Maracatu eterno
Resistência e renovação da manifestação popular que se tornou símbolo da pernambucanidade
Edson Alves Jr.
Nasci no maracatu, mas acho que, dentro de pouco tempo, ele desaparecerá. Não temos uma sede para guardar nosso material. Já teve dia em que pensei em botar gasolina em cima de tudinho e tocar fogo.”
Em 27 de janeiro de 1980, o Diario de Pernambuco registrava o desabafo de Luís de França, oluô (sacerdote máximo) do Maracatu Leão Coroado de 1954 até o fim da vida. O mestre não se conformava com a falta de apoio do Poder Público, que sequer permitia à agremiação, fundada em 1863, ter uma sede.
Não era a primeira vez que alguém previa a ruína desse folguedo popular. Já na década de 1960, a pesquisadora norte-americana Katarina Real apontava o pequeno número de grupos e pessoas fazendo maracatu no Estado.
“Na época, o Leão Coroado tinha uma média de 30 a 40 integrantes e só 12 batuqueiros”, conta Fábio Sotero, que preside a Associação dos Maracatus Nação de Pernambuco (Amanpe) e trabalhou na produção do inventário da manifestação como Patrimônio Imaterial Nacional. Para efeito de comparação, o comandante da Nação do Maracatu Aurora Africana diz que essa quantidade representa apenas uma ala de uma agremiação dos dias atuais.
Ao contrário do que temiam mestre França e Katarina, o maracatu está mais vivo do que nunca. Novos grupos surgiram, e as agremiações tradicionais ganharam reconhecimento: em 1997, ano da morte de Luís de França, o aniversário dele (1º de agosto) tornou-se o Dia Estadual do Maracatu por iniciativa do então presidente da Alepe, Djalma Paes. Para celebrar a data, o Leão Coroado e outros nove grupos realizam, todos os anos, um cortejo no centro histórico de Olinda, na Região Metropolitana do Recife (RMR).
“A regulamentação oficial dessa data e a homenagem a Luís de França são formas importantes de mostrar que estamos vivos. Mesmo sem o reconhecimento que deveríamos ter, ainda que a sociedade queira esconder o maracatu, sempre vamos estar aqui”, reforça Karen Aguiar. Ela é neta do mestre Afonso Aguiar, que sucedeu França no comando do Leão Coroado e faleceu em abril deste ano.
“Somos gratos ao legado de Luís de França, que estamos passando de geração em geração. E agradecemos também aos orixás, por não terem deixado ele tocar fogo no nosso símbolo em 1980”, relembra Karen, que segue na batalha por um espaço adequado às atividades do grupo, sediado no bairro de Águas Compridas, em Olinda. Para arrecadar recursos, foi criado o projeto Salvaguarda do Maracatu Nação Leão Coroado, que inclui venda de livro e produtos audiovisuais que celebram a história da agremiação.
Desde 2005, o Leão Coroado detém o título de Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco. A honraria também foi concedia a Mestre Salustiano (1945-2008), artista ligado ao maracatu rural; ao maracatu de baque virado Estrela Brilhante, de Igarassu (RMR); e ao maracatu rural Estrela de Ouro, de Aliança (Mata Norte).
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Novo fôlego
No século 20, o maracatu renasceu e conquistou os jovens por meio da fusão com outros ritmos no movimento Manguebeat. “O que mais contribuiu para a divulgação foi a mistura com o rock feita por Chico Science e o formato estilizado do Maracatu Nação Pernambuco”, observa Sotero. “Os jovens fizeram um maracatu com a cara deles.”
Um exemplo de como ocorreu essa renovação é a história de Ivanildo de Oxóssi. Filho de um rei de maracatu, até os anos 1990 rejeitava a herança do pai. “Para mim, era uma brincadeira de bêbados”, relata. Mudou de ideia ao perceber a força e a fascinação que o ritmo proporcionava, ao participar de um projeto social na comunidade de Guadalupe, em Olinda. “Foi uma ironia do destino: eu, que não gostava de maracatu, ajudei os adolescentes do bairro a montar o Estrela de Olinda, em 2003. Enquanto tiver povo de terreiro e candomblé, o ritmo vai continuar a existir”, garante Ivanildo.
Em 2014, o maracatu recebeu o título de Patrimônio Imaterial Nacional, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A condecoração legitimava tanto o maracatu nação – ou de baque virado – quanto o rural, também chamado de baque solto e identificado pelos caboclos de lança.
O desafio do financiamento
Apesar de provocar associação direta com o Estado e a pernambucanidade, o maracatu ainda carece de apoio público. “Próximo do Carnaval, vemos pessoas que fazem o folguedo devendo dinheiro a agiotas e tendo que empenhar bens pessoais para conseguir realizar os desfiles, por exemplo”, relata Fábio Sotero.
O dirigente da Amanpe trabalha para esclarecer os maracatuzeiros sobre a possibilidade de editais públicos e outras formas de captação de recursos. “Na época de Luís de França, os cachês e subvenções eram tão irrisórios que o levaram à revolta. Hoje não é o ideal para tudo o que o maracatu faz nas comunidades, mas melhorou muito”, analisa. Um documentário sobre o Maracatu Leão Coroado (Wagner Simões, 1987) traz depoimento do mestre.
Sotero também critica a visão de que os maracatus “dependeriam demais do Estado”. “Quando um gestor vai captar recursos de patrocínio para o Carnaval, não leva imagens dos shows de grandes artistas nacionais, mas do frevo, do caboclinho e do maracatu. Ou seja, é o Estado que depende das manifestações populares para fazer a festa”, considera. “Acontece que os grupos populares recebem menos verba do que esses grandes nomes e, além disso, estão com os cachês congelados há anos.”
Mestre Roberto, do Maracatu Nação de Luanda, é uma das lideranças mais antigas da manifestação em Pernambuco. Ele conta que, em apenas um desfile, gasta R$ 500 de aluguel de ônibus mais o valor da ajuda de custo, que é de R$ 50 por integrante. Quando não há apoio oficial, a verba sai do próprio bolso. “As autoridades não dão muito valor para a cultura, mas ela não se acaba, porque a cultura de um povo só se acaba quando o povo acaba”, acredita.
*Crédito das imagens do topo e dos destaques: Jarbas Araújo/Alepe.