa com doença grave ou rara; (NR)
IV - idosos, nos termos da Lei Federal nº 10.741, de 1º de outubro de 2003; (NR)
V - pessoa vinculada à atividade rural em regime de economia familiar, nos termos da Lei Federal nº 11.326, de 24 de julho de 2006; e (AC)
VI - pessoa pertencente a povos ou comunidades indígenas ou quilombolas, nos termos do Decreto Federal n° 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. (AC)
§ 1º............................................................................................
...................................................................................................
IV - pessoa com doença rara: aquela diagnosticada com características degenerativa, proliferativa, crônica, progressiva e/ou incapacitante previstas nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Ministério da Saúde e devidamente reconhecida em laudo médico contendo data, assinatura e número de inscrição do profissional no Conselho Regional de Medicina e a respectiva indicação do código da Classificação Internacional de Doença – CID; (NR)
V - idosos: pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos; (NR)
VI - pessoa vinculada à atividade rural em regime de economia familiar: aquela que pratica atividades no meio rural, em que o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar, sendo exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes; e (AC)
VII - pessoa pertencente a povos ou comunidades indígenas ou quilombolas: aquela que integra os grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (AC)
...................................................................................................
§ 5º Os documentos necessários para a comprovação do direito às bolsas reservadas de que trata os incisos VI e VII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo. (AC)
§ 6º No caso de não preenchimento das bolsas reservadas, as remanescentes serão destinadas aos demais estudantes que cumprirem os requisitos do art. 2º. (AC)’
Art. 2º Caberá ao Poder Executivo regulamentar a presente Lei em todos os aspectos necessários para a sua efetiva aplicação.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor após decorridos 90 (noventa) dia de sua publicação oficial.”
Diante do exposto, opina-se pela aprovação do Substitutivo ao Projeto de Lei Ordinária nº 332/2023, de autoria do Deputado Doriel Barros, com a consequente prejudicialidade da proposição princpal.
É o Parecer do Relator.
3. CONCLUSÃO DA COMISSÃO
Tendo em vista as considerações expendidas pelo relator, o parecer desta Comissão de Constituição, Legislação e Justiça, por seus membros infra-assinados, é pela aprovação do Substitutivo ao Projeto de Lei Ordinária nº 332/2023, de autoria do Deputado Doriel Barros, com a consequente prejudicialidade da proposição princpal.
Histórico