A cada duas semanas, em média, o trabalhador rural aposentado José Severiano de Oliveira, de 72 anos, deixa a cidade de Itaíba, no Agreste Meridional, e percorre sete horas de viagem até o Recife. Seu destino na Capital pernambucana é o Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP), onde faz o tratamento de quimioterapia. A unidade atende cerca de metade dos pacientes com a doença no Estado. Ao lembrar o momento em que recebeu o diagnóstico sobre a dor que sentia na região do estômago, Oliveira afirma que dispensou as mesuras da equipe médica. “Ficaram querendo me esconder, né? Aí, depois, eu disse: pode falar. Se for para morrer hoje, eu morro satisfeito. A gente tem o dia de morrer, tem o dia de nascer. Não faz medo o cabra dizer que tem uma doença não…se tem que descobrir, saber do que vai se tratar, né?”
Embora se considere bem tratado quando utiliza a casa de apoio mantida pelo município do Agreste, José Severiano constata que o número de pacientes gera situações de superlotação. “Tem dia que enche, que dorme pelo chão o povo, porque não tem cama para todos, bota colchão no chão e se deita lá… Tem dia que vem duas vans cheias de gente, vem um ônibus, e carro pequeno ninguém conta quanto vem…”
A preferência para pessoas com câncer no transporte e nas casas de apoio mantidas com recursos públicos é um dos dispositivos contidos no Estatuto da Pessoa com Câncer, lei promulgada em nove de janeiro deste ano. A legislação estabelece como dever do Estado, da sociedade, da comunidade e da família assegurar, com preferência, a plena efetivação dos direitos desses pacientes. Conforme estabelece a norma aprovada pela Alepe, o atendimento integral à saúde da pessoa com câncer, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), é obrigatório.
Entre os direitos assegurados estão, ainda, a preferência no atendimento e no fornecimento de medicamentos e a priorização pela convivência com a família, em vez de abrigo ou entidade de longa permanência. A norma regulamenta, de forma ampla, o atendimento a esses pacientes, incluindo assistência médica, psicológica, odontológica, oficinas terapêuticas e o fornecimento de órteses ou próteses e serviços especializados para habilitação e reabilitação.
A lei é de autoria da ex-deputada Socorro Pimentel, do PTB, e do deputado licenciado Rodrigo Novaes, do PSD. Ele ressalta que a construção do projeto foi feita ao longo de mais de um ano, por meio de uma Comissão Especial criada na Alepe e presidida por ele. “Tivemos reuniões com várias entidades, fizemos várias visitas. A partir desse diagnóstico que nós realizamos, a gente teve a capacidade de poder elaborar o estatuto, diante das mazelas, das dificuldades, que a gente enxergou no tratamento dessas pessoas.”
Para Novaes, a iniciativa permitirá ao cidadão exigir os seus direitos e ao Ministério Público fazer a proteção do direito coletivo. Moradora de Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife, Arleide Paulina Dutra, de 38 anos, acredita que a lei pode representar um avanço, especialmente se garantir mais agilidade para consultas e exames. “Fui marcar agora uma tomografia, só em março, pra março… se essa campanha mesmo for pra frente, vai ser bem melhor, porque a gente vai ter como mostrar a lei.”
A dona de casa, que já fez mais de 180 sessões de quimioterapia, afirma que a maior motivação para o tratamento, desde que teve o diagnóstico de câncer de mama em 2014, foi a filha, que então tinha quatro anos. “Eu fiquei pensando mais nela, porque vê uma mãe com cabelo, depois sem cabelo, careca, caindo, sem uma mama, tudo isso… mas depois que eu comecei a conversar com o psicólogo, tudo normal até hoje”. Após o impacto do diagnóstico, espaços de afetos se revelam essenciais para o acolhimento desses pacientes.
Desde 1992, o Grupo de Apoio e Autoconhecimento para Pessoas com Câncer (Gaapac) promove o contato com as emoções profundas, por meio de vivências em grupo e atividades criativas. Atual presidente da entidade e ex-paciente de câncer de mama, a pediatra Ana Maria Aguiar avalia que o estatuto aprovado na Alepe contempla até itens geralmente deixados em segundo plano, como direito à presença de acompanhante durante os períodos de atendimento e de internação. “O estatuto é muito bom. Eu acho que a legislação em si está muito boa. A questão é se brigar para o cumprimento disso, de frente das limitações estruturais que se tem no sistema de saúde”.
Para superar as deficiências da rede pública de saúde, o Estatuto da Pessoa com Câncer estabelece a destinação privilegiada de recursos públicos, a formação de cuidadores habilitados, a capacitação de profissionais e grupos de autoajuda, o fomento à realização de estudos e a promoção de ações e campanhas preventivas. A lei objetiva, também, a efetivação de políticas sociais públicas, de modo a construir o bem-estar físico, psíquico, emocional e social do paciente com câncer.